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Kit para o professor

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O QUE VEM NO KIT:
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- calendário tempo
- numerais
- alfabeto
- cartaz ajudante do dia
- cartaz aniversariantes
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- placa de porta
- 1o pregadores decorados
- cartaz quantos somos
- 1 cds de músicas infantis
- 1 cartaz palavras magicas
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- 1 cartaz combinados
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- capa de caderno
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1 painel aniversariantes
1 placa porta
1 painel ajudante do dia
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No kit vem:
Numerais de parede
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2 cds de atividades (1 educação infantil e 1 ens. fundamental)
1 cd de músicas infantis
1 placa de porta
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1 cd videos infantis
1 cd conhecendo o Brasil
1 cd Turma da Mônica
3 cd para trabalhar com crianças especiais
2 filmes infantis
1 cd Alice no país das maravilhas
1 cd com mais de 500 projetos
BRINDE: 200 mini apliqyes
1 placa porta em eva
1 cartaz aniversariantes
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1 cd de músicas
1 cartaz tempo
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1 cartaz ajudante do dia
1 placa de porta
1 cartaz aniversariante
15 prendedores decorados
numerais de parede
vogais de parede
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1 cd de músicas
1 cartaz ajudante do dia
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Kit de decoração para sala de aula:
- Alfabeto completo
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postado por aline

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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Livro: "O futuro da humanidade" - Augusto Cury

C a p í t u l o 1
A ansiedade pulsava no interior de alguns jovens. Um grande sonho encenava-se no teatro de
suas emoções. Movidos pela euforia, percorriam como crianças os corredores das salas de aula da
Faculdade de Medicina.
Olhos fixos nas paredes, cativados por estranhas e belas imagens que retratavam detalhes do
tórax e músculos. Imagens de corpos nus dissecados revelavam que por dentro os seres humanos
sempre foram mais iguais do que imaginaram. A fotografia de um cérebro, saturado de
reentrâncias, como riachos que sulcam a terra, indicava o centro vital de nossa inteligência e de
nossas loucuras.
Chegou o grande dia, o mais esperado e o mais temido. Os novos alunos teriam a primeira
aula de anatomia. Desvendariam os segredos do objeto mais complexo da ciência: o organismo
humano. Aguardavam, impacientes, seus mestres do lado de fora do laboratório, que exalava um
ar de enigma.
Não lhes cabia no imaginário o que os esperava. Queriam ser heróis da vida, aliviar a dor e
prolongar a existência, mas o currículo insensível da medicina os abalaria, sem nenhum preparo,
com a imagem grotesca da morte. O sonho de se tornarem heróis da vida receberia um duro
golpe. Iam se deparar com corpos despidos, dispostos seqüencialmente, como animais.
Enfim chegaram os professores e os técnicos de anatomia. Subtraiu-se a palavra, e um silêncio
gélido envolveu o grupo. Os professores entraram na grande sala do laboratório e convidaram os
sessenta alunos a acompanhá-los. Caminharam, espremidos, lentamente pela porta dupla, mas
estreita.
Como espectadores de um grande show, a tensão expandiu-se e procurou órgãos para se
alojar, provocando sintomas psicossomáticos. Uns sentiram palpitação, outros ficaram ofegantes
e ainda outros transpiravam.
Ao entrar, um choque emocional ecoou no âmago da jovem platéia. Os alunos viram 12
cadáveres completamente nus, deitados rígidos, com o peito e a face voltados para o teto. Cada
um estava estendido sobre uma alva mesa de mármore branco.
O cheiro de formol, usado para conservar os corpos, era quase insuportável. Com olhos
estatelados e mentes abismadas, os alunos contemplavam os olhos opacos e inertes dos
cadáveres. A maioria de meia-idade. Entre eles o de um velho, cuja pele estava sem brilho, mas
seu rosto expressava doçura.
As mesas estavam separadas dois metros e meio umas das outras. Cada grupo de cinco alunos
ficaria encarregado de dissecar e estudar um cadáver durante todo o ano. Teriam de rebater a
pele, separar os músculos, encontrar o trajeto dos nervos e das artérias. Teriam de abrir o tórax e
o abdômen e vasculhar com precisão a cor, o tamanho, a localização e a disposição de cada órgão
interno. Os jovens deveriam ser artesãos que penetrariam na mais bela obra de arte.
Mas, no momento, ninguém desejava dissecá-los. Todos estavam sob o impacto que a cena
causara. Permeados por conflitos existenciais diante do retrato desnudo da vida humana, os
alunos se perguntavam: "Quem somos?", "O que somos?", "Em que nos tornamos diante do
caos da morte?" "Qual o sentido da existência humana?" Perguntas simples e intrigantes, mas que
sempre perturbaram a humanidade, geraram um drama no palco da inteligência dos jovens
espectadores.
O ambiente produziu um abalo emocional repentino e incontrolável. Alguns jovens, em
especial algumas alunas mais sensíveis, procuravam sair subitamente da sala. Estavam com os
olhos lacrimejando, amedrontadas e apreensivas. Não eram seus parentes nem seus amigos, mas
viram naqueles corpos o espelho da existência humana. Vislumbraram que a vida é tão vasta e tão
efêmera, tão complexa e tão frágil. Enquanto elas queriam sair da sala, outros colegas desejavam
entrar. O tumulto aumentou. Ninguém se entendia.
Contrapondo os conflitos dos alunos estavam os professores e técnicos no fundo da sala.
Alguns se entreolhavam e riam diante do desespero da platéia. "São calouros", pensavam com
prepotência. No passado, eles também tiveram suas inquietações, mas ao longo dos anos perderam
a sensibilidade, obstruíram a capacidade de perguntar e de procurar respostas. Sufocaram
seus conflitos, tornaram-se técnicos na vida.
No currículo dessa famosa faculdade não existiam aulas de filosofia e psicologia que
preparassem os alunos para enfrentar o dilema da vida e da morte, o paradoxo entre o desejo de
preservar a saúde e a derrota diante do último suspiro.
Os sonhos eram dilacerados, a paixão pela vida esmagada. O prejuízo no inconsciente dos
futuros médicos era intenso. Treinados para serem lógicos e objetivos, não desenvolviam
habilidades para lidar com o território da emoção.
Pouco a pouco, os pacientes deixavam sua condição de seres humanos únicos para se
tornarem órgãos doentes, que precisavam se submeter aos exames e não ao diálogo. Desse
modo, a mais bela e importante das ciências se submetia ao cárcere da economia de mercado.
Hipócrates, o pai da medicina, se revolveria em seu túmulo se soubesse disso.
Procurando controlar o impacto inicial, o Dr. George, chefe do departamento de anatomia,
pediu silêncio e solicitou que todos retornassem ao laboratório e fizessem um círculo ao redor da
sala.
Começou sua aula. Ignorando o caos emocional que os alunos atravessavam, sequer pensou na
angústia deles. Com voz imponente e gestos eloqüentes, aquietou a agitação dos presentes.
Iniciou apresentando suas credenciais. Primeiro se especializara em cirurgia gastrintestinal.
Depois se tornara um especialista em anatomia. Fez doutorado em Harvard. Era reconhecido
internacionalmente. Tinha mais de cinqüenta artigos publicados em revistas científicas. Um
cientista notável em sua área.
Escondendo-se atrás do seu currículo, ele apresentou o programa da sua disciplina. Após a
introdução, começou sem demora a revelar algumas técnicas de dissecação da pele, músculos,
artérias e nervos. Tudo transcorria normalmente como em todos os anos, até que um aluno
subitamente levantou a mão. Seu nome era Marco Polo.
O Dr. George não gostava de ser interrompido. Não era um amante dos debates. Cada aluno
teria de ruminar as suas dúvidas até o final da aula, para depois perguntar a ele ou aos outros três
professores e três técnicos que o auxiliavam. Desprezou o gesto de Marco Polo. Alguns colegas
ficaram apreensivos. Para não fazer papel de tolo, o jovem abaixou a mão.
Marco Polo era intrépido e determinado. Não conseguia elaborar o turbilhão de pensamentos
que transitavam no anfiteatro da sua mente na sala de anatomia. Mas era um observador e não
tinha medo de expressar suas idéias. Embora imaturo, exercitava uma importante característica
dos grandes pensadores que brilharam na história: as grandes idéias surgem da observação dos
pequenos detalhes.
Cinco minutos depois de ouvir sobre técnicas e peças anatômicas, Marco Polo não suportou o
calor da sua ansiedade. Estava transpirando. Novamente estendeu a mão. O professor, irritado
com sua ousadia, explicou que as dúvidas deveriam ser colocadas sempre no final de cada aula. E
disse que abriria uma única exceção. Fez um gesto com as mãos para que Marco Polo falasse,
como se lhe prestasse um grandioso favor.
Com uma sinceridade cristalina, Marco Polo perguntou:
- Qual é o nome das pessoas que vamos dissecar?
Dr. George recebeu um golpe com a pergunta. Olhou para os professores que o auxiliavam,
meneou a cabeça e balbuciou: "Sempre há algum estúpido na turma." Com a voz impostada,
respondeu:
- Esses corpos não têm nome!
Diante da resposta seca, os alunos saíram repentinamente da apreensão para o riso tímido.
Constrangido, Marco Polo passou os olhos pelos cadáveres e comentou:
- Como não têm nome? Eles não choraram, não sonharam, não amaram, não tiveram amigos,
não construíram uma história?
A platéia ficou muda. O professor mostrou-se indignado. Sentiu-se desafiado. Então debochou
do aluno publicamente:
- Olha, rapaz, aqui só há corpos sem vida, sem história, sem nada. Ninguém respira, ninguém
fala. E você está aqui para estudar anatomia. Saiba que há muitos médicos medíocres na
sociedade porque não se dedicaram a essa matéria. Se não quer ser mais um deles, deixe de
filosofar e não interrompa a minha aula.
Os alunos fizeram um burburinho maior, sentindo que Marco Polo levou uma lição que o
paralisaria. Diante das risadas mais soltas, o professor sentiu-se vitorioso.
Mas Marco Polo ainda teve fôlego para retrucar:
- Como vamos penetrar no corpo de alguém sem saber nada sobre sua personalidade? Isso é
uma invasão!
E, para alfinetar seu professor, resolveu filosofar. Emendou:
- O homem sem história é um livro sem letras.
A platéia ficou surpresa com a dimensão da frase. Interrompendo-o, o Dr. George foi direto e
agressivo:
- Vamos parar com essa filosofia barata! Se você quer ser um detetive que investiga a
identidade de mortos, escolheu a faculdade errada. Vá fazer carreira policial.
Os colegas dessa vez zombaram de Marco Polo. Alguns emitiram sons como se estivessem
numa disputa, num estádio. Marco Polo observou a cena e ficou abalado, não tanto pela
agressividade do professor, mas principalmente pela complexidade da mente humana. Há poucos
minutos seus colegas estavam numa sala de terror e, agora, no centro de um picadeiro, e ele era o
palhaço. Começou a entender que a dor e o riso, a loucura e a sanidade estão muito próximas.
Em seguida, o professor fechou a questão, dizendo:
- Esses cadáveres não têm história. São mendigos, indigentes, sem identidade e sem família.
Morrem pelas ruas e nos hospitais e ninguém reclama a existência deles. Não seremos nós que a
reclamaremos.
Além de humilhar publicamente seu intrépido aluno, ele o desafiou com sarcasmo. Fitou-o e
disse-lhe:
- Se você quiser tentar identificá-los, procure informações na secretaria do departamento. Ah!
E se, por acaso, encontrar uma história interessante de um desses indigentes, por favor, traganos
para que possamos ouvi-la.
Com isso, Marco Polo calou-se.
Um professor auxiliar sussurrou aos ouvidos do chefe:
- Parabéns! Você foi terrível com o garoto.
Um outro lhe expressou:
- Você é um especialista em cortar as asas dos novatos.
O Dr. George sorriu; entretanto, sua emoção não estava uma lagoa plácida, mas um mar
atormentado. Nunca um aluno levantara essas questões no laboratório de anatomia.
Marco Polo saiu daquela aula com a impressão de que há um preço a pagar para os que querem
pensar. Era mais confortável silenciar-se, seguir o roteiro da grade curricular e ser mais um aluno
na multidão. Todavia, o conforto de calar-se geraria uma dívida impagável com sua própria
consciência... Tinha de fazer uma escolha.
C a p í t u l o 2
Marco Polo estava inconformado pela maneira como fora tratado por seu professor. Ele se
questionava sobre a pertinência de suas perguntas. "Não podiam ser tolas. Cada ser humano é um
mundo", pensava ele. Muitos amam a rotina, outros não vivem sem aventura. O jovem pertencia
ao segundo grupo. Detestava o mercado da rotina. A última frase do Dr. George provocara sua
inteligência, não saía da sua mente. Tornara-se um desafio obsessivo.
No dia seguinte foi atrás dos papéis que registravam a entrada dos cadáveres. Ficou
decepcionado. Não havia registro de nomes, atividades e parentescos. Após folhear diversos papéis,
apenas encontrou uma informação vaga, sem detalhes, sobre um dos corpos. A informação foi colhida
por uma das assistentes sociais do hospital da faculdade.
Ela relatou que o velho possuía um apelido bizarro: Poeta da Vida. Escrevera no prontuário:
"Um mendigo maltrapilho, apelidado de Falcão, que freqüenta a praça central da cidade, identificou
o corpo. Ele não conseguiu expressar-se. Tudo indica que seja portador de uma grave e
incapacitante doença mental. Por isso, não deu detalhes do morto, apenas disse que ele era seu
amigo e se chamava Poeta da Vida."
Essas palavras vagas mexeram com o imaginário de Marco Polo. "Quem poderia ser? Por que o
indigente morto tinha o apelido estranho de Poeta da Vida?" refletiu. Procurou a assistente social
para mais informações.
Marco Polo encontrou-a conversando com uma psicóloga. Ele se identificou e perguntou-lhe
como poderia encontrar o tal de Falcão descrito em seu relato, pois queria entrevistá-lo.
Indagado sobre os motivos da informação, ele disse, para espanto das duas profissionais, que era
para desvendar a história de um dos cadáveres do laboratório de anatomia.
A assistente social, sem meias palavras, o desanimou.
- Eu me lembro desse tal Falcão. Fiquei mais de 15 minutos tentando fazê-lo falar. Mas o
coitado era um demente, com a personalidade destruída. Não conseguia manter um diálogo
racional. Você perderá seu tempo se conseguir encontrá-lo.
A psicóloga, mostrando um psicologismo autoritário, foi mais longe:
- Esses cadáveres da sala de anatomia, na grande maioria, são portadores de graves doenças
mentais. Não têm documentos, cultura e mal sabem conversar. Vivem por instinto à margem da
sociedade, saem como animais pelas ruas e estradas.
Marco Polo ficou indignado com a posição fechada delas. Elas conseguiram ser mais
contundentes que seu professor de anatomia. Era como se esses cadáveres fossem montagens de
peças anatômicas sem direito a uma história única. Inconformado, confrontou-as:
- Não concordo com seus pensamentos. Será que esses mendigos não têm personalidades
complexas ou nós é que somos incapazes de entendê-las?
- Você está iniciando seu curso de medicina agora e já quer dar uma de professor? - disse a
psicóloga, impaciente com a petulância do estudante.
Marco Polo não quis prolongar a conversa. Despedindo-se, saiu, frustrado.
Após sua saída, a assistente social comentou com a psicóloga:
- Não se preocupe. Essa febre romântica passa nos anos seguintes.
O jovem procurou durante dias seguidos o tal de Falcão na praça central. Ela era enorme
como o Central Park de Nova York, muitas ruas, bosques, bancos e imensos gramados. Devido à
dimensão da praça, bem como ao aumento do número de sem-teto pela crise financeira e ao fato
de os mendigos serem nômades, a tarefa de encontrar o tal Falcão era dantesca.
Marco Polo fazia sua investigação por tentativa e erro. Abordava qualquer mendigo que
encontrava. Alguns não entendiam o que ele falava, outros fingiam não ouvir e ainda outros
davam alguma atenção, mas diziam que não tinham ouvido falar de nenhum Falcão. Um deles
saiu dando risadas imitando o vôo de uma ave.
Às vezes Marco Polo tinha a impressão de que algumas pessoas conheciam Falcão, mas o
diálogo não evoluía. Nunca conseguiu conversar mais do que um minuto com os que lhe deram
atenção. Estava começando a se convencer de que os outros estavam certos e ele, errado.
Pensava em terminar sua aventura de Indiana Jones sobre os banidos da sociedade. Entretanto,
toda vez que passava perto do seu professor sentia-se provocado.
Os colegas o irritavam perguntando: "Cadê a história do mendigo?" Alguns mais engraçados e
desrespeitosos apontavam para um cadáver e diziam: "Este foi Júlio César, o imperador de
Roma!" Todos riam. Os cadáveres já não causavam espanto na turma. O anormal se tornou
normal.
Marco Polo observava todos esses fenômenos. Não os entendia, mas os registrava. Começou a
perceber que o ser humano se adapta a tudo, inclusive ao caos. A humilhação colocava
combustível no seu desafio. Desistir perturbava-o.
Um mês depois da primeira aula de anatomia, resolveu fazer mais uma tentativa. Novamente
entrou na imensa praça, percorreu centenas de metros, conversou com alguns indigentes, mas
não obteve a resposta que procurava. Dois deles, sentados no mesmo banco, balbuciaram
algumas palavras entre si quando indagados por Marco Polo. Mas silenciaram-se sobre Falcão.
De repente, cinqüenta metros à sua frente, viu mais um mendigo abordando os transeuntes
num local movimentado. Tentava conseguir uns trocados para uma possível refeição noturna.
Tinha barba longa e branca. Seus cabelos eram revoltos como os de Einstein zombando do
mundo, mas parecia que ele zombava era do banho. A pele estava seca, sem brilho, desidratada,
roçada pelo tempo. Vestia um casaco preto, remendado com tiras brancas. Cheirava a azedo
cítrico.
Aproximou-se dele, deu-lhe o pouco dinheiro que tinha no bolso e perguntou-lhe se conhecia
o tal Falcão. O mendigo olhou para ele, Pegou o dinheiro e fingiu que não ouvira.
Marco Polo perguntou novamente. Dessa vez, o mendigo pôs o dedo na boca e disse:
- Silêncio! A princesa está chegando.
O jovem olhou de lado, não viu nada. Mas o mendigo continuava atento. Em seguida,
levantou-se e começou a perseguir com os olhos uma borboleta, totalmente deslumbrado.
Levantou os braços e começou a fazer um movimento imitando seu bailado. Ela voou no alto da
copa e retornou pousando suavemente na sua mão.
Marco Polo, admirado, não conseguia dizer se o pouso foi uma coincidência ou uma atração
instintiva e inexplicável. O mendigo respirou profundamente e contemplou a borboleta. Parecia
livre como ela. Depois a soprou suavemente, dizendo:
- Adeus, princesa! Você encanta este lugar, mas siga o seu caminho e cuidado com os
predadores.
Marco Polo ficou intrigado com essas palavras. Perguntou pela terceira vez:
- Você conhece o Falcão?
O mendigo fitou-o e respondeu:
- Há muitos anos me pergunto quem eu sou. Quanto mais me pergunto, menos sei quem sou.
O que penso que sou não é o que sou.
Marco Polo ficou confuso. Não entendeu nada, mas ficou extasiado com a possibilidade de
aquele homem ser Falcão. Rapidamente se identificou e pediu informações sobre o tal Poeta da
Vida. Não percebeu que sua ansiedade bloqueara o andarilho. Para piorar as coisas, acrescentou
ingenuamente:
- Quero essas informações, pois o Poeta está na sala de anatomia da minha faculdade de
medicina e eu e meus colegas iremos dissecá-lo. Gostaria de conhecer algo sobre sua vida.
O mendigo ficou assombrado com essas informações. Marco Polo percebeu que fora frio e
agressivo na conversa. Tentou amenizar rapidamente o que dissera:
- Mesmo depois de morto, o Poeta será útil para a formação de médicos e, conseqüentemente,
para a humanidade.
Com os olhos embebidos em lágrimas, o indigente parecia ter saído do lugar, estava em outro
mundo. Como viajante do tempo, olhava vagamente para o infinito. Marco Polo insistiu,
perguntando se ele era o Falcão. O mendigo não deu resposta. Levantou-se e partiu em profundo
silêncio.
O jovem estudante ficou sentado no banco, paralisado em sua inteligência. Parecia ser ele o
miserável. Tinha muito e não tinha nada. Não sabia definir seus sentimentos e sentia-se incapaz de
compreender o mundo desses andejos que vagam pela vida sem direção. Voltou no outro dia e
não encontrou o mendigo. Ficou abatido.
Três dias depois, encontrou-o novamente. Desta vez foi mais comedido. Sentou-se
delicadamente no banco. Ficou um minuto sem conversar. Dava olhadelas para o mendigo, que
parecia ignorá-lo.
- Por favor, senhor, diga-me se você é o Falcão.
Depois de outra insistência, o mendigo voltou-se para ele e perguntou:
- Quem é você?
Marco Polo se identificou, disse seu nome, seu endereço, onde estudava e outras informações.
- Não estou perguntando o que você faz, mas quem você é. O que está na sua essência, por
trás da sua maquiagem social.
Marco Polo sentiu um nó na garganta. Foi pego de surpresa pelo raciocínio perspicaz do
mendigo. "Esse mendigo não é um demente. Ao contrário. No primeiro encontro ele usou a
palavra "predador", agora fala sobre "maquiagem social", analisou. Não soube o que responder.
Então o mendigo disse:
- Se você é lento para dizer quem é, como ousa perguntar quem eu sou?
O jovem recebeu mais um choque. Por isso, insistiu:
- O senhor conheceu o Poeta. Quem era? Por que tem esse apelido?
- Garotos perfumados, trajando belas roupas, vivendo na superfície da existência. Quem são
vocês para estudar o Poeta da Vida? Retalhem seu corpo, mas jamais penetrarão em sua alma.
Tais palavras abalaram Marco Polo. Era um raciocínio brilhante, embora ofensivo. Convenceuse
de que esse mendigo era o Falcão. Em seguida, fez-se um silêncio gélido. O mendigo levantou
os braços, cerrou os olhos e ouviu atentamente a serenidade do farfalhar do vento nas folhas das
árvores próximas. Respirou fundo e expressou para si mesmo:
- Que brisa maravilhosa!
Marco Polo, embasbacado, persistiu:
- Fale-me sobre seu amigo!
Falcão não gostou do seu tom de voz.
- Não me dê ordem, garoto! Não me controle! Não estou em seu mundo! Sou livre!
- Desculpe-me a insistência.
- Só continuo a conversa se você me responder uma pergunta.
- Terei o maior prazer em respondê-la - disse apressadamente, confiando que um mendigo
não faria uma pergunta complexa.
- Qual a diferença entre um poeta e um poeta da vida? - indagou, penetrando nos olhos de
Marco Polo.
O jovem percebeu que caíra numa armadilha. Subestimara a inteligência do mendigo. Esfregou
as mãos no rosto, abaixou a cabeça e, depois de muito pensar, reconheceu:
- Perdoe-me, senhor, mas não sei a resposta.
- Um poeta escreve poesia, um poeta da vida vive a vida como uma poesia. Meu amigo era um
Poeta da Vida.
Marco Polo quis ensaiar uma nova pergunta. Cortando-o, Falcão disse-lhe:
- Seja honesto. Você não respondeu e a conversa se encerrou.
Marco Polo ficou plantado no banco. Achava-se muito esperto, mas deparara-se com sua
estupidez e arrogância. Apesar de decepcionado consigo mesmo, estava eufórico com a
inteligência de Falcão.
Falcão levantou-se e, como se nada estivesse acontecendo, começou a caminhar. Abraçou uma
árvore. Beijou-a. Agachou-se diante de uma flor, parecia querer penetrar-lhe as entranhas. Dizia
algumas palavras inaudíveis, como se estivesse fazendo uma oração ou elogiando a flor.
Marco Polo, teimoso e com a voz embargada, arriscou dizer algo para manter o vínculo:
- Até amanhã!
Falcão se levantou e comentou:
- O tempo não existe, garoto. Amanhã a chama da vida pode ter se apagado!
Em seguida saiu sem se despedir. Enquanto andava, abria os braços e fazia um movimento de
dança. Com uma voz vibrante, cantava, olhando para a natureza, What a Wonderful World, de
Louis Armstrong, com algumas modificações na letra:
Eu vejo o verde das árvores, rosas vermelhas também
Eu as vejo florescerem para a humanidade
E eu penso comigo... Que mundo maravilhoso.
Eu vejo o azul dos céus e o branco das nuvens.
O brilho do dia abençoado, a sagrada noite escura.
E eu penso comigo... Que mundo maravilhoso.
O mundo intelectual de Marco Polo não estava maravilhoso, pois passara por um vendaval.
Profundamente intrigado, ele disse consigo mesmo: "Que homem é este que se esconde na pele
de um miserável? Que mendigo é este que parece ter muito, mas possui tão pouco?"
C a p í t u l o 3
Ao retornar para a república de estudantes, onde morava, Marco Polo recolheu-se em seu
interior. Seu pai, Rodolfo, sempre fora um admirador do italiano Marco Polo, um dos maiores
aventureiros da história. O viajante veneziano tinha apenas 17 anos quando, em 1271, partiu da
belíssima Veneza para a Ásia com seu pai e seu tio. A incrível odisséia durou 24 anos.
Correram enormes riscos, navegaram por rios e mares, andaram por desertos, escalaram
montanhas, pisaram em solos nunca antes tocados por um europeu. A aventura revelou um
mundo fascinante, jamais descrito. Sua obra O livro das maravilhas: A descrição do mundo influenciou o
mapa-múndi traçado em 1450, hoje exposto na Biblioteca Marciana de Veneza.
Rodolfo era um ávido admirador da ousadia de Marco Polo, e por isso deu seu nome ao filho.
À medida que ele foi crescendo, relatava com excitação para o pequeno Marco Polo as peripécias
do aventureiro italiano. Contava-lhe, com doses de ficção, os sonhos do navegador veneziano,
sua coragem imbatível e sua incontrolável motivação de conhecer novos mundos, explorar novas
culturas, costumes, culinária. O menino bebia as palavras do pai.
Entre as suas muitíssimas descobertas, Marco Polo trouxe o macarrão inventado pelos chineses
para a Itália. Os italianos, com sua habilidade culinária ímpar, o aperfeiçoaram. O senhor Rodolfo,
amante de uma boa massa, toda vez que comia um espaguete fazia um brinde a Marco Polo.
Uma frase dita e repetida pelo pai ecoava na mente do pequeno Marco Polo:
- Meu filho, os aventureiros realizam suas conquistas e as demais pessoas os aplaudem. Saia
sempre do lugar-comum!
Agora o jovem era um estudante de medicina. Desejava conhecer os mistérios do corpo
humano. Entretanto, como a vida tem cruzamentos imprevisíveis, ele se deparou com um
desafio muito maior: conhecer o complicado mundo da mente humana.
Não bastasse esse pungente desafio, a personalidade que precisava descobrir era a de um ser
humano que vivia na periferia da sociedade e, como tal, tachado de louco, impenetrável e
portador de uma história existencial desprezível.
Teve a impressão de que não conseguiria aprofundar-se no universo de Falcão, pois viviam em
ambientes e culturas completamente distintas. "Como fazer isso? Que ferramentas usar?, Que
atitudes tomar sem caracterizar uma invasão? Certamente o Marco Polo do século XIII também
se perturbaria diante dessa aventura!", pensava constantemente.
Precisava ser ousado e criativo para percorrer os solos intangíveis da alma humana e caminhar
no indecifrável território da emoção. Após viajar em seus pensamentos e fazer anotações sobre
os fatos ocorridos, uma luz brilhou. Teve uma idéia incomum para romper as barreiras e
distâncias entre ele e o mendigo pensador: "Preciso tornar-me um deles", imaginou.
No dia seguinte, um sábado ensolarado, entrou no banheiro, passou pasta de alho no rosto,
pegou um nabo podre da cozinha e esfregou nos braços e peito. Pegou gel, misturou com a pasta
de alho, esfregou na cabeça e despenteou os cabelos. Ficou parecido com um pequeno monstro
ou com alguém que acabou de receber um choque elétrico. Mas valia tudo para tal conquista.
Afinal de contas, não agüentava mais ser alvo de chacotas dos colegas.
Em seguida, foi ao quarto, pegou uma camisa de um vermelho-vivo, rasgou-a e vestiu-a.
Colocou uma calça preta desbotada e manchada que comprara num brechó. Vestiu um casaco
preto e remendado, comprado no mesmo lugar. Ao passar pela sala, os colegas levaram um
susto. Marco Polo não parecia um mendigo, mas um ET. De tantas gargalhadas, todos se
deitaram no chão. Seu dia começara mal. Não dava para explicar nada aos amigos, ninguém
entenderia. Saiu de casa saltitando e deixou estáticos seus colegas da república de estudantes.
Cheirava tão mal que ninguém conseguia passar perto dele nas ruas sem abanar o nariz. O
excêntrico jovem causava espanto nos adultos, mas divertia as crianças. Nunca tinha chamado
tanto a atenção.
Ao se aproximar da praça, as pessoas apontavam-lhe o dedo e debochavam dele. Começou a
sentir raiva dos normais. Deu vontade de tirar satisfação. "Ser mendigo deve ser uma vida dura",
pensou. Mas sua meta o impelia, era a sua prioridade, e estava convicto de que Falcão se
aproximaria dele.
Após meia hora de procura, encontrou Falcão e sentou-se ao seu lado. Fez um grande silêncio,
queria impressionar. Falcão se afastou dele. Não suportou o cheiro. Disfarçadamente, deu uma
olhadela no estudante, da cabeça aos pés. Afastou-se mais um pouco. Cada um assobiava e
olhava para o lado oposto. De repente, os olhares se cruzaram.
Quando Marco Polo pensou que estava causando impacto, Falcão gritou:
- Como você é feio!
Em seguida, desandou a gargalhar. A praça se emudeceu com tanto riso. Marco Polo ficou
vermelho, não sabia se ria ou se corria. Preferiu rir. Riu muito. Riu para não chorar. Era a
primeira vez que ria das próprias tolices. Era um jovem inteligente e intrépido, mas engessado e
sem grande senso de humor. Rir de si mesmo foi um bálsamo. Os passantes se aproximaram.
Queriam um pouco da alegria dos dois alienados.
Marco Polo apontou para a platéia e aumentou seu riso. A platéia começou também a rir,
ninguém sabia por quê. Riam sem motivo. Uns riam dos outros. Era a terapia do riso, tão ilógica
e tão singela.
Momentos depois, o show encerrou-se. Surgiu o silêncio. Com o silêncio, a platéia dispersouse.
Enquanto se dispersavam, jogavam moedas. Falcão disse:
- Meu Deus, como os normais estão carentes. Como é fácil diverti-los. Até um palhaço de
primeira viagem vira atração.
Marco Polo franziu o rosto e ficou pensando se a carapuça não era para ele. Mas resolveu
seguir seu plano. Pegou sua sacola, deu-lhe alguns alimentos bem embalados e uma caixa de
bombons. Pensou que depois do circo e dos presentes havia conquistado Falcão. Ledo engano!
O mendigo olhou para o jovem e desferiu-lhe um golpe inesquecível:
- O seu alimento sacia minha fome, mas não compra minha liberdade.
- Eu não quero comprar sua liberdade! - reagiu imediatamente.
- Seja honesto! Você deseja que eu fale, que lhe dê informações. Quem vende sua liberdade
nunca foi digno dela - expressou Falcão.
Marco Polo coçou sua cabeleira arrepiada e novamente se perguntou: "Quem é essa pessoa
tão rápida nas respostas e tão ferina nas idéias?!"
Ele sentiu a pobreza do seu plano para conquistar alguém tão incomum. No fundo, ele estava
querendo comprar aquilo que não tem preço. Precisava usar a estratégia da transparência.
Reconhecendo seu erro, disse:
- Desculpe-me pelas minhas segundas intenções. Eu realmente quis que meus presentes
abrissem as janelas da sua mente.
Mais afetivo diante da humildade de Marco Polo, Falcão adocicou a voz:
- Garoto, o seu nome é o de um desbravador, mas você nunca será como um de nós. Você
pode maquiar-se, vestir roupas rasgadas, cheirar mal, mas continuará sendo você mesmo. No seu
mundo, vocês crêem que a embalagem muda o valor do conteúdo. No meu mundo isso é
uma tolice. Você continuará sendo um prisioneiro.
Marco Polo ficou abismado:
- Prisioneiro do quê?
- Do sistema.
- Eu sou livre!
- Você pensa que é livre. Você tem os pés livres para caminhar e a boca livre para falar. Mas
você é livre para pensar?
- Creio que sim.
- Então me responda com sinceridade: Você sofre pelo futuro, ou seja, você se atormenta por
coisas que não aconteceram?
- Sim - disse, consternado.
- Você tem necessidades que não são necessárias?
- Sim.
- Você sofre quando alguém o critica? É preocupado com a opinião dos outros?
- Sim.
Falcão se calou e Marco Polo ficou pensativo. Lembrou-se do quanto as opiniões do seu
professor e de seus colegas de classe o atormentaram. A discriminação que sofreu fora registrada
de maneira privilegiada, gerando um conflito. Perdeu o sono algumas vezes. Deixou que o lixo de
fora invadisse sua emoção.
Começou a analisar o que estava fazendo naquela praça. Conquistar Falcão era motivado pela
dor da discriminação e não pelo que realmente ele representava. Assim, começou a rever seu foco.
Com honestidade, admitiu:
- Não sou tão livre como imaginava.
Falcão continuou e pela primeira vez o chamou pelo nome.
- Marco Polo, o mundo em que você vive é um teatro. As pessoas freqüentemente representam.
Elas se observam o tempo todo, esperando comportamentos previsíveis. Observam seus gestos,
suas roupas, suas palavras. A liberdade é uma utopia. A espontaneidade morreu.
Marco Polo jamais pensou que poderia encontrar sabedoria em um maltrapilho. Recordou a
primeira aula de anatomia, as palavras preconceituosas do seu professor, da psicóloga e da
assistente social. Percebeu como somos superficiais ao julgar pessoas diferentes. Compreendeu a
própria superficialidade.
Entendeu que muitos indigentes podiam ser doentes mentais sem condições de expressar
grandes idéias, mas todos eles tiveram uma grande história. Além disso, começou a descobrir que
alguns miseráveis das ruas, como Falcão, e provavelmente alguns doentes mentais, tinham uma
sabedoria que intelectuais não alcançaram. Convenceu-se de que cada ser humano é uma caixa de
segredos a ser explorada.
Quando os excluímos, é porque não os entendemos. A partir daí, começou a ser fascinado pela
mente humana. Despertou-lhe pouco a pouco o desejo de um dia se especializar na mais
enigmática e complexa das especialidades médicas: a psiquiatria. As idéias do pensador das ruas o
inspiraram.
Após questionar sua própria liberdade, Marco Polo fez alguns minutos de silêncio. Falcão
recostara-se folgadamente no banco. Em seguida, o jovem voltou à carga revelando suas
inquietações e sua famosa incapacidade de ficar calado. Resolveu provocar Falcão:
- Será que pelo fato de não ter tido sucesso no sistema que condena, você não se alienou dele?
Quem me convence de que você não é uma pessoa socialmente frustrada e interiormente presa?
Marco Polo foi perspicaz em seus argumentos, mas, depois de dizer tais palavras, sentiu que
corria risco de destruir seu relacionamento com Falcão. Recordou que criara problemas com o
Dr. George pela sua impetuosidade. Por menos, o médico o havia humilhado publicamente.
Quando a relação parecia ter ficado estremecida, surpreendeu-se. O brilho nos olhos e um
sorriso entrecortado de Falcão indicavam que ele gostara de ser provocado. Com lucidez, o
mendigo deu uma breve resposta, sem grandes detalhes:
- Você tem futuro, garoto! Você pensa. O sistema me feriu drasticamente e me baniu. A dor
que vivi poderia me destruir ou me construir. Resolvi deixá-la construir-me. Atormentado, saí
sem endereço, procurando um endereço dentro de mim mesmo...
Falcão emudeceu. Não deu mais detalhes da sua vida, e Marco Polo não queria invadir a sua
intimidade. Havia profundidade e intenso sofrimento nessas breves palavras. Sentiu que era hora
de partir. Saiu calado e reflexivo.
O filósofo das ruas estava se tornando mestre de um jovem da elite social. O jovem admirou o
mendigo e o mendigo se encantou com o jovem. Começaram a ser amigos. Ambos viviam em
mundos distintos, mas foram aproximados pela linguagem universal da sensibilidade e da arte de
pensar. Uma fascinante história seria desenhada.
C a p í t u l o 4
A descoberta do mundo rico e profundo que se escondia atrás dos escombros da miséria de
Falcão parecia loucura nas sociedades modernas, que valorizam muitíssimo a tecnologia e
pouquíssimo a sabedoria. Esta descoberta deixara Marco Polo atônito.
No próximo encontro, ainda teve receio de ir com suas vestes normais. Novamente foi trajado
de mendigo, mas mais discreto e menos fétido. Os cabelos continuavam em estado de choque.
Não levava jeito para ser um andarilho. Bem-humorado, Falcão não o censurou. Marco Polo já
não era um invasor de território. O mestre das ruas continuava sua vida sem aparentemente darlhe
muita atenção.
Ele observava os caminhantes e dava risadas. Marco Polo se esforçava para entender, mas não
sabia o que estava acontecendo. Falcão se divertia imaginando o que as pessoas estariam
pensando naquele exato momento. Minutos depois, permitiu que o jovem entrasse na brincadeira.
Queria ensinar-lhe uma lição.
- Está vendo aquele sujeito apressado, apreensivo, de gravata torta. Olhe como ele torce o
nariz e faz caretas. Deve estar pensando: "Eu não agüento mais meu chefe! Eu vou pedir
demissão e mandá-lo plantar batatas." Coitado! Ele é o melhor plantador de batatas dessa cidade.
Faz anos que repete a mesma coisa.
Marco Polo abriu um sorriso analítico. Pensou: "Sempre foram os normais que zombaram dos
trejeitos dos marginalizados. Eles falam sozinhos, gesticulam, são curiosos. Não imaginava que
alguns deles vissem a sociedade organizada como um circo." Falcão chamou a atenção para outra
pessoa.
- Está vendo aquela mulher toda embonecada, tentando equilibrar-se naquele salto enorme.
Olhe lá. Como ela anda torta. Quase caiu. Que coisa mais estranha. Nunca ninguém olhou para
aqueles saltos, mas ela não desce deles. Deve estar pensando: "Quem será que está me
admirando?!"
Em seguida, perguntou ao jovem:
- Quem está admirando aquela mulher?
- Não sei - respondeu Marco Polo.
- Só nós, seu tonto! Ficou mais de uma hora sofrendo diante do espelho para dois tolos
observá-la - respondeu, brincando. E completou:
- Se você não brincar com a vida, a vida brigará com você.
Marco Polo entendeu o recado e topou a brincadeira. Em seguida, chamou a atenção para um
homem aparentemente muito famoso, devia ser um ator ou cantor. Estava rodeado por
seguranças e era perseguido por alguns repórteres tentando entrevistá-lo. Agressivo, desdenhava
dos jornalistas.
- Ele deve estar pensando: "Eu sou o herói desta cidade!"
Marco Polo não conseguiu dizer mais nada sobre o homem e percebeu que Falcão não
apreciara sua frase.
- Você escolheu o personagem errado. Ele não tem graça nenhuma, vive em torno da fama,
pisa nos outros. Morre todos os dias um pouco, mas se acha acima dos mortais. A mídia o
produziu e a mídia o detesta.
Marco Polo, incomodado, perguntou-lhe:
- Quem eu deveria escolher?
- Você poderia escolher aquela jornalista tentando entrevistá-lo. Ela está bufando de raiva por
dentro! Deve estar pensando: "Não acredito que ganho tão pouco para entrevistar um cara tão
vazio."
Marco Polo parou para meditar nessas palavras. Falcão completou:
- Os jornalistas são profissionais interessantes. São como bactérias que criticam o sistema,
mas dependem dele para sobreviver.
Enquanto Falcão e Marco Polo se divertiam, algo rompeu abruptamente o momento de
descontração. Perto deles, um jovem de 15 anos, usuário de drogas, aproveitou estar no meio da
multidão e roubou, pelas costas, a bolsa de uma senhora idosa. Para que ela não o visse,
empurrou-a impiedosamente. Ela caiu, feriu os joelhos e seus lábios. O infrator correu.
A senhora gritava sem parar: "Minha bolsa! Roubaram minha bolsa!" Na confusão, os
passantes não conseguiram identificar o ladrão. Dez metros à frente estavam dois policiais, que
ouviram os gritos. Saíram correndo ansiosos para ver se o pegavam.
Ao perceber que estava sendo perseguido, o jovem, amedrontado, atirou a bolsa no colo de
Falcão, que se levantou para procurar sua dona. Os policiais, ao passar por ele, viram a bolsa.
Deduziram que um mendigo não poderia ser proprietário de tal peça. Agarraram-no.
Marco Polo implorava a atenção dos policiais. Tentava em vão explicar o que eles não queriam
entender. Um dos policiais foi até a senhora, que estava a uns trinta metros, e perguntou se a
bolsa lhe pertencia. Diante da resposta positiva e vislumbrando joelhos e lábios sangrando, saiu
indignado. Uma pequena multidão, sequiosa por vingança, o acompanhava. Daria voz definitiva
de prisão ao violento mendigo.
Falcão estava relativamente calmo. Sabia que nenhum argumento seria convincente. O
momento era tenso. Mais uma vez seria alvo de policiais que odiavam andarilhos. Alguns
gritavam palavras de ordem querendo linchá-lo. A agressividade gerava agressividade, revelando
o inextinguível ciclo da violência. As sociedades modernas vivem tempos insanos. A serenidade é
um artigo de luxo.
Sob o coro da multidão, os policiais, revoltados, mal recitaram os direitos do cidadão e o
algemaram. Que direito tem um maltrapilho? Que advogado terá motivação para defendê-lo?
Quem poderia crer na sua inocência? Marco Polo tentava em vão defendê-lo. Estava desesperado
diante da injustiça.
De repente, Falcão tentou tirar algo volumoso do bolso. Os policiais pensaram que ele estaria
sacando uma arma. Eles o socaram, derrubaram-no e colocaram os joelhos sobre seu pescoço.
Mas era um tubo de metal e não uma arma.
Ao ver o amigo caído e ferido, Marco Polo tomou uma atitude inesperada. Aos berros, dizia:
- Fui eu! Fui eu! Fui eu que roubei a bolsa! Ele é inocente!
Os policiais ficaram confusos. A platéia silenciou.
Falcão, perturbado, o desmentiu. Gritou:
- Não! Fui eu. Eu a roubei.
Ninguém entendeu nada. Os policiais estavam atônitos. Nunca tinham presenciado uma
reação como essa. Marco Polo foi mais incisivo.
- Pai! Você é um velho. A vida inteira me protegeu. Não tem força nem para andar. Como
poderia roubá-la? Eu roubei a bolsa e a depositei em seu colo. Não assuma minha culpa!
Sem se desculpar com Falcão, os policiais simplesmente trocaram as algemas de pulsos. Marco
Polo foi conduzido ao carro num cortejo em que a população gritava:
- Ladrão! Ladrão! Mata ele! - alguns gritavam.
Ao se aproximar do carro policial, Falcão pegou o tubo de metal, abriu-o e dele saltou uma
rosa de seda vermelha. Ele a entregaria aos policiais como um sinal de paz. Agora, achara alguém
mais digno de recebê-la - o jovem amigo. Falcão era amigo das crianças. Ganhara esse presente
de um menino que de vez em quando lhe trazia comida na praça.
Os olhos do mendigo penetraram nos do jovem. Seu silêncio gritou em agradecimento, mas
estava apreensivo com as conseqüências da sua atitude.
Marco Polo entrou no carro e partiu. Nunca havia entrado numa delegacia. Não podia alegar
inocência, havia assumido o delito. Durante o inquérito, a capacidade de argumentar de Marco
Polo se tornou inútil. Todos estavam revoltados com um criminoso que rouba e machuca frágeis
idosas.
No interrogatório, o delegado lhe perguntou se alguma vez havia estudado ou trabalhado.
Marco Polo o fitou e disse-lhe que era um estudante de medicina. O delegado e o escrivão quase
estouraram de tanto rir.
- Era só o que me faltava! Um palhaço na delegacia. Não estou aqui para brincar, garoto -
gritou. - O que você faz na vida!
- Eu já lhe disse. Sou estudante de medicina.
- Um mendigo futuro médico? Se com essa cabeleira linda será um médico, então eu sou
Marilyn Monroe.
O escrivão morria de rir. Abriu as portas e chamou várias pessoas para entrar na sala.
Apresentou-lhes o intelectual mendigo. Todos zombaram, aplaudiram, fizeram algazarra.
Marco Polo começou a entender o peso de ser uma pessoa excluída, os perigos de viver fora
do modelo social. Porém já estava ficando calejado. Com sua esquisita cabeleira e seus trajes
rasgados, não era possível ser levado a sério.
O delegado sabia que os mendigos, na maioria, eram pacientes psiquiátricos. Pensou que
Marco Polo estivesse delirando. Sem respeito, balbuciou para alguns: "Não agüento esses
vermes." Em seguida, aproximou-se e gritou:
- Diga-me quem você é, seu crápula! Se você é um futuro doutor, então mostre sua carteira de
estudante.
Marco Polo engoliu em seco. Não tinha carteira de identidade e nem de estudante no
momento.
- Esqueci em casa.
- Ah, seu espertinho, esqueceu em casa. Muito bem.
O delegado não teve dúvida. Como montara um palco, queria continuar o espetáculo.
- Então me descreva o corpo humano. Dê uma aula sobre o que você tem estudado em classe,
seu megalomaníaco.
A platéia foi ao delírio diante da esperteza do delegado.
- Você é uma fera, chefe! - diziam os subordinados, querendo exaltar seu ego. O delegado, por
sua vez, acariciou sua cabeça avantajada.
Mas mexeram com um vespeiro. Não sabiam em que armadilha tinham caído. Marco Polo, por
ser perseguido nas aulas de anatomia, tinha de ser um excelente estudante para passar nas provas.
Ele fixou seu olhar nos presentes e começou, com a maior segurança, a discorrer sobre os
intricados músculos do antebraço. Logo nas primeiras informações, as pessoas ficaram de olhos
estatelados.
Depois começou a descrever o trajeto do nervo radial. Em seguida deixou-os pasmos
comentando os átrios e os ventrículos do coração. Relatou o nascimento da artéria aorta, seus
ramos e sub-ramos. Apontou também quantos ossos tinha o esqueleto humano.
Após ter conquistado a platéia, resolveu fazer uma sutil chacota com o delegado.
- Pelo crânio enorme que o doutor delegado possui, certamente seu cérebro é privilegiado.
Pegou uma folha de papel que estava sobre a mesa. Dobrou-a e pediu para medir a testa da
autoridade. E fez cena.
- É de se supor que o senhor tenha uns noventa bilhões de neurônios.
O delegado, desde a infância, tinha complexo de inferioridade por causa de sua cabeça
volumosa. Seu apelido na escola era Cabeção. Seus colegas zombavam dele. À medida que
cresceu, tentava compensar sua baixa auto-estima sendo agressivo e autoritário. Impunha suas
idéias e não as expunha. Mas, diante da descrição supostamente favorável de Marco Polo, sentiuse
um intelectual.
Não sabia que Marco Polo brincara reduzindo o número de seus neurônios. Um cérebro
normal tem mais de cem bilhões de neurônios. Bem-humorado, Marco Polo o chamara
solenemente diante dos amigos de "grande cérebro".
- Grande cérebro! Nunca ninguém me chamou desse modo.
Satisfeito, passou as mãos novamente na cabeça, pela primeira vez com alívio. Diante do vasto
conhecimento de anatomia do jovem e sentindo-se elogiado por suas palavras, mudou seu tom
no interrogatório.
"Esse rapaz tem comportamentos estranhos, mas parece uma boa pessoa", novamente
analisou consigo mesmo. Além disso, ele realmente poderia ser um estudante de medicina
excêntrico e o delegado temeu sofrer um processo por abuso de autoridade.
Perguntou por que Marco Polo estava trajado daquele jeito. Recebeu as explicações. Diante da
história indigesta e não sabendo como proceder, deixou o rapaz numa sala especial até esclarecer
os fatos.
Uma hora depois apareceu uma testemunha para depor espontaneamente. Era um balconista
que trabalhava numa loja nas vizinhanças. No momento em que transitava pela praça, viu o
menor infrator Jogando a bolsa em cima do velho mendigo.
Comentou ainda que esse mendigo freqüentava a praça há algum tempo e era conhecido dos
passantes por sua inteligência e bizarrice. Contou como Marco Polo protegera o velho. E, antes
que o delegado o inquirisse, disse que não tomara nenhuma atitude na hora porque o ambiente
estava conturbado. Teve medo de esclarecer os fatos na praça. Mas, comovido com a atitude do
jovem, veio depor a seu favor.
O delegado esfregava as mãos na nuca. Piscava os olhos e respirava fundo. Tentava descobrir
se aquilo era sonho ou realidade. Estava tão perplexo, que comentou:
- Nunca ouvi falar sobre um indigente inteligente, nunca ouvi falar sobre alguém assumir a
culpa de outrem, nunca vi um estudante de medicina mendigo! Isso é demais para mim. Isso é
coisa de gente maluca.
- Ou de gente que se ama - emendou o balconista.
Sabendo que havia sido autoritário com Marco Polo, chamou-o à parte e tentou justificar o
injustificável: sua atitude discriminatória. Disse que não poderia imaginar que na pele de um
andarilho estaria um jovem da elite. E aproveitou para confirmar se ele achava mesmo que seu
cérebro tinha muitos bilhões de neurônios.
- Sua cabeça é a de um gênio. Freud teria inveja do senhor - disse-lhe Marco Polo.
O delegado foi para as nuvens. Mas Marco Polo estava consternado. Deixou o templo da
justiça decepcionado. Sentiu na pele que a justiça é forte para com os fracos e frágil para com os
fortes...
Apesar disso, saiu cantarolando. Afinal de contas, seu mestre o ensinara a brincar com a vida e
não a brigar com ela.
C a p í t u l o 5
No outro dia, Marco Polo foi novamente encontrar o amigo. Trajava roupas usuais.
Entretanto, dia a dia se convencia de que os normais eram mais doentes do que jamais percebera.
Falcão, desta vez, o aguardava.
- Fazia tempo que não me preocupava pela sorte de alguém.
- Você se preocupou comigo? - indagou Marco Polo, surpreso e prazeroso.
- Você se esqueceu de que arrumei um filho cabeça-dura? - brincou.
A situação em que os dois se envolveram foi tão incomum que Marco Polo conseguiu algo
raro do velho sábio: que ele falasse sobre seu mundo. Falcão era um cofre. O jovem estudante só
conseguiu que ele abrisse sua boca porque conquistou a sua alma. Sentaram-se e tiveram uma
longa conversa.
Marco Polo estava boquiaberto com as revelações de Falcão sobre o Poeta da Vida. Relatou
que ele sabia transformar as coisas simples num espetáculo aos seus olhos. Fazia da aurora um
momento de meditação. Considerava o orvalho da manhã como pérolas anônimas que por
instantes aparecem e logo se dissipam, mas só os sensíveis as percebem. Despedia-se da Lua
como se despede de uma amiga. Cantava quando as gotas de chuva umedeciam a terra. Era
apaixonado pela vida, pela natureza e pelo Autor da existência.
O jovem absorvia as palavras do velho qual sedento no deserto. Marco Polo sentiu que os que
estavam à margem da sociedade tinham muitas Perturbações, mas viviam mais aventuras, pelo
menos alguns deles. A sociedade se tornara um mercado de tédio, sem poesia e sensibilidade.
Falcão tinha uma maneira peculiar de se expressar: falava olhando para uma platéia invisível e
não diretamente para Marco Polo. Quando queria, era um homem de detalhes, dissecava os
sentimentos. Tinha uma habilidade impressionante de produzir frases de efeito.
Relatou ainda que o Poeta da Vida era um grande crítico do sistema social. Dizia que na
sociedade havia muitas pessoas tentando conquistar o mundo exterior, mas não o seu mundo
interior. Elas compravam bajuladores, mas não amigos; roupas de grife, mas não o conforto.
Colocavam trancas nas portas, mas não tinham proteção emocional. "Mendigam o pão da
tranqüilidade. Estão piores do que nós, meus amigos", dizia a mim e aos que o rodeavam para
beber da sua inteligência.
Ele gostava de proclamar que ricos são os que extraem muito do pouco e livres os que perdem
o medo de ser o que são. "Somos ricos e livres", gostava de falar aos miseráveis das ruas,
tentando consolá-los. Alguns não entendiam suas palavras, mas ainda assim não deixava de dizêlas.
De repente apareceu um mendigo pedindo comida a Falcão. Ele só tinha alguns trocados, mas
os deu. Despediu-se dele desejando que caminhasse em paz.
- Você deu todo o dinheiro que possuía. Não vai passar fome à noite?
- Pode ser. Mas há uma fome que saciei agora. A fome de aliviar a dor de alguém.
Marco Polo emudeceu. Após um momento de silêncio, Falcão olhou novamente para a sua
platéia invisível e perguntou.
- Você passa pelos vales da dor? Marco Polo refletiu e considerou:
- Algumas vezes sim.
- Não se intimide. Eu e o Poeta comentávamos que não há pessoas isentas de sofrimentos,
nem no meu nem no seu mundo. O que há são pessoas menos encarceradas que outras. Todos
somos reféns de algum período do passado.
Falcão não fez comentários sobre as algemas do seu passado e nem Marco Polo se atreveu a
questioná-lo. Continuou descrevendo o Poeta. Disse que quando a fome apertava, ele não pedia
dinheiro, fazia os homens viajarem.
- Viajarem?
- Sim. Viajarem para dentro de si mesmos.
- Como?
Falcão subiu num banco da praça e repetiu a cena que seu amigo fazia e que ele aprendera a
fazer. Conclamou a multidão a se aproximar. Começou a declamar altissonante uma poesia à
natureza. Os caminhantes, admirados, fizeram um semicírculo. Apontou um belo pássaro e levou
a multidão a viajar nas suas asas.
- Mais sábios que os homens são os pássaros. Enfrentam as tempestades noturnas, tombam de
seus ninhos, sofrem perdas, dilaceram suas histórias. Pela manhã, têm todos os motivos para se
entristecer e reclamar, mas cantam agradecendo a Deus por mais um dia. E vocês, porta
dores de nobres inteligências, que fazem com suas perdas?
Em seguida, colocou o esgarçado chapéu à sua frente. Calou-se e sentou-se ao lado do
deslumbrado Marco Polo. Os ouvintes, extasiados, o aplaudiram e lhe deram dinheiro. Marco
Polo indagou:
- Você recebeu muitas esmolas?
- Não recebi esmolas. Elas pagaram pela viagem que lhes proporcionei. Saiu barato.
Aquilo era demais para a mente de Marco Polo. Ele ficava atônito a cada frase de Falcão. Após
a dispersão da multidão, vários mendigos famintos se aproximaram. Falcão distribuiu o dinheiro
entre eles. Este ritual era comum.
- Você deu-lhes todo o dinheiro?
- Em meu mundo, os mais fortes servem aos mais fracos. No seu, os mais fracos servem aos
mais fortes. Qual é mais justo?
Marco Polo sentiu um nó na garganta. Achou desnecessário responder. Após este fato, Falcão
começou a contar a identidade social do Poeta. Há semanas Marco Polo esperava por isso.
Contou que o Poeta era um médico respeitado na sociedade. Casou-se e foi apaixonado por
sua esposa. Tiveram dois filhos que encantavam o casal. Amava-os até o limite do seu
entendimento. Beijava-os diariamente. Raramente um pai foi tão presente e tão afetivo. Todavia
o "pássaro" enfrentou a mais dramática tempestade noturna.
O ninho do Poeta desabou. Certa vez, toda a sua família viajava de carro. Chovia muito. Numa
ultrapassagem, ele perdeu o controle do carro e sofreu um grave acidente. Toda a sua família se
fora. Um dos filhos não morreu no ato. Ficou um período prolongado em coma. O Poeta,
também, mas por poucos dias.
Quando acordou, o mundo desabou sobre ele. Atormentava-se dia e noite com idéias
negativas que financiavam seu sentimento de culpa e esmagavam sua tranqüilidade. Como
conseqüência, teve sucessivas crises depressivas. Nada o consolava.
- Ele não se tratou, não tomou antidepressivos?
Para a surpresa de Marco Polo, Falcão comentou:
- Antidepressivos tratam da dor da depressão, mas não curam o sentimento de culpa e nem
tratam a angústia da solidão...
- Ninguém conversava com ele? Ele não fez terapia?
- Ele tinha sede de compreensão, de interiorização, e não de conselhos e técnicas frias. Poucos
têm maturidade para entender o drama de alguém que perdeu tudo. Que teoria e que técnica
psicológica poderiam arrebatar a esperança no caos? Os terapeutas tinham teoria, mas lhes faltava
sabedoria...
Tais palavras causaram um eco no jovem Marco Polo, abriram o leque da sua inteligência.
Desejou anotar com mais detalhes as conversas com seu mestre. Estimulado por seus diálogos,
também começou a refletir e a anotar os comportamentos das pessoas que o rodeavam. Pouco a
pouco, aprendia a ser um garimpeiro do indecifrável mundo da mente humana.
A conversa continuou e o jovem perguntou:
- O Poeta nunca foi internado em hospitais psiquiátricos?
- Ele se isolava por dias no quarto da sua casa para organizar suas idéias, procurar sentido para
a sua vida, mas seus psiquiatras interpretavam esse isolamento como agravamento da crise
depressiva. Por isso, o internavam. No hospital, os medicamentos embotavam seus sentimentos.
Não conseguia pensar, refletir, nem alimentar sua lucidez. Com isso, se deprimia mais ainda,
deixava de se alimentar e de ter contato social. Então conduziam-no à terapia com eletrochoque.
Não apresentou nenhuma melhora.
- Mas como ele foi parar nas ruas?
Falcão relatou que o Poeta, ao saber que seu filho tivera uma parada cardíaca e morrera na
UTI depois de mais de seis meses em coma, ficou agitado, entrou em desespero. Foi o golpe
fatal. Internaram-no novamente.
- Se tivesse sido simplesmente abraçado, ouvido, amparado, talvez tivesse suportado seu caos.
Mas foi tratado como um doente. A dor tornou-se insuportável. Não tentou suicídio, não desistiu
de viver, mas fugiu do hospital e saiu sem destino pelo mundo.
Falcão contou que, tal como ele, tornara-se um caminhante sem endereço, pois procurava um
domicílio dentro de si mesmo para descansar. Um lugar de conforto nos destroços das suas
perdas. Queria resgatar uma razão para continuar respirando fisicamente e oxigenando sua
emoção.
- Como foi a sua adaptação num ambiente inóspito? Suas crises não pioraram quando saiu
sem rumo?
- Nas ruas, o Poeta encontrou miseráveis como ele. Conheceu os incompreendidos, os
dilacerados pelas perdas, os mutilados pela culpa, os transtornados pelas psicoses, os que são
considerados lixo do sistema. Ajudar a todas essas pessoas deu-lhe ânimo.
Em seguida, apontou ao longe uma mulher indigente, chamando-a pelo nome, dizendo que ela
perdera seus pais, sua segurança, seu chão. Bárbara não tinha mais parentes nem amparo.
Tornou-se alcoólatra. Saiu pelo mundo. Apontou outras pessoas.
- Tiago era rico e perdeu tudo: dinheiro, privilégios, esperança, autoconfiança, capacidade de
lutar. Tinha status, glamour, mas perdeu sua glória e seus amigos e, não suportando o anonimato,
abandonou-se. Aquele de casaco preto é Tomás. Foi um brilhante jornalista. O alcoolismo e as
crises depressivas roubaram-lhe o emprego, a mulher, os bens e a serenidade.
Em seqüência, apontou para mais duas pessoas.
- João e Adolfo ainda possuem psicose, deliram, atormentam-se com imagens aterradoras.
Ambos foram professores universitários. Cansaram de suas crises e das internações. Fizeram do
mundo um lugar mais amplo para fugir de seus fantasmas.
Em seguida, apontou uma mulher magérrima. Joana fora modelo na sua adolescência.
Engordou, perdeu as curvas do corpo, a beleza exterior e admiração social. Foi descartada,
abateu-se, teve anorexia nervosa. Seus pais adotivos morreram. Ela ficou só. Foi internada de
hospital em hospital, até que resolveu procurar um lugar onde ninguém se preocupa com a
aparência.
- A sua sociedade usa as pessoas e as descarta como objetos. Cuidado, meu jovem! Os
aplausos não duram.
Marco Polo estava impressionado. Todas aquelas pessoas tinham riquíssimas histórias, porém
passavam despercebidas aos preconceituosos olhares dos passantes. "Ninguém teria coragem de
abandonar completamente o conforto social se não tivesse uma vida dilacerada, um motivo
fortíssimo", refletiu.
Respirou fundo e, em seguida, relatou seu encontro com o amigo. Disse que o Poeta chorara
muitas vezes ao longo das estradas. Tinha varado noites derramando lágrimas nas praças das
cidades e nos becos escuros perguntando: "Por quê? Meus filhos, onde vocês estão?" Numa
dessas praças, Falcão encontrou-o pranteando.
As lágrimas os aproximaram. Ambos não disseram nada. Choraram juntos, cada um pela sua
história. Nenhum dos dois precisou apresentar-se ou mostrar suas credenciais.
- Eu o compreendi sem ouvi-lo e ele me entendeu sem escutar-me. Das lágrimas nasceu uma
grande amizade. - Respirando pausadamente, completou: - Para o Poeta, ajudar os abandonados
era prestar uma homenagem aos seus filhos e à sua esposa. Pouco a pouco, ele resgatou a fé em
Deus. Começou a ver a assinatura do Criador no delírio de um psicótico, no desespero de um
deprimido, no perfume de uma flor, no sorriso de uma criança.
Marco Polo ouvia sua própria respiração, enquanto escutava o relato de Falcão.
- Desse modo, o Poeta saiu do casulo, levantou-se das ruínas. Fez das suas perdas uma
cortante lâmina para lapidar sua inteligência, coisa rara no seu e no meu mundo. Sua saudade
jamais foi resolvida, mas as perdas não mais o asfixiaram. Por isso, citava seus filhos e sua esposa
sem culpa e com alegria nas longas conversas com os excluídos. Eles estavam vivos no único
lugar em que jamais poderiam morrer - dentro dele.
- Você foi ajudado por ele?
A pergunta de Marco Polo ecoou dentro de Falcão. O homem forte dissipou-se, entristeceu-se
e conteve seus soluços. Sua voz emudeceu.
Marco Polo leu seu silêncio. Percebeu que Falcão não perdera apenas um amigo, mas talvez
toda a sua família. Tocou em seus ombros afavelmente em sinal de compreensão. Levantou-se.
Era o momento de partir e não de dialogar.
Enquanto caminhava para casa, sabia que seu amigo caminhava pelas avenidas do seu passado.
Roupas rasgadas, corações despedaçados, feridas abertas, enfim, uma história de segredos que
fora reconstituída e tornou-se uma brilhante poesia.
"Foi uma pena não ter conhecido o Poeta", pensou. E refletiu se não estava perdendo a
oportunidade de conhecer outros Poetas, outras pessoas interessantes que estavam passando pela
sua vida, mas que só conhecia superficialmente.
Pensou particularmente em seu pai, que morava em uma cidade distante da sua. O senhor
Rodolfo sempre fora incompreendido pelo seu idealismo social e por não se preocupar com o
amanhã.
Até sua pré-adolescência, Marco Polo o admirava e era influenciado pela sua habilidade em
contar histórias. Todavia, à medida que foi crescendo, os atritos de sua mãe, Elisabete, que era
ambiciosa, com o pai, que era desprendido, aumentaram. Ela acabou exercendo maior influência
sobre o filho nos anos que antecederam a sua faculdade.
Elisabete amava seu marido, mas freqüentemente o criticava para Marco Polo, dizendo que
seu pai deveria ter menos sonhos e mais dinheiro. Tomando o partido da mãe, Marco Polo teve
alguns atritos com seu pai. Chegou a pensar que ele era um fracassado, um alienado e uma
Pessoa mal-resolvida.
Agora que estava com uma personalidade mais formada e tinha melhor consciência crítica,
precisava julgá-lo menos e compreendê-lo mais. Seu contato com Falcão o fez ver o mundo por
ângulos que jamais vira. Precisava ir além da aparência. Necessitava descobrir os traços sutis que
compunham o quadro de pintura dos comportamentos do seu pai.
Chegando em casa, escreveu-lhe uma carta.
Pai,
Desculpe-me pelas atitudes impensadas. Eu sei que o feri pelas minhas críticas
precipitadas. Perdi tanto tempo julgando-o. Eu tenho a impressão de que não o conheço
interiormente, embora tenha vivido com você num pequeno espaço durante tantos anos.
Fomos estranhos morando na mesma casa. Gostaria de saber quem você é, quais foram as
lágrimas que você não chorou, quais foram os dias mais tristes da sua história e quais foram
seus desafios que nunca teve coragem de me contar?! Pai, se eu pudesse retroceder no tempo,
não apenas pediria que você voltasse a me contar as belas histórias de aventura, mas
principalmente que me contasse a sua própria história, falasse dos seus projetos, dos seus
sonhos, das suas derrotas. Tenho certeza de que ela é fascinante. Eu tenho muitos defeitos,
mas gostaria de ter uma nova chance de ser seu amigo.
Ao receber essa carta, o senhor Rodolfo ficou profundamente comovido. Não sabia o que se
passava com seu filho, mas tomou consciência de que também não o conhecia. Poderia ter brincado,
conversado e vivido mais momentos descontraídos com ele. Agora, separados pela distância física,
começaram a se corresponder, a se aproximar e a se admirar.
Marco Polo entendeu que um dia a maioria das pessoas precisaria recolher seus pedaços e
reescrever sua história. Contudo, aprendeu que reconstruir as relações sociais não era uma tarefa
simples - exigia audácia.
Ao anotar o último encontro com o filósofo mendigo, fechou seu texto escrevendo: "Muitos
dos que têm endereço certo passam pela existência sem nunca percorrer as avenidas do próprio
ser. São forasteiros para si mesmos. Por isso, são incapazes de corrigir suas rotas e superar suas
loucuras."
C a p í t u l o 6
Marco Polo chegou às 15 horas na praça. O dia fora cansativo, mas encontrar Falcão era um
convite a novas experiências. Ele estava com um comportamento estranho, tenso, fechado.
Parecia querer distância. Remoer o passado no dia anterior mexera com seu ânimo.
Marco Polo tentava distraí-lo, mas seu olhar era opaco, sem o brilho das outras vezes. Estava
circunspecto. Percebendo que a conversa seria um monólogo, resolveu ir embora. Respeitou seu
momento. "Não vale a pena pressionar quem não está disposto ao diálogo", refletiu. Após os
primeiros passos, Falcão disse-lhe:
- Não é recomendável que os normais se aproximem de mim.
Marco Polo, intrigado, sabia que ele não se abriria se não provocasse sua inteligência. Mas não
poderia ser estúpido. Arriscou dizer:
- Não há um normal que não seja anormal e nem um anormal que não seja passível de ser um
mestre.
Falcão olhou admirado o amigo, mas desferiu-lhe um golpe inesperado:
- Disseram-me que sou perigoso para sua sociedade. O que você espera de mim? Sou um
doente mental. É melhor desaparecer.
Marco Polo ficou calado. Sempre fora impulsivo, mas estava aprendendo a difícil arte de
pensar antes de reagir. Após um momento de introspecção, disse:
- Os aparentemente saudáveis sempre cometeram mais loucuras contra a humanidade do que
os loucos. Você não é perigoso, a não ser para os que têm medo de pensar.
Falcão esfregou a mão direita na testa, levantou-se, foi até uma flor e começou a falar com ela.
- Você é tão linda e eu sou tão rude, mas obrigado por invadir meus olhos e me encantar sem
nada exigir!
Marco Polo também se levantou. Foi até uma árvore próxima, abraçou-a, beijou-a e disse
algumas palavras em voz audível:
- Você é tão forte! Suportou tantas tormentas. Mas fortaleceu-se e hoje dá sua sombra
gratuitamente para mim que sou tão frágil. Obrigado por sua perseverança!
Falcão entreolhou sutilmente o jovem e deu um sorriso.
Os transeuntes tropeçavam uns nos outros ao ver a cena. Davam risadas. Faziam gestos
expressando que estavam diante de dois loucos. Voltando-se para eles, Falcão declarou:
- Quem nunca abraçou uma árvore ou conversou com uma flor nunca foi digno das dádivas
da natureza! Não sejam insensíveis! Aprendam a amar quem tanto lhes dá!
Envergonhadas com as idéias do mendigo, as pessoas se dispersaram reflexivas. Trinta metros
adiante, um adolescente com cabelo estilo punk abraçou um imenso tronco e beijou-o. Ao seu
lado, um idoso senhor abaixou-se diante de uma pequena flor. Parecia reverenciá-la. Um adulto
de terno e gravata também abraçou um tronco de árvore por um minuto. Outras pessoas
repetiram a cena. A sensibilidade foi contagiante.
Em seguida, os amigos sentaram-se no banco e reiniciaram uma longa conversa. Depois do
Poeta, Marco Polo se tornara a primeira pessoa para quem Falcão relataria a sua surpreendente
história. Nem seus companheiros de caminhada conheciam certos becos da sua vida.
- Por que você tem o apelido de Falcão?
- Coisa do Poeta. Dizia exageradamente que minha inteligência era aguçada como os olhos de
um falcão e minha criatividade voava alto como as suas asas. Mas, na realidade, nasci das cinzas.
- Como assim?
Uma breve pausa. Falcão olhou para sua platéia invisível e comentou.
- Eu sou Ph.D. em filosofia.
Marco Polo quase caiu do banco. O céu da sua mente clareou subitamente. Agora estava
entendendo o gênio que o ensinava.
- Fui professor de filosofia numa grande universidade. Já brilhei no pequeno mundo de uma
sala de aula, embora tenha sido sempre crítico do sistema acadêmico. Escrevi textos, orientei
teses, formei alguns pensadores.
Em seguida, falou espontaneamente da sua intimidade. Relatou que sua família era de origem
humilde e saturada de problemas. Seu pai era explosivo, materialista e alcoólatra. Sua mãe, tímida,
afetiva e vítima da agressividade do marido. Ele crescera no centro da miséria física e emocional.
Por serem pobres, seus pais não tinham condições de financiá-lo na universidade.
- Para conquistar meus sonhos, tive de estudar e trabalhar muito. Mas não trabalhei meus
conflitos.
- Você constituiu família?
Mais uma pausa. Desta vez longa e dolorida.
- Eu era considerado o melhor aluno da faculdade e o mais destacado orador. Encantei uma
linda jovem da mesma universidade. Amei e fui intensamente amado por ela. O pai dela era um
famoso e rico advogado. Dr. Pedro era fascinado pelo dinheiro e vidrado em status social.
Continuou relatando que não conseguiu dar o padrão que sua esposa tivera na casa dos pais. O
pai dela sempre estimulou a separação. Era frustrado pelo fato de a única filha não ter se casado
com um juiz ou promotor de justiça. Ter um filósofo e um pobre professor universitário na
família foi um pesadelo que sempre o perturbou.
- Os professores são heróis anônimos, meu amigo. Trabalham muito, ganham pouco.
Semeiam sonhos numa sociedade que perdeu sua capacidade de sonhar.
Ao ouvir esse relato, Marco Polo ficou embaraçado. Passava os olhos sobre a imagem de
Falcão enquanto ele discorria sobre si mesmo e não entendia como uma pessoa intelectualmente
brilhante pôde ser completamente excluída da sociedade. Ficou pensando se Falcão teve perdas
semelhantes às do Poeta. Desenhou um quadro imaginário com falecimentos, depressão e
solidão.
De repente, piscou os olhos, fez um movimento rápido com a cabeça e voltou para a
realidade. Sentiu Falcão abatido, percebeu que não queria tocar mais no assunto da família.
Marco Polo, procurou mudar um pouco a direção da conversa.
- Quando você começou a adoecer?
- Seis anos depois de me casar, comecei a ter insônia. Meus pensamentos eram agitados e
acelerados. Estava ansioso, não conseguia coordenar minhas idéias. Milhares de imagens
transitavam na minha mente num processo ininterrupto. Pouco a pouco, comecei a perder os
parâmetros da lógica. Já não conseguia distinguir a realidade da fantasia.
Falcão dissecava suas mazelas com a precisão de um cirurgião na sala de anatomia. Só
conseguia fazer tal descrição porque era um brilhante pensador que muitas vezes penetrara na sua
própria história tentando compreendê-la. Marco Polo sentia opressão no peito e nó na garganta
diante da exposição do amigo.
- Comecei a ter paranóia. Achava que algumas pessoas liam meus pensamentos e queriam
controlar minha inteligência. As idéias de perseguição me atormentavam. Ter inimigos fora de si
é perturbador, ter dentro da própria mente é apavorante. A sensação de ser invadido no único
lugar em que devemos ser livres me assombrava.
- Você não tinha controle do seu raciocínio?
- No começo, desconfiava dos meus personagens, tinha certa consciência de que eram irreais,
mas eles se avolumaram e pouco a pouco comecei a lutar com eles como se fossem reais. Eles
tornaram-se predadores e eu, a caça.
Marco Polo estava perplexo com o relato vivo da destruição de uma complexa personalidade.
- Nesse embate delirante, perdi a maior dádiva de um ser humano: a sua consciência crítica, a
sua identidade. Não sabia quem eu era. A minha mente se tornou um tenebroso teatro. Antes da
psicose, eu era o ator principal desse teatro, semanas depois era um ator coadjuvante,
meses depois tornei-me platéia da minha miséria psicológica. Foi horrível. Fiquei confuso,
desorientado e amedrontado. Minha estrutura intelectual esfacelou-se.
Marco Polo não sabia o que dizer. Não conseguia formular uma pergunta. Falcão parecia
alguém tão lúcido, não imaginava que tivesse vivenciado tamanho sofrimento. Passado o
primeiro impacto, indagou:
- Como foi que você parou de lecionar?
- Os alunos admiravam minha eloqüência. Era o professor mais procurado e o mais solicitado
para ser paraninfo das turmas. Batalhava para que aqueles garotos pensassem, não fossem
formatados, não se tornassem repetidores de idéias, mas engenheiros de novos pensamentos.
Mas, quando comecei a ter minhas crises, foi um desastre.
Falcão disse que quem o conhecia ainda o respeitava, mas os demais zombavam dos seus
gestos bizarros. Às vezes, ficava dias sem dar aulas. Fez mais uma pausa e contou como fora
excluído da universidade.
Certa vez, ensinava sobre a ética dos filósofos gregos para uma turma de direito. A sala estava
cheia. Falava com vibração. Subitamente interrompeu sua fala e começou a discutir com os
personagens do seu imaginário. Os alunos se entreolhavam assustados.
- Eu delirava e alucinava, sentia-me na Grécia Antiga, sentado num cenáculo repleto de
pensadores, entre eles Platão. Levantei a voz e proclamei: "Platão, a ética está morrendo! A
violência faz parte da teia social. As pessoas não sabem perscrutar os recônditos das necessidades
dos outros!"
Ao fazer a descrição dos fatos ocorridos na sala de aula, Falcão inspirou profundamente e
soltou o ar como se quisesse expulsar os demônios do passado. Marco Polo estava ansioso para
saber do desfecho.
- Ao ouvir minha fala, os alunos aplaudiam e assobiavam, tanto pelo brilho das idéias quanto
pela loucura do espetáculo. Não compreendiam que eu estava num surto psicótico.
Falcão comentou que os aplausos dos alunos o excitaram. Ele subiu na cadeira e continuou
seu discurso com mais veemência. Alguns gritaram: "Louco! Louco!" Então voltou-se para eles e
começou a provocá-los.
- Gritei para os alunos: "Eis uma platéia de servos gregos! Sorriem das misérias alheias porque
escondem suas misérias debaixo das suas vestes. Vocês não sabem filosofar, só sabem ser
comandados. Servos!"
Marco Polo exclamou:
- Mas suas idéias tinham coerência!
- Não há louco que não seja lúcido e nem lúcido que não seja louco. O problema é que os
psicóticos mesclam idéias coerentes com delírios na mesma cena. Os pensamentos ficam
entrecortados. Eu parava de falar com os alunos e começava a conversar com meus personagens.
Rebatia um, concordava com outro, discutia com outros.
Todavia, brincando com seu passado, Falcão disse a Marco Polo:
- Eu fui tão genial que Platão ficou assombrado com meus pensamentos...!
Mas, em seguida, olhando vagamente para o espaço, recordou o desfecho do doloroso
momento. Quando provocou os alunos, saiu imediatamente dos aplausos para as vaias. Alguns
chamaram rapidamente o diretor da faculdade.
O diretor solicitou que três seguranças o retirassem do ambiente. Ele se recusou. Diante do
tumulto, outros professores se aproximaram. Eles o agarraram como a um animal.
- Senti-me como Sócrates, condenado à cicuta, destinado ao eterno silêncio. E bradei
novamente: "Hipócritas! Destituam as armas! Enfrentem-me no campo das idéias!"
Diante do breve silêncio de Falcão, Marco Polo se antecipou com ansiedade:
- Eles o levaram para um hospital psiquiátrico?
- Quando puseram as mãos em mim, eu tinha a força de um gladiador diante das feras.
Consegui escapar. Subi na mesa e proclamei o hino à liberdade, uma poesia filosófica que escrevi
nos momentos de lucidez.
- Você ainda se lembra dela?
- Algumas frases.
Falcão subiu no banco da praça e proclamou-a. Ao ouvi-la, uma multidão se ajuntou.
Vocês podem calar a minha voz, mas não os meus pensamentos! Vocês podem acorrentar
meu corpo, mas não a minha mente! Não serei platéia dessa sociedade doente, serei autor
da minha história! Os fracos querem controlar o mundo; os fortes, o seu próprio ser! Os
fracos usam as armas; os fortes, as idéias!
Após proclamá-la, a platéia o ovacionou. Falcão sentou-se e relaxou. Voltou a falar com Marco
Polo. Contou que o diretor chamara a polícia que por sua vez chamara a ambulância de um
hospital psiquiátrico. Colocaram-no numa camisa-de-força e injetaram-lhe uma dose de um
potente tranqüilizante.
Falcão fitava os enfermeiros. Sentia-se vítima da maior injustiça do mundo. Enquanto a droga
não o induzia ao sono, o espetáculo prosseguia. Continuava a conversar com seus personagens
fictícios. Devido à resistência à internação, foi considerado no hospital um paciente com alto
potencial de agressividade. Ficou isolado por uma semana num quarto mal iluminado.
O que ninguém foi capaz de fazer, as drogas conseguiram: calar as idéias do filósofo. Doses
maciças de medicamentos invadiram seu cérebro, atuaram no processo de leitura da memória,
bloquearam as janelas da sua história, obstruíram a construção de pensamentos, refrearam sua
racionalidade. Parecia um zumbi no hospital. Seus delírios e alucinações foram silenciados -
todavia, o pensador também.
Ficou dois meses internado. Foi a primeira de uma série de internações. Depois que saiu do
hospital, retornou à universidade. Sua musculatura estava rígida, sua voz pastosa e trêmula, seu
raciocínio lento. Não era mais o eloqüente Falcão. A medicação que o ajudou foi a mesma que o
aprisionou. Estava numa camisa-de-força química.
Alguns alunos, ao encontrá-lo no corredor, debochavam disfarçadamente, mas ele percebia.
Outros, que conheciam sua inteligência, se achegavam, abraçavam-no e agradeciam sua
sabedoria, mas ficavam espantados ao vê-lo salivando e sem expressão facial. Alguns saíam com
lágrimas nos olhos.
- Eu queria voltar a fazer o que mais amava: ensinar. Mas como um louco poderia dar aulas? O
reitor da universidade disse que eu não Poderia mais lecionar. Para ele e para alguns diretores dos
cursos em que eu lecionava, minha doença era incurável e contagiosa, como nos tempos da
varíola.
Eles acreditavam que Falcão poderia tumultuar o ambiente com sua Psicose. Não percebiam
que os pacientes psicóticos precisam de inclusão e não de exclusão. Não compreendiam que
muitos deles são dotados de refinada inteligência e sensibilidade. Já não bastava o ônus pesado da
doença que transportavam, tinham que carregar o ônus da rejeição.
- Você esquece milhares de sofrimentos na vida, mas o sentimento de rejeição é uma dor
inesquecível.
Solicitaram que Falcão se afastasse e se aposentasse por incapacidade. Sentindo-se inútil, seu
quadro se agravou. Sua auto-estima e autoconfiança estilhaçaram-se. Não conseguia mais ter
dignidade diante de sua família e da sociedade.
Desse modo, foi excluído. Disse que sempre se sentira fora do ninho dos intelectuais, mas,
agora, fora banido sem compaixão.
C a p í t u l o 7
O medo de enlouquecer sempre perturbou o ser humano. O fato de perder o juízo, não
discernir a realidade, desorganizar o pensamento, romper com a consciência de si mesmo e do
mundo angustia milhões de pessoas de todas as eras e todas as sociedades.
Muitos crêem erradamente que enlouquecerão porque se afligem com idéias absurdas, sofrem
por pensamentos fixos, angustiam-se por imagens mentais que nunca quiseram produzir. Mas,
por terem coerência em seu raciocínio e saberem distinguir a imaginação da realidade, não
desenvolvem confusão mental.
Loucura é um nome popular carregado de discriminação e de falsos medos. O nome científico
é psicose. Há vários tipos de psicoses que se apresentam com vários graus de intensidade e,
conseqüentemente, com vários níveis de superação.
A mais temível das psicoses havia penetrado no tecido da personalidade de Falcão,
comprometendo a sua racionalidade. Embora tivesse períodos de serenidade, durante as crises ou
surtos psicóticos, ele perdia a consciência de quem era, do que fazia e, às vezes, de onde estava.
Não conseguia administrar seus próprios atos.
Como tinha refinada cultura e era um pensador, nos períodos de lucidez esforçava-se para
encontrar as causas do seu caos psíquico. Um esforço dantesco para quem estava com seu eu
fragmentado. Todavia, O tratamento psiquiátrico não evoluía.
Havia pouca troca de idéias entre ele e seus médicos psiquiatras. Não discutiam sobre "como"
e "por que" construía em seus delírios personagens que o atormentavam. Psiquiatra e paciente
viviam mundos distintos e usavam linguagens distintas.
No outro dia Falcão continuou a contar a sua história ao jovem amigo. Sentia necessidade de
falar, e Marco Polo, a necessidade de ouvir. Por isso, indagou:
- Você ficou decepcionado com seus psiquiatras?
Com a voz pausada, ele disse:
- Não com todos. Em minhas internações encontrei alguns psiquiatras humanos, solidários e
cultos, mas o contato era raro. Com a maioria, eu me decepcionei. Devido às idéias de
perseguição e a crença fatal de que estava sendo controlado, diagnosticaram minha doença como
esquizofrenia paranóica. Sabe o que é carregar o peso de ser um psicótico?
- Nem imagino.
- É inimaginável. Os diagnósticos podem ser úteis para os psiquiatras, mas podem tornar-se
um cárcere para os pacientes. Eu não era mais um ser humano, era um esquizofrênico.
Falcão estava com os olhos embebidos de lágrimas. Tais palavras se tornaram inesquecíveis
para Marco Polo.
- Você tentava ajudar-se?
- A única coisa saudável que me restava quando eu saía das minhas crises era pensar em meu
mundo, tentar entender-me, reorganizar minha personalidade fragmentada, mas me tratavam
como um doente mental incapaz de construir brilhantes idéias e dar grandes saltos interiores.
Sentia-me como um rio represado que produzia muitos pensamentos perturbadores mas não
tinha para onde escoá-los.
- Por que os doentes mentais são tão discriminados na sociedade?
- Nunca leu Foucault?
- Não!
- Devia ler. Foucault escreveu a História da loucura na Idade Clássica. Esta obra mostra as
raízes antropológicas pela qual se classifica um indivíduo como louco. A psiquiatria formatou
essa classificação e marginalizou todos os comportamentos que se afastavam dos
padrões de comportamento universalmente aceitos em uma sociedade. Muitos erros foram
cometidos, muitas pessoas foram tachadas como loucas apenas por ter comportamentos que
fugiam ao trivial.
- Qual a sua definição de loucura?
- Quem pode defini-la? Classicamente loucura é toda desagregação duradoura da personalidade
que foge aos parâmetros da realidade. Mas quais são esses parâmetros? São psicóticas as pessoas
que se sentem perseguidas por personagens criados em seu imaginário. Mas as pessoas que
perseguem personagens reais, como generais que deflagram guerras, soldados que torturam,
policiais que matam, políticos que controlam, o que são? São psicóticas as pessoas que têm
delírios de grandezas, que acham que são Jesus Cristo, Napoleão, Buda. Mas e os mortais que se
sentem deuses pelo dinheiro e poder que possuem, que não se importam com a dor dos outros,
são o quê? Para mim há uma loucura racional aceita pela sociedade e uma loucura irracional
condenada por ela.
Essas palavras saíram dos porões da memória de Falcão, do lugar mais secreto do seu ser.
Revelava um pensador culto com um passado despedaçado e uma emoção profundamente
ferida. Elas se alojaram para sempre na memória do jovem Marco Polo. Falcão completou:
- Alguns psiquiatras diziam que minha psicose era crônica, incurável, porque tinha fundo
orgânico. Estava condenado.
- Como assim?
- Diziam que algumas substâncias estavam alteradas no meu cérebro e só com medicamento
poderiam corrigi-las. Para eles, o aparelho psíquico é apenas um caldeirão de reações químicas.
- Você não concorda com essa tese?
- Como um filósofo pode crer numa tese tão rígida, limitada e débil?! A filosofia tem milênios
de existência. A psiquiatria tem pouco mais de um século. Ela teve avanços impressionantes, mas
ainda está na sua adolescência e, como a maioria dos adolescentes, a psiquiatria tem um
comportamento prepotente. É uma ciência importante, mas não é uma ciência madura. Falta-lhe
humildade para compreender o mundo insondável da psique humana.
Falcão estudava a história da psiquiatria, seus avanços, hipóteses e limitações. Sua cultura nesse
campo tornara-se vasta, superava a da maioria dos psiquiatras. Em seguida, fez uma complexa
explanação sobre a relação da psique - alma - com o cérebro.
Disse que muitos filósofos discorreram sobre a metafísica, como Aristóteles, Agostinho,
Descartes, Spinoza. Revelou que a metafísica é a área da filosofia que discursa sobre a alma
humana, afirmando que ela ultrapassa os limites estritamente físicos do cérebro. Descartes,
seduzido pela metafísica, a considerava como objeto primeiro do mundo das idéias. Kant a
submeteu aos limites da razão. Todavia, a metafísica sofreu debates e críticas acaloradas a partir
do materialismo de Nietzsche, do determinismo histórico de Hegel, do marxismo, do
existencialismo de Sartre, do positivismo lógico. Assim, deixou de ser debatida.
- Numa sociedade materialista, lógica, pragmática, encarcerada pela matemática e fascinada
pela computação, a metafísica foi quase aposentada como objeto de discussão científica.
Falcão defendia a metafísica como explicação para os indecifráveis fenômenos psicológicos
que nos tecem como seres pensantes. Após esse comentário, olhou para seu jovem discípulo e
questionou:
- Somos apenas um cérebro sofisticado que tomba numa sepultura para não ser mais nada?
Nossa história se esgota nessa breve existência? São débeis os bilhões de seres humanos ligados a
milhares de religiões que crêem numa vida que transcende a morte? O intelecto humano é
apenas um computador cerebral? Não creio. Eu creio que o mundo bioquímico do cérebro não
pode explicar completamente as contradições dos pensamentos, o território das emoções, os
vales dos medos.
Afagando a cabeça de Marco Polo, Falcão foi longe no seu raciocínio:
- Grave essa frase, meu filho: A vida é um ponto de interrogação. Cada ser humano, seja ele
um intelectual ou iletrado, é uma grande pergunta em busca de uma grande resposta...
Comentou que o tamanho das perguntas determina o tamanho das respostas. A filosofia
perguntou muito ao longo de milênios, e a psiquiatria, por ser jovem, perguntou pouco e
respondeu rápido. Quem responde rápido corre riscos enormes.
Marco Polo levou um choque de lucidez. Tentava acompanhar o pensamento de Falcão, mas
não era uma tarefa fácil. As idéias filosóficas e a compreensão de vida do velho amigo mudariam
para sempre sua visão como futuro psiquiatra. Por desejar explorar o desfecho da sua doença,
perguntou:
- Como era sua relação com os psiquiatras?
- Os psiquiatras têm um poder que nenhum ser humano jamais teve na história. Os reis e
ditadores tiveram armas para ferir o corpo e aprisioná-lo. Os psiquiatras têm medicamentos que
invadem o inconsciente, um lugar onde nascem as idéias e as emoções. Um espaço jamais
penetrado, que nem os próprios psiquiatras conhecem.
- Você precisava dessas drogas para combater seus delírios?
Com ar de tristeza, o pensador expressou:
- Meu cérebro precisava de medicamentos, mas minha alma precisava de diálogo. Todavia,
quando somos rotulados como psicóticos, raramente alguém reconhece que temos um mundo
complexo com necessidades intrincadas. Criamos monstros em nossas crises e temos de conviver
sozinhos com eles. Raramente alguém quer reparti-los conosco.
Marco Polo se interiorizou, olhou para sua história e percebeu que também criava seus
monstros e não os dividia.
- Creio que todos nós criamos nossos monstros, nossos medos, inseguranças, pensamentos
mutiladores, mas raramente encontramos pessoas dispostas a dividi-los.
- Quando não há como reparti-los, temos de enfrentá-los, caso contrário, não sobrevivemos.
Mas a maioria foge de seus monstros.
Marco Polo começou a ter um apreço pela filosofia, o que o levaria a se tornar um estranho no
berço da medicina. Ao interpretar a história de Falcão, compreendeu que os gênios e os
psicóticos sempre estiveram próximos, sempre foram incompreendidos. Freqüentemente a
solidão os envolveu.
Percebeu também que, no fundo, todos somos abraçados por alguns tentáculos da solidão.
Alguns falam muito, mas se calam sobre aspectos íntimos de suas vidas. Concluiu que uma dose
de solidão estimula a reflexão, mas a solidão radical estimula a depressão.
Compreendeu ainda que, quando o mundo nos abandona, a solidão é tolerável; mas, quando
nós mesmos nos abandonamos, ela é insuportável. Falcão rompeu sua solidão, tornou-se
companheiro de si mesmo e encontrou um grande amigo, o Poeta.
C a p í t u l o 8
No outro dia Falcão revelaria a parte mais dolorosa da sua história. Queria andar, movimentarse,
para discorrer sobre sua úlcera emocional. Marco Polo o acompanhou. Pausadamente, entrou
logo no assunto.
- Débora, minha ex-esposa, era uma mulher linda, afetiva e corajosa. Enfrentou seu pai e sua
sociedade para estar ao lado de um filósofo pobre. Apreciava meu modo simples de viver. Correu
riscos por me amar. Lutou por mim. No começo, acreditou até em meus delírios. Mas
não suportou. Eu a feri muito, sem querer machucá-la.
Enquanto caminhavam, suas lágrimas saíram da clandestinidade e começaram a percorrer as
estrias do seu rosto.
- Você teve filhos?
Falcão olhou para o céu. Um sopro de brisa afagou seu rosto. Seus cabelos longos e brancos
caíram-lhe sobre o rosto. Respirou densamente e, como se estivesse viajando no tempo, meneou
afirmativamente a cabeça.
- Um único filho.
Pela primeira vez, mostrava-se sem qualquer proteção diante de Marco Polo. O ponto central
de sua vida estava sendo desvendado. Marco Polo pensou que provavelmente o filho estivesse
morto. Não queria perguntar, mas, diante do silêncio prolongado do amigo, não se conteve:
- Seu filho está vivo?
Imagens mentais povoaram o imaginário de Falcão, como se fossem representações
cinematográficas. Ele se viu de braços abertos e seu filho com a idade de quatro anos correndo
para um abraço amoroso. O menino dizia: "Papai, eu te amo." Brincando com ele, o pai
respondia: "Eu não te amo, eu te superamo! Sou apaixonado por você, meu pupilo." Pupilo era o
apelido carinhoso que o pai lhe dera. Pegava seu menino no colo, desarrumava seus cabelos e lhe
fazia cócegas. Ao voltar a si, comentou:
- É provável que o Lucas esteja vivo. Recebi raras notícias sobre ele.
Marco Polo, afoito, fez uma pergunta óbvia, aquela que todo mundo é capaz de fazer e a que
Falcão menos precisava ouvir:
- Por que não recebe notícias constantes sobre ele?
A resposta foi contundente:
- Porque elas me esmagam de sentimento de culpa. Marco Polo sentiu um nó na garganta.
- Quanto tempo faz que não o vê?
- Mais de vinte anos.
"Vinte anos é muito tempo", pensou Marco Polo. Sentiu que, se estivesse no lugar de Falcão,
jamais se afastaria do seu filho, fosse qual fosse a circunstância. Criticou-o rapidamente, sem
conhecer a verdadeira história.
Falcão prosseguiu contando que, quando saía das suas crises, tinha vergonha da sociedade,
sentia-se julgado e observado por todos, não por estar delirando, mas por considerar-se o último
dos seres humanos. Compreendia a dor da rejeição que os leprosos na época de Cristo sentiam
ao serem excluídos da sociedade.
A partir dos cinco anos de Lucas, Falcão começou a ter crises. Todavia, amava tanto seu filho,
que nos períodos de lucidez fazia um esforço descomunal para brincar com ele e ensinar-lhe. Era
sua razão de viver. Mas as crises aumentaram.
Seu último psiquiatra seduziu sua esposa. Débora estava frágil, desprotegida e carente.
Envolveu-se com ele. Certa vez, Falcão descobriu algumas cartas secretas que o psiquiatra
escrevera para ela. Apesar das doses altas de remédios, conseguiu chorar, os lábios trêmulos, mas
não reagiu. Sabia que a perdera.
O psiquiatra, faltando com a ética, disse a ela que Falcão seria sempre um doente mental.
Estimulou sua separação para o bem do próprio filho. Confusa, Débora pediu conselho ao pai.
Dr. Pedro, que não gostava do filósofo pobre, tinha verdadeiro desprezo pelo filósofo psicótico
Só faltou comemorar.
Enquanto ouvia a história do amigo, Marco Polo começou a desculpá-lo. Reconheceu mais
uma vez como seus julgamentos precipitados eram superficiais.
Devido às internações, Falcão ficava semanas sem ver Lucas. A dor do afastamento da esposa
era suportável, mas a do filho, indecifrável. Algumas vezes a saudade era tão grande que Falcão ia
pegá-lo na escola, mesmo fazendo gestos e trejeitos com os seus personagens fictícios. Os
garotos zombavam dele, o menino procurava defender o pai, brigava corn eles.
- Como pode um pequeno filho defender seu pai, um homem? Lucas me abraçava e me
protegia! - falou, com orgulho do filho. Mas, em seguida, caiu em si e ficou aflito, pois não o
tinha mais.
Aceitou a separação de Débora, embora não tivesse muita condição de escolher. Facilitou as
coisas, porque queria o melhor para ela e para o filho. Já causara muitos transtornos. Na
separação, o juiz, conhecedor do caso, estabeleceu que ele visitasse Lucas uma hora duas vezes
por semana. Era pouco para quem amava muito.
Falcão não conseguia cumprir a ordem judicial. O juiz, diante da carta do psiquiatra, namorado
de Débora, considerou o pai perigoso para a educação do filho. Restringiu a visita a uma hora
por semana e com supervisão de uma assistente social. Não podia ficar mais a sós com Lucas.
Dois grandes amigos foram separados por uma parede judicial.
- Esse foi o motivo de sua saída para o mundo?
Falcão balançou a cabeça dizendo que não. Teria de tocar no epicentro da sua miséria
emocional. Nem o Poeta tinha ido tão Longe ao explorar a história do gênio das ruas.
Descreveu, assim, o capítulo mais dramático da sua vida. Seu filho ia fazer dez anos. Para
comemorar o aniversário do neto e a separação da filha, bem como para revelar seu status social
e os jardins, do seu palacete, Dr. Pedro mandou preparar uma festa memorável.
Centenas de pessoas foram convidadas. Entre elas não apenas os colegas de Lucas, mas um
grande número de advogados, promotores, juizes e autoridades da cidade.
Na penúltima visita supervisionada, Lucas comentou com o pai sobre a festa e ingenuamente
insistiu que ele fosse. A assistente social, que recebia dinheiro do Dr. Pedro para controlar a
relação, torceu o nariz. Disse que não era uma boa idéia. Falcão, reticente, comentou apenas que
pensaria a respeito.
A assistente social comentou com o Dr. Pedro o pedido do menino. Lucas recebeu do avô
uma severa repreensão. "Seu pai vai estragar a festa. Você não sabe que ele é louco?", disse
intempestivamente. Lucas caiu em prantos e gritava: "Ele é meu pai!" Dr. Pedro, consternado,
abaixou o tom de voz e tentou explicar sua violência diante de uma frágil criança.
Na última visita, o menino contou o que o avô lhe dissera. Falcão tentou esconder suas
lágrimas. Confessou ao filho: "O papai está doente, mas vai ficar bom. Não tenha medo, pupilo.
É melhor eu não ir nessa festa."
Falcão havia dito várias vezes para Lucas não se importar quando ele estivesse falando ou
gesticulando sozinho. Pedia que olhasse para o coração de seu pai. Preocupava-se com o
desenvolvimento da personalidade do filho, e por isso, dentro das suas limitações, tentava
vaciná-lo contra suas perturbações. Lucas só raramente ficava constrangido ou tinha vergonha
de Falcão.
A assistente social apoiou a decisão de Falcão de não ir à festa. Posteriormente deu a boa
notícia ao Dr. Pedro. Embora aliviado, ele contratou uma equipe de seguranças para evitar
eventuais transtornos.
No dia da festa, Falcão estava muito angustiado, ansioso e solitário. Bateu uma saudade
incontrolável do filho. Era seu décimo aniversário, queria pelo menos beijá-lo nesse importante
dia. Resolveu fazer uma breve surpresa. Apareceu no palácio do ex-sogro.
Habilidoso, vestindo fraque e fingindo ser um garçom, burlou o esquema de segurança
facilmente. Entrou no imenso jardim. Nunca o vira tão decorado. Deparou-se com Débora ao
longe, abraçada com o namorado. Recebeu um golpe. Ela o viu e ficou apreensiva. O namorado
sussurrou: “Esse cara tem de ser internado imediatamente." Foi avisar o anfitrião.
Muitos que o conheciam se entreolhavam como se ele fosse um terrorista. Rostos tensos e
cerrados, conversas ao pé do ouvido, Falcão tornou-se o centro das atenções. Ser observado o
perturbava. Constrangido, saiu rapidamente à procura do filho.
Lucas correu ao seu encontro, abraçou-o e beijou-o. Estava exultante. Levou-o para ver o
imenso bolo de dez camadas. Nas laterais havia dizeres escritos em letras grandes com glacê azul:
"Parabéns, Lucas, você é um vencedor!"
- Filho, você realmente é um vencedor.
- Obrigado, papai, você também é.
Novamente se abraçaram. A emoção de Falcão experimentava uma aura surreal. Então, para
espanto dos convivas, ele gritou:
- Este é o melhor filho do mundo!
As pessoas se aglomeraram. Animado com o movimento, Falcão resolveu elogiar Lucas com
frases de alguns filósofos e pensadores que exaltavam a luta pela vida.
- Olhei para o pequeno Lucas e proclamei: Epicuro disse que, se quisermos vencer, devemos
gravar em nosso espírito o alvo que temos em nossa mente. Einstein disse que há uma força
maior que a energia atômica: a vontade! Confúcio comentou: para vencer na vida, exija
muito de si e pouco dos outros! Pascal bradou: para quem deseja ver, haverá sempre luz
suficiente; para quem rejeita ver, haverá sempre obscuridade! Sófocles disse: procure e
encontrará, pois o que não é procurado permanece para sempre perdido. Lucas, não tenha medo
da luz! Procure o tesouro que está dentro de você!
Algumas pessoas entraram em pânico, outras em êxtase diante das idéias de Falcão. Tomando
ciência da situação e preocupadíssimo com o transtorno do ambiente, Dr. Pedro acionou
rapidamente o esquema de segurança para bani-lo da festa. Os seguranças invadiram a área e
começaram a fazer um círculo em torno da mesa. As pessoas começaram a se dispersar,
apavoradas.
- Subitamente vi uma cena dramática. Um homem de terno preto sacou uma arma, apontou-a
para mim e não atirou. Em seguida, apontou-a para o meu filho e engatilhou-a. Quando ele ia
atirar, joguei-me na frente de Lucas. Caí em cima do bolo, derrubei tudo o que
estava em cima da mesa. As pessoas gritavam como se estivessem sofrendo um ataque terrorista.
Ninguém se entendia. Não houve mais festa.
- E o assassino?
- Não havia assassino. Não havia arma. Eu estava alucinado. O personagem era um advogado
que tirou um lenço do bolso e apontou o dedo para mim e para Lucas. Mais uma vez feri
profundamente meu filho.
Marco Polo engoliu a saliva. Estava abalado. Ficou paralisado, não sabia o que dizer e como
reagir.
- Não vai me perguntar por que não vi mais meu filho?
Marco Polo, constrangido, acenou com a cabeça que não. Era muita dor soterrada nos solos
de uma vida. Falcão não interrompeu a narrativa.
Dr. Pedro o chamou em seu suntuoso escritório. Na sua presença, três advogados e duas
advogadas que trabalhavam para ele. Afirmou que falava em nome de Débora, embora fosse
mentira.
Comentou que tinha um laudo de um conceituado psiquiatra dizendo que Lucas poderia
tornar-se um doente mental, como o pai, se este continuasse a visitá-lo e fazê-lo passar por
escândalos e situações estressantes. Se ele o amasse de verdade, deveria desaparecer de sua vida.
"É a única possibilidade de Lucas ter saúde mental", completou ardilosamente o ex-sogro.
Falcão pegou o relatório e o leu atentamente. Ficou perplexo. Andava de um lado para o outro
sem parar. A idéia de que seu filho pudesse tornar-se um psicótico há anos o torturava. Chorou
como criança na frente de todos os advogados.
Aflito, ele se perguntava em tom alto: "Para onde eu vou? Meus pais já morreram, meus
parentes não me toleram, meus amigos se afastaram. Para onde eu vou?" Depois, bradava:
"Lucas! Querido Lucas! Eu o amo! Perdoe-me!" Alguns advogados ficaram comovidos. Dr.
Pedro Parecia uma pedra dura e fria.
- Então, por amar muito meu filho, resolvi sair da vida dele e permitir que ele construísse uma
história diferente da minha. Não há preço tão alto do que abandonar seu próprio filho. Talvez
seja mais perturbador do que vê-lo sem vida.
Marco Polo mergulhou dentro de si. Sua alma chorava profusamente. Teve vergonha do
quanto prejulgara Falcão.
- Tomei as nuvens como lençol, fiz da noite meu cobertor e do álcool meu remédio. Tive
crises nas ruas. Andei desorientado e errante. Felizmente, depois de vários anos, encontrei o
Poeta. Com a sua ajuda enfrentei meus monstros, lutei com meus delírios, destruí meus fantasmas,
venci as algemas do meu alcoolismo. Reconstruí-me, reescrevi minha história.
- Como ele fez isso?
- O Poeta me aconselhou a usar minhas próprias ferramentas para superar minhas crises.
Pensei, penetrei nos textos de filosofia e então descobri a pérola da sabedoria. O Poeta já a havia
encontrado, pois, apesar de médico, sempre amou o mundo das idéias, sempre estudou filosofia.
- Qual ferramenta? - perguntou Marco Polo, admirado.
- A arte da dúvida.
- A dúvida? Como assim.
- Tudo aquilo em que cremos nos controla. Se o que você crê é saudável, tal crença o ajudará.
Mas se o que você crê é destrutivo, tal crença o algemará. Desse modo, usei a arte da dúvida para
questionar tudo aquilo que doentiamente me controlava, como os pensamentos angustiantes, as
imagens irreais, as idéias de perseguição.
Relatou que todos os grandes pensadores, como Isaac Newton, Freud, Thomas Edison,
usaram, ainda que intuitivamente, a arte da dúvida para combater as idéias correntes e gerar
novas idéias. Falcão usou-a para combater as idéias perturbadoras e gerar idéias tranqüilizadoras.
E acrescentou:
- Quem despreza a dúvida paralisa a sua inteligência.
- Desculpe-me, mas não entendo como você fazia.
Relatou que saía gritando pelas estradas contra os personagens que o assombravam: "Eu
duvido que vocês existam! Por que não posso ser livre? Ninguém me persegue, eu me persigo! Eu
os criei e eu os destruirei! Vocês são uma farsa!" O Poeta não dizia nada, apenas o acompanhava
calado e solidário. Quando estava nas praças, Falcão gritava em seu interior. Ninguém ouvia, mas
ele guerreava contra os carrascos no seu inconsciente.
Fez esse exercício dia e noite, semana após semana, mês após mês. Construiu, assim, pouco a
pouco, uma plataforma em seu intelecto para distinguir os parâmetros da realidade. A arte da
dúvida estimulou a construção da arte crítica. Deste modo, começou a criticar a cada instante
qualquer idéia delirante. Foi uma tarefa difícil, árdua e prolongada. Entretanto, um ano depois
Falcão tinha organizado sua mente.
- Não houve necessidade de medicamentos?
- Se o Poeta fosse meu terapeuta no período em que tomei medicação, poderia não ter
perdido minha esposa e meu filho - disse, consternado.
Relatou que, se tivesse tomado medicamentos em doses que não bloqueassem seus
pensamentos, facilitaria a aplicação da arte da dúvida e da crítica, estruturaria seu eu - que
representa sua capacidade de decidir - e aceleraria seu tratamento.
- Quem se preocupa em alicerçar o eu através da arte de pensar nessa sociedade superficial?
Até nas universidades bloqueia-se o eu, obstrui-se a capacidade de decidir. Milhões de estudantes
se preparam para atuar no mundo de fora, mas permanecem meninos no mundo de dentro -
expressou indignado o gênio.
- Você teve tranqüilidade depois de organizar seu raciocínio?
- Não! A mesma luz que ilumina os olhos expõe nossas mazelas. A lucidez revelou minhas
perdas, meus erros, escândalos. Não tinha mais nada. Nem esposa, nem filho, nem minhas aulas.
Surgiu, então, o temível monstro da culpa.
Houve momentos em que Falcão pensava em desistir da vida. Felizmente, ele e o Poeta
reuniram suas ruínas e ajudaram-se mutuamente a sobreviver ao demônio da culpa. Saíram pelas
estradas, dormiram ao relento e viajaram juntos para o epicentro dos seus terremotos
emocionais. Viram as perdas por outros ângulos, aceitaram suas limitações, cantaram, sorriram,
brincaram com a vida, deixaram de brigar com ela.
Marco Polo desejou ter participado dessas andanças. Sentiu que havia mais excitação nelas do
que nos melhores filmes de Hollywood. Em seguida, perguntou:
- Se há anos você recobrou sua plena consciência, por que não foi procurar seu filho?
Falcão temia essa pergunta. Ela já o atormentara muitas vezes. Fitou o amigo nos olhos e
declarou com humildade:
- Venci muitos inimigos dentro de mim. Mas não venci o medo de não ser aceito. Preferi ter a
imagem do amor do meu filho nos meus sonhos a ter de enfrentar a dura realidade de que ele
talvez não me ame mais. Ter um pai psicótico trouxe-lhe sofrimento; o que ele sentiria ao ter um
pai mendigo?
- Não sei responder - disse o jovem Marco Polo.
- Talvez um pai dado como morto seja menos doloroso. Mas não sei. Na vida fazemos
escolhas. Em toda escolha há perdas. Eu escolhi e perdi muito. A capacidade de escolha que me
mantém consciente é a mesma que, às vezes, fere minha própria consciência.
Falcão reclinou-se no banco. Estava fatigado pelo peso das recordações. Queria descansar. O
sol se recolhia, a noite surgia sorrateiramente. Os pássaros, agitados, procuravam um lugar entre
as folhas das árvores para repousar. Fascinado com tudo o que ouvira, Marco Polo despediu-se
do amigo tocando-o profundamente:
- Eu não teria feito melhor escolha. Se fosse seu filho, teria muito orgulho de você.
Falcão suspirou aliviado. Levantou-se, abraçou-o afetuosamente. Sentiu-se como se estivesse
abraçando Lucas. Beijou-o no rosto.
- Obrigado por ouvir este velho!
- Não. Obrigado por me deixar ouvi-lo.
Realmente era um privilégio ouvir Falcão. Marco Polo aprenderia com ele mais do que em
décadas de escola. Em seguida, o pensador deitou-se no banco. Jamais o achou tão macio. A
noite foi suave. Tinha conforto em seu interior.
C a p í t u l o 9
Ao percorrer a sala de anatomia, Marco Polo não sabia ao certo qual era o corpo do Poeta, mas
apenas um palpite e estava correto. Seu semblante dócil era quase inconfundível, mas não tocava
em sua história com ninguém. Não acreditariam.
A maioria dos seus colegas o respeitava. Admiravam sua capacidade crítica. Mas alguns possuíam
uma incansável energia para debochar. Coisa de jovens. Apontavam um cadáver e diziam: "Este
cara aqui foi um grande artista!" Riam deslavadamente. Quando ficaram sabendo que Marco Polo
tinha um amigo mendigo, as zombarias aumentaram: "Cadê o gênio?" O professor George não os
incentivava, mas também não os repreendia.
Saturado pelo preconceito com que eram tratados os corpos anônimos, Marco Polo certa vez
ousou fazer um convite a Falcão para ir ao laboratório de anatomia. Queria que dissecassem os
corpos respeitando suas histórias. Não previa as conseqüências do seu convite, apenas tinha uma
vaga impressão de que a presença do mendigo no laboratório poderia trazer-lhe
constrangimentos. Sua ida tinha de ser espontânea.
- O Poeta está sendo dissecado por mãos que desprezam a sua biografia. Se você lhes contasse
a sua história, meus amigos e professores poderiam ampliar sua visão sobre a vida.
Embora inicialmente resistente, Falcão disse que pensaria. E pensou. Após uma semana, sua
resposta foi afirmativa. Sentiu que poderia prestar um último tributo ao Poeta. Numa manhã
ensolarada de segunda-feira, Marco Polo preparou silenciosamente a surpresa.
Chamou a psicóloga e a assistente social, que tinham feito um diagnóstico fechado sobre os
excluídos. Disse-lhes que o Dr. George as convidara para uma aula especial. Entrar na sala de
anatomia não era um convite ao prazer, mas não poderiam recusar o pedido de um respeitado
professor. Ao vê-las, o professor disse que havia um engano. Irou-se contra o aluno rebelde.
Quando elas ensaiavam sair do ambiente, o jovem e o mendigo entraram na sala. O silêncio
irrompeu. Dr. George e seus cooperadores fizeram um sinal de espanto diante da ousadia. Marco
Polo pediu licença para falar:
- Ilustre Dr. George! O senhor me pediu que trouxesse um mendigo que tivesse uma boa
história para nos contar. Humildemente apresento meu amigo Falcão.
Todos sorriram, excitados. Dr. George, olhando o perfil do indigente, achou que Marco Polo
cairia em ridículo. Todavia, Marco Polo continuou:
- Ele não tem aparência de um intelectual, mas é um sábio.
Passou a palavra a Falcão. Esperava ir à forra. Falcão calou-se. Marco Polo, constrangido, o
empurrava com o olhar, mas ele permanecia mudo. Cada segundo que passava parecia mais longo
que um dia. O silêncio do mendigo estimulou as pessoas a fazerem mais gozação. Marco Polo
abalou-se.
Falcão ficou plantado no umbral da porta. Apenas passava os olhos pela multidão, parecia
estar bloqueado, inibido. Percebendo o fiasco, Marco Polo começou a achar que poderia ser
expulso da escola pela atitude intrépida. Sentiu também que agredira seu amigo ao trazê-lo para
esse ambiente. "Fui injusto. Usei uma pessoa para resolver meu trauma de rejeição", considerou.
Os alunos, impacientes, começaram a achincalhar o mendigo. "Fala! Fala!", gritavam. Um mais
atirado disse: "Olhem o pensador! Este homem vai arrasar!" Outro rebatia: "Que nada. Esse cara
já bebeu todas." Dr. George e os auxiliares se inflaram, gostaram do circo. Apenas a assistente
social e a psicóloga mantiveram respeito.
Marco Polo pegou no braço do amigo. E falou para ele:
- Desculpe-me - em seguida, começou a retirá-lo da sala.
- Não se preocupe - tranqüilizou-o Falcão.
Ele não estava perturbado. Chacotas faziam parte do cardápio de um andarilho. O que o
incomodava era a prepotência das pessoas. Para ele, orgulho era uma das maneiras mais tolas de
manifestar a inteligência.
Soltou-se de Marco Polo, voltou-se para as pessoas e começou a falar com eloqüência sobre
filosofia pura. Deu um nó na mente dos presentes. Todos ficaram paralisados. Citou o
pensamento de vários filósofos. Comentou sobre as relações entre o mundo dos pensamentos e o
mundo físico. Disse que tudo o que pensamos sobre o mundo físico não é real, e sim um sistema
de intenções que define e conceitua os fenômenos mas não incorpora a sua realidade.
Depois, falou sobre as relações entre os pensamentos e a interpretação que fazemos da nossa
personalidade. Deixou a platéia mais perplexa ainda.
- O pensamento consciente é virtual. Tudo o que vocês pensam sobre vocês mesmos não é
real. É apenas uma interpretação de quem são e não a realidade essencial de quem são. Seus
pensamentos podem se aproximar da sua realidade interior ou se afastar dela. Por isso, ao
pensarem sobre si mesmos, vocês podem ser estúpidos, colocando-se acima dos outros e
querendo controlá-los, ou podem ser carrascos de si mesmos, diminuindo-se e permitindo ser
controlados por eles. Aprendam a pensar com consciência crítica. Caso contrário, tratarão de
doenças, mas serão doentes...
Os alunos se entreolhavam espantados. Embora entendessem pouco do que ele lhes dizia,
vislumbraram profundidade em suas palavras. O mendigo era muito mais culto do que os
estudantes e os intelectuais da sala. As reações foram as mais variadas.
Os que sempre zombaram de Marco Polo queriam enfiar-se debaixo da mesa. Dr. George e
seus auxiliares depararam-se com sua pequenez. A assistente social e a psicóloga sentiram a
necessidade de rever seus paradigmas. Foram cinco minutos, um breve tempo para que o gênio
das ruas deixasse o público atônito. Em seguida, mudou sua atenção de foco. Começou a
percorrer com seu olhar os cadáveres. Caminhou entre eles.
A platéia acompanhava seus passos. Percebia até seus movimentos respiratórios. Falcão chegou
perto de um cadáver e estilhaçou o silêncio em voz alta:
- General! Você aqui! Era o grande Napoleão das ruas. Lutou com exércitos do seu
imaginário. Venceu batalhas. Queria mudar o mundo, mas a morte não respeita os heróis. O
álcool o venceu - finalizou, meneando a cabeça.
A platéia ficou titubeante.
Caminhou mais alguns passos. Olhou atentamente para uma mulher de uns cinqüenta anos, de
pele negra, o rosto sem expressão, resultado da longa exposição ao sol durante a vida e do formol
após a morte.
- Julieta! Você também, quantas vezes deu o pouco que tinha para saciar a fome dos que não
tinham. Entendeu que ser feliz é repartir. Enfim, descansou! Veja, Julieta! Quantos se importam
com você! Todos querem estudá-la. Pena que fiquem na superfície da sua pele.
Dr. George, absorto pelas idéias do indigente, paralisara-se. Falcão estava comovido por
reencontrar os amigos. Subitamente, seus olhos ampliaram o campo visual. Comportava-se como
a câmera de um exímio diretor em busca de uma imagem única.
Captou ao fundo, do lado esquerdo, o corpo de um homem grande, de meia-idade, pele
branca, mas judiada pelo tempo. Aproximou-se lentamente, viu as rugas sobressaltadas, mas a
face era gentil, suave, tranqüila. Seu coração palpitava.
A cada passo, um filme rodava na sua mente, recuperando as experiências espetaculares que
passara com o amigo. Andaram juntos, cantaram juntos, lutaram juntos. Lembrou-se do Poeta
discursando nas praças e elogiando os humildes. As lágrimas de Falcão deixaram o anonimato e
percorreram as cicatrizes do rosto e do tempo.
Fixou a face do amigo. Curvou-se e abraçou seu corpo inerte e frio. Ali estava toda a sua
família. Ali estava um amigo que o amara, que o compreendera e que o ajudara a recuperar a sua
condição humana. Sentiu que perder um amigo pode ser tão difícil como perder o solo para
caminhar. Chorou sem medo.
- O que fizeram com você, Poeta! - falou, observando aquele corpo retalhado. - Sem você, a
brisa não tem a mesma suavidade. As borboletas não bailam com a mesma graça. Os miseráveis
perderam o mapa interior. Temos sede da sua sensibilidade.
Marco Polo verteu lágrimas. Os olhos de alguns alunos também lacrimejaram. Refletindo
sobre a perda, Falcão emendou:
- Queríamos que não morresse, mas o Jardineiro da Vida sabe quando colher suas mais belas
flores...
Olhou para os alunos e bombardeou-os com suas palavras.
- No mundo há mistérios, no corpo há enigmas, mas no espírito e na mente humana se
escondem os maiores segredos do universo. Vocês estão penetrando no corpo deste homem,
mas nunca em seu ser. Dissecarão seus músculos e nervos, abrirão seu tórax e crânio, mas não
dissecarão sua belíssima personalidade. Ele foi um poeta da vida, uma estrela no palco da
existência.
Então suspirou e revelou-lhes alguns segredos da sua história, que Marco Polo já conhecia.
- O homem que vocês estão estudando foi um médico ilustre. Mas, como na vida há curvas
imprevisíveis, foi-lhe reservada uma dramática surpresa. Dirigia seu carro com toda sua família
numa viagem de férias. Ao fazer uma ultrapassagem, sofreu um acidente. Perdeu tudo que mais
amava: sua esposa e seus dois filhos.
Comentou também que um de seus filhos não morrera no ato do acidente. Ficara muito
tempo internado na UTI, mas posteriormente falecera. Sua dor foi indecifrável. Teve graves
crises depressivas. Sentiu-se o mais miserável dos homens.
Ao ouvir essas palavras, Dr. George começou a perder a cor e a fazer gestos estranhos,
esfregando as mãos na nuca. Parecia estar vivendo um ataque de pânico, com taquicardia, falta
de ar, suor excessivo e vertigem. Seus auxiliares demonstraram preocupação com suas reações.
Falcão continuava a descrição do Poeta. Revelou que ele havia sido um brilhante terapeuta das
ruas, ajudara miseráveis, sem-teto e excluídos. Enquanto o descrevia, Dr. George caminhava em
direção ao corpo. Olhava fixamente para a face do cadáver e para a parede. Parou e o contemplou.
De repente, com a voz trêmula, começou a balbuciar palavras que paulatinamente
conquistaram sonoridade.
- Não! Não é possível! Não é possível! Não pode ser!
Todos ficaram mais perturbados ainda. A cena era incompreensível. Então, solicitou:
- Olhem para o retrato afixado na parede!
Os mais próximos perceberam a sobreposição das imagens. O homem da foto tinha a face do
cadáver estendido. Era a mesma pessoa. Dr. George se adiantou às expectativas, dizendo:
- Este homem chama-se Ulisses Burt. Foi um dos maiores cientistas deste país e um dos mais
notáveis cirurgiões. Trata-se de um ilustre diretor desta instituição e também um exímio
professor, meu mais brilhante mestre. Nele inspirei minha carreira acadêmica. Mas acho que
absorvi pouco da sua sensibilidade.
Pegou delicadamente nas mãos do morto.
Falcão ficou surpreso. O Poeta, sempre humilde, nunca falara sobre sua notoriedade. Dr.
George continuou relatando que o acidente do Dr. Ulisses, ocorrido há mais de dez anos, e seu
desaparecimento ganharam destaque na imprensa na época. A universidade ficou abalada. Muitos
professores e alunos tentaram procurá-lo nas delegacias, nos hospitais, nos asilos, mas não houve
vestígios.
Antes de sair como andarilho, doou todos os seus bens para a faculdade de medicina. Esses
bens, que não eram poucos, foram usados para ajudar a construir o hospital-escola.
Uma coisa ninguém sabia, nem mesmo Falcão, e só foi revelada quando novamente leram sua
carta-testamento, em que ele autorizava a doação de todos os seus órgãos para transplantes.
Como cirurgião, Dr. Ulisses transplantara muitos deles. Para estimular a doação de órgãos e
mostrar a grandeza desse gesto, ele gostava de usar uma frase:
Ninguém morre, quando se vive em alguém. Doem seus órgãos. Vivam em alguém.
Em seu testamento, relatou que, se não fosse possível aproveitar seus órgãos para transplantes,
desejava que ao menos o seu corpo fosse utilizado na sala de anatomia.
Falcão finalmente entendeu por que o Poeta insistira em voltar à sua cidade natal. Sabia que
estava chegando o seu fim. Tinha fortes dores no peito. Queria morrer próximo da faculdade
onde sempre lecionara. Queria ser encontrado. Almejava ser útil à humanidade mesmo após
fechar os olhos em definitivo.
Professores e alunos ficaram fascinados com sua coragem, força e amor pela vida. Como havia
várias fotos do Dr. Ulisses afixadas nos vários departamentos da faculdade, escreveram uma
placa e a afixaram abaixo de cada imagem, com os dizeres de Falcão:
Foi um poeta. Uma estrela no palco da vida.
Dr. George estava sob intensa comoção. Não conseguiu continuar a aula. Olhou para Marco
Polo e Falcão e anunciou com os olhos o que as palavras não conseguiam expressar. Reconheceu
seu erro e demonstrou agradecimento... Em seguida foi retirado pelos amigos da sala.
Uma coroa de flores foi colocada ao lado do corpo, com os mesmos dizeres afixados nas
fotos. O Poeta continuou na sala de anatomia, na mesma sala onde sempre dissecara peças
anatômicas em suas pesquisas. Os antigos amigos, respeitados professores universitários, passaram
por ele nos dias seguintes como se estivessem no cortejo de um rei, um herói da vida.
Cirurgiões de cabelos grisalhos que haviam perdido a sensibilidade choravam ao ver o peito
aberto e membros dissecados do velho amigo.
Os alunos dessa turma mudaram para sempre sua compreensão da existência. Nunca mais
tiveram uma atitude superficial diante dos cadáveres. Foi uma das raras vezes na história da
medicina em que as lâminas cortantes dos bisturis encontravam poesia enquanto dissecavam
nervos, artérias e músculos.
Também mudaram para sempre sua formação profissional. Seus pacientes foram privilegiados.
Os futuros médicos aprenderam a perceber que, por trás de cada dor, de cada sintoma, há
sonhos, aventuras, medos, alegrias, coragem, recuos, enfim, uma história maravilhosa que precisa
ser descoberta. Assim, aprenderam a tratar de seres humanos e não de órgãos.
O árido solo do fim da existência do Poeta produziu um oásis de sabedoria num pequeno
grupo. Em vida foi brilhante; na morte, reluzente!
C a p í t u l o 10
O tempo passou e Marco Polo continuava a se encontrar com Falcão. Os laços se estreitaram.
Percebendo o desconforto que o amigo sofria, queria retirá-lo das ruas. Falcão resistia.
- Você precisa sair das ruas.
- Não me coloque num cubículo. O meu lar é o mundo.
- Mas não é saudável, corre riscos - insistia Marco Polo.
- Ninguém corre risco quando tem tão pouco. Essa é uma das vantagens de ser um miserável.
- Mas você dorme mal, come mal, veste-se mal. Sua saúde não está bem.
- Não pago imposto nem aluguel - brincou o velho amigo.
A relação com Falcão fez Marco Polo aprender uma das mais difíceis lições de vida: ser
transparente, não ser escravo do que os outros pensam e falam de nós. Falcão era o que era, não
tinha necessidade de provar nada a ninguém. Sem tal peso emocional, sua emoção era suave.
Eles se viam pelo menos três vezes por semana. O mendigo e o jovem ficaram tão íntimos que
faziam peripécias juntos. Davam verdadeiros espetáculos nas praças, sem procurar platéia. Para
eles a vida era uma brincadeira no tempo, uma aventura imperdível.
Em alguns momentos pareciam dois palhaços, em outros, duas crianças. Tédio não fazia parte
do dicionário deles. As pessoas que assistiam às suas brincadeiras, por viverem numa enfadonha
rotina, revisavam suas vidas. Até das coisas simples faziam um show. Quando tomavam sorvete,
diziam um para o outro:
- Que sabor! Que textura!
Quem estava ao lado surpreendia-se, pois, apressados, não sentiam o sabor do mesmo modo
que eles.
Ao comer uma fruta, Falcão dizia:
- Que fruta maravilhosa! Que cores belas! Como ela surgiu? Quem a plantou? Que sonhos
tinham os agricultores quando a cultivaram?
Marco Polo tinha gestos semelhantes. Algumas vezes olhavam prolongadamente para as folhas
de uma palmeira, observando a sinfonia do vento. Pareciam dois lunáticos. Os passantes,
curiosos, paravam de andar e também olhavam para cima tentando ver o que os dois olhavam
mas não enxergavam nada. Pensavam que estavam vendo algo sobrenatural ou um disco voador.
Quando precisava de dinheiro, Falcão convidava o amigo a fazer uma dobradinha com ele.
Criavam e teatralizavam um texto na hora. Não precisavam ensaiar, pois viviam a existência
como um teatro ao vivo. Falcão bradava uma frase e Marco Polo proclamava outra. Era infalível
para ganhar uns trocados.
- Não tenho morada certa - Falcão dizia.
- Mas resido dentro de mim. - Marco Polo completava.
- Ninguém pode roubar meu sono.
- Não dependo dos outros para dormir.
- Muitos moram em palácios,
- Mas são miseráveis mendigos.
- De que adianta acumular tesouros,
- Se a alegria não podem comprar!
Pessoas de todas as raças paravam e sentavam-se nos bancos para ouvir a dupla poética. Vários
colegas de Marco Polo apareciam para vê-los. Aprenderam a apreciar o mendigo pensador. A
fama bateu-lhes à porta, mas desprezaram-na. Queriam apenas viver intensamente.
Falcão ensinou ao amigo a música de Louis Armstrong, What a Wonderful World. De vez em
quando a cantavam em dupla, exaltando a vida e a natureza. Preservavam a melodia, mas
modificavam a letra de acordo com o momento. Era como se houvesse uma orquestra sinfônica
os acompanhando.
- Eu vejo o verde das árvores, rosas vermelhas também - cantava Falcão, com seu vozeirão, a
primeira frase.
- Eu as vejo florescerem para a humanidade - cantava a frase seguinte o intrépido Marco Polo.
- E eu penso comigo... Que mundo maravilhoso - cantavam juntos.
- Eu vejo o azul dos céus e o branco das nuvens.
- O brilho do dia abençoado, a sagrada noite escura.
- E eu penso comigo... Que mundo maravilhoso.
- As cores do arco-íris, tão bonitas no céu.
- E também no rosto das pessoas que passam - cantavam juntos gesticulando para o público.
-Vejo povos distintos apertando as mãos, dizendo: como vocês vão?
- Eles realmente dizem "Eu te amo"!
Ao terminarem de cantar, americanos, chineses, árabes, judeus, indianos, brasileiros, europeus
se abraçavam na imensa praça. Alguns tinham realmente a coragem de dizer para os outros "eu
te amo". Dois lunáticos, um maltrapilho e um jovem, um pensador e um acadêmico,
embriagados de alegria, magnetizavam as pessoas.
Num desses encontros, um fato inusitado abalou a dupla. Falcão estava cansado, sem muita
disposição para dialogar. Queria apenas contemplar o belo. Andara muito no dia anterior.
Sentara-se folgadamente no canto direito do banco da praça com a cabeça voltada para o
espaço. O movimento de pessoas era grande, pois havia uma concentração de lojas e bancos
próxima dessa área.
Falcão observava as nuvens. Estava fascinado com sua anatomia flutuante. O êxtase foi tão
grande que não conseguiu deixar de se expressar:
- Que belas pinturas! As nuvens são como os andarilhos, vagam por lugares longínquos
procurando lugar de descanso. Quando encontram, destilam lágrimas - balbuciou.
Marco Polo também as observava atentamente. Entrou no clima.
- Quando o céu chora, o riso brota na natureza.
Inesperadamente, Falcão olhou para o infinito e começou a interrogar o Criador. Ele falava
com Deus como se fosse seu amigo.
- Ei! Quem é você que está por trás da cortina das nuvens? Por que você se esconde atrás do
véu da existência? Por que silencia a sua voz e grita através dos fenômenos da natureza? Por que
gosta de se ocultar aos olhos humanos? Sou uma ínfima parte do universo, mas clamo por uma
resposta. Deixe-me descobri-lo.
Marco Polo ficou espantado com esse diálogo singular. Entretanto, mostrando um ar de
intelectual, virou-se orgulhosamente para o amigo e disse:
- Falcão, Deus não existe. Ele é uma invenção espetacular do cérebro humano para suportar as
limitações da vida. Desculpe-me, mas, para mim, a ciência é o deus do ser humano.
Numa reação surpreendente, Falcão se levantou. Subiu em cima do banco da praça e começou
a chamar aos gritos todos os que por ali passavam. Com gestos histriônicos, bradava:
- Venham! Aproximem-se! Vou mostrar-lhes Deus!
Num instante, reuniu um grupo.
Marco Polo ficou apavorado. Nunca vira Falcão reagir assim. Tentava acalmá-lo, sem êxito.
Ele continuava gritando:
- Deus está aqui! Acreditem! Vocês ficarão perplexos ao vê-lo.
Marco Polo achava que Falcão entrara num repentino surto psicótico, estava tendo uma
alucinação. Procurava ansiosamente pegar em seu braço para que ele se sentasse. De repente,
Falcão silenciou. Apontou as duas mãos para Marco Polo e disse aos altos brados:
- Eis Deus aqui em carne e osso!
Marco Polo ficou assustado. Um burburinho reinou entre os ouvintes.
- Acreditem! Este jovem é Deus! Por que lhes afirmo isso? Porque ele acabou de me dizer que
Deus não existe, que é um mero fruto do nosso cérebro! Vejam só! Se este jovem não conheceu
os inumeráveis fenômenos dos tempos passados, se ele nunca percorreu os bilhões de galáxias
com seus trilhões de segredos, se ele não desvendou como ele mesmo consegue entrar em seu
cérebro e construir seus complexos pensamentos, e, apesar de todas essas limitações, ele afirma
que Deus não existe, a conclusão a que cheguei, meus amigos, é que esse jovem tem de ser Deus.
Pois só Deus pode ter tal convicção!
A multidão ficou boquiaberta. O discurso do indigente era tão inteligente que esfacelou não
apenas a soberba de Marco Polo, mas o orgulho das pessoas que o ouviram. O jovem amigo
ficou vermelho e pasmo.
Falcão desceu do banco e sentou-se. Desembrulhou um sanduíche e começou a degustá-lo.
Com a boca cheia, falou para Marco Polo:
- Sabe que sabor tem este sanduíche?
Marco Polo, envergonhado, meneou a cabeça dizendo que não. Falcão prosseguiu:
- Se você não tem segurança para falar de algo tão próximo e visível, não fale convictamente
sobre algo tão distante e intangível. Não é sensato.
O jovem travou sua inteligência. Pela primeira vez não achou qualquer frase para rebater.
Apenas disse:
- Não precisava exagerar.
Falcão retrucou:
- Se você disser que é um ateu, que não crê em Deus, sua atitude é respeitável, pois reflete sua
opinião e sua convicção pessoal. Mas dizer que Deus não existe é uma ofensa à inteligência, pois
reflete uma afirmação irracional. Não seja como alguns meninos da teoria da evolução.
- Como assim? - perguntou intrigado Marco Polo.
- Alguns filósofos acham que certos teóricos da evolução possuem uma arrogância insana.
Não estou criticando as hipóteses da evolução biológica, mas a arrogância científica sem
alicerces. Vários desses cientistas negam veementemente a idéia de Deus apenas porque se
apóiam em alguns poucos fenômenos da sua teoria. Esquecem-se, assim como você, de que
desconhecem bilhões de outros fenômenos que tecem os segredos insondáveis do teatro da
existência. São meninos brincando com a ciência, construindo seu orgulho sobre a areia.
Marco Polo abalou-se com a ousadia, com o raciocínio esquemático e a criatividade de Falcão.
Os darwinistas eram considerados intelectuais reverenciados. Nunca ouvira ninguém fazer uma
crítica tão contundente contra eles, a não ser os religiosos. Falcão tinha trazido a discussão desse
delicadíssimo tema não para o campo da religiosidade, mas para o campo dos limites e alcances
da própria ciência. Marco Polo tentou organizar seu pensamento e perguntou:
- Mas os evolucionistas são respeitados pela comunidade científica?
- São respeitados, mas, para mim, estão aprisionados no cárcere da biologia. Sem romper este
cárcere e abraçar o terreno das idéias da filosofia, serão redutores e não expansores do
conhecimento. Precisam seguir o caminho de Einstein.
- Como assim?
- Einstein disse que a imaginação é mais importante do que o conhecimento. Ele brilhou
porque amava a filosofia. Não tinha um cérebro privilegiado como muitos ingênuos cientistas
pensavam. Tinha uma imaginação privilegiada. Quando desenvolveu os pressupostos de sua
teoria, era um jovem de 27 anos. Tinha menos cultura acadêmica do que muitos universitários da
atualidade. Mas por que brilhou, enquanto os universitários são opacos? Brilhou porque usou a
arte da dúvida, libertou sua criatividade, aprendeu a pensar com imagens.
A partir desse comentário, Marco Polo interessou-se pela história de Einsten. Passou a estudála.
- Einstein era ousado, queria conhecer a mente de Deus - completou.
Falcão não era menos ousado, vivia tentando desvendá-Lo à sua maneira.
Ele amava Deus, mas não era religioso ou defendia uma religião. Considerava que só um
deslumbrante Artista, capaz de ultrapassar os limites da nossa imaginação, poderia ser o Autor do
próprio imaginário humano e de toda a existência.
Relatou que ele e o Poeta aprenderam a procurar e se relacionar com Deus em suas misérias
psíquicas, e que este relacionamento foi um dos segredos que os levaram a suportar suas perdas e
a oxigenar seu sentido de vida. Assim sobreviveram ao caos. Para eles, cada ser humano, em
especial os cientistas, deveria posicionar-se como eterno aprendiz. E arrematou:
- A sabedoria de um ser humano não está no quanto ele sabe, mas no quanto ele tem
consciência de que não sabe. Você tem esta consciência?
Após uma pausa, Marco Polo falou, pensativo:
- Creio que não.
- O que define a nobreza de um ser humano é a sua capacidade de enxergar sua pequenez.
Você a enxerga?
- Estou tentando - disse Marco Polo, acuado pela inteligência do filósofo.
- Nunca pare de tentar.
Em seguida, Falcão fez um momento de silêncio. Ponderou suas atitudes e teve coragem de
pedir desculpas a Marco Polo pelo constrangimento que o fizera passar.
- Desculpe-me. Às vezes, acho que algumas das minhas reações são seqüelas do meu passado,
da minha doença.
- Por favor, não se desculpe. Eu é que fui estúpido, arrogante.
Vendo que o jovem Marco Polo refletia sobre os mistérios da existência,
Falcão adicionou:
- Você pode duvidar de que Deus existe, mas Deus não duvida de que você existe. É nisso
que creio.
Marco Polo ficou inquieto. Esfregou as duas mãos no rosto. Suspirou, colocou a mão no
queixo, apoiou o cotovelo sobre a coxa como um pensador e perguntou:
- O que pensavam os filósofos a respeito de Deus?
- Lembre-se do que eu lhe disse: muitos filósofos acreditavam na metafísica. Eles não tinham
medo de argumentar e discutir a respeito de Deus. A ciência tem medo de debater sobre Ele por
receio de pender para uma religião e perder a individualidade. Nós não sabemos quase nada
sobre a caixa de segredos da existência. Milhões de livros são uma gota no oceano. Lembre-se,
somos uma grande pergunta procurando uma resposta nos poucos anos dessa vida.
- Mas filósofos como Marx, Nietzsche e Sartre foram ateus.
Falcão fitou vagarosamente o amigo e, como se estivesse iluminado, disse:
- Há dois tipos de Deus: um Deus que criou os homens, e outro que os homens criaram. Para
mim, esses filósofos não acreditavam no Deus criado pelos homens. Eles foram contra a
religiosidade da sua época, que dilacerava os direitos humanos, mas não são ateus puros. Todavia
não posso falar por eles. O jovem pensou e inquiriu:
- Quem somos? O que somos? Para onde vamos?
- Freqüentemente me faço tais perguntas. Quanto mais as faço, mais me perco, e quanto mais
me perco, mais procuro me achar.
Em seguida, Falcão emendou:
- Olhe para as pessoas ao nosso redor. O que você vê?
- Pessoas de ternos, mulheres bem-vestidas, jovens exibindo seus tênis, adolescentes
arrumando o cabelo, enfim, pessoas transitando.
- A maioria dessas pessoas vive porque respiram. Não perguntam mais "quem são?", "o que
são?". Estão entorpecidos pelo sistema. O ser humano atual não ouve o grito da sua maior crise.
Cala sua angústia porque tem medo de se perder num emaranhado de dúvidas sobre seu próprio
ser. No começo do século XX, a ciência prometeu ser o deus do Homo sapiens e responder a essas
perguntas. Mas ela nos traiu.
- Por que nos traiu?
- Primeiro porque não desvendou quem somos; continuamos a ser um enigma, uma gota que
por um instante aparece e logo se dissipa no palco da existência. Segundo, porque, apesar do salto
na tecnologia, ela não resolveu os problemas humanos fundamentais. A violência, a fome, a
discriminação, a intolerância e as misérias psíquicas não foram debeladas. A ciência é um produto
do ser humano e não um deus do ser humano. Use-a e não seja usado por ela.
Ao esquadrinhar sua inteligência, Marco Polo confessou honestamente:
- O orgulho é um vírus que contagia a minha mente.
- Contagia a todos. Até um psicótico tem idéias de grandeza.
- Será que é possível destruir o orgulho?
- Não creio. Nossa maior tarefa é controlá-lo.
Para finalizar a complexa aula, voltou-se para a face do jovem amigo e completou:
- A sabedoria de um ser humano não é definida pelo quanto ele sabe, mas pelo quanto ele tem
consciência de que não sabe...
Marco Polo incorporou com impacto essa frase. Precisava discerni-la, bem como todo o
conhecimento que abordaram. Sua mente tornou-se um caldeirão de idéias.
Resolveu que era o momento de partir. Um pouco atordoado, despediu-se de Falcão e saiu. O
sol do entardecer reluzia sobre ele e projetava sua sombra sobre o solo. A sombra estava
grandiosa. A distorção da imagem o convidou à auto-analise.
Sempre quis ser grande, uma estrela onde os astros gravitassem em sua órbita. Percebeu que a
busca da fama era uma tolice. Concluiu que precisava reduzir sua sombra social. Precisava
aprender a encontrar grandeza na sua pequenez.
C a p í t u l o 11
Toda vez que deitava em sua aquecida e confortável cama, Marco Polo pensava em Falcão
dormindo ao relento. Ficava perturbado, às vezes acordava no meio das noites chuvosas
incomodado. Tinha receio de que Falcão não estivesse nos albergues municipais.
Os andarilhos, por viverem em precárias condições de saúde, morriam cedo. A falta de higiene,
de alimentação regular, de proteção contra as intempéries e o alcoolismo ceifavam suas vidas nos
primeiros anos de jornada.
A sobrevivência de Falcão foi uma exceção. O Poeta o ajudara a livrar-se do alcoolismo e a
cuidar da sua saúde. Todavia, o Poeta morrera e Marco Polo sentiu que de algum modo ocupava
uma parte do seu lugar.
Cuidar da qualidade de vida de Falcão e ajudá-lo a resgatar seu passado mexia com o jovem
estudante. Mas tinha medo de retirar o amigo das ruas e estimulá-lo a reencontrar seu filho. O
sistema social que o excluíra era cruel em algumas áreas. Talvez Falcão não suportasse esse estresse.
O conforto exterior poderia gerar desconforto interior.
Seis meses se passaram. A saúde de Falcão andava debilitada. Tinha crises de falta de ar e
recusava-se a ir ao ambulatório do hospital-escola. Diante disso, Marco Polo sentiu que era o
momento de fazer uma investida para ajudá-lo. Mas como?
"Falcão poderia conservar suas idéias e seu jeito de ser ao retornar para a sociedade. Poderia
ser um vírus que se alimenta do sistema para combater as chagas do próprio sistema, tal como os
grandes jornalistas e outros nobres pensadores", pensava o jovem.
Essas idéias povoaram sua mente, diluíram paulatinamente seu medo e deram corpo à sua
decisão. Recebera muito de Falcão, queria retribuir um pouco.
Por outro lado, embora não quisesse sair das ruas, Falcão sentiu, pouco a pouco, que precisava
construir uma ponte com seu passado. A relação com Marco Polo era diferente da que tinha
com o Poeta. Marco Polo era um espelho do seu próprio filho. Flashes de Lucas reluziam em
seu imaginário enquanto cantavam e faziam poesias. Negar radicalmente seu passado o
atormentava.
Certa vez, Marco Polo tocou diretamente no problema.
- Você correu grandes riscos para resgatar sua identidade e reconstruir sua sanidade. E me
ensinou a correr riscos para explorar a mente humana e lutar pelos meus sonhos. Que tal correr
os riscos de entrar no sistema social e reavaliar o seu passado?
Falcão entendeu a mensagem e fez um silêncio glacial. Marco Polo foi cortante e insistiu:
- Seu filho tem o direito de saber que você está vivo. O risco de ser rejeitado é o preço que
você tem de pagar.
Essas palavras gelaram a coluna do mestre. Nunca sua segurança ficou tão abalada. Fez um
mergulho interior.
- Eu estou morto para ele. Os mortos não incomodam os vivos.
- Você disse que Deus se esconde atrás da cortina da existência e grita através dos fenômenos
que criou, mas você não é Deus. Por que, então, você se esconde atrás da cortina dos seus
argumentos? Por que grita através dos fenômenos que imaginou? Que base tem para afirmar que
está morto para o seu filho? Quantas vezes ele deve ter olhado para a multidão à sua procura?
Marco Polo aprendera com o próprio Falcão que a dúvida é a melhor arma para abrir as
janelas da inteligência, e a resposta pronta é a melhor para fechá-la. Suas perguntas provocaram
um abalo intenso em seu magnífico professor. Falcão não poderia fugir de si mesmo.
- Você o ama? - instigou Marco Polo, diante do calado Falcão.
- O amor é imortal! Você pode negá-lo, sufocá-lo, enterrá-lo, mas ele jamais morre. Já lhe
disse. Meu filho nunca morreu dentro de mim. Ele ainda vive em meus sonhos.
- Não há como correr riscos para resgatar quem está morto, mas, se ele está vivo, corra riscos
por ele!
Quando Marco Polo pensou que Falcão cedera, ele ergueu uma enorme muralha:
- Nossas linguagens, interesses, visão de vida, expectativas são muito diferentes. Será quase
impossível reconstruir nossas histórias. Se, mesmo convivendo por anos a fio, os membros da
maioria das famílias não toleram suas diferenças, não se respeitam, como esperar harmonia entre
dois instrumentos que há mais de duas décadas não tocam juntos?
Vencer a inteligência do gênio era quase impossível. "Realmente o choque poderia ser
insuportável", ponderou Marco Polo. "Mas falharemos 100% das vezes que não tentarmos",
refletiu.
Teve a sensação de que ninguém conseguiria transpor a fortaleza dos pensamentos do filósofo
lapidada pelas crises psíquicas e esculpida pelos corredores da vida. Mas tinha uma última bala em
sua arma intelectual, um argumento forte. Construíra este argumento ao longo dos meses da
relação com Falcão.
Lapidara-o pacientemente, como Michelangelo o fez com o mármore bruto em busca da sua
obra-prima. Sedimentara-o, assimilou-o, e o escrevera. Era o momento de discorrer sobre ele: o
princípio da co-responsabilidade inevitável. Este princípio mesclava alguns fundamentos da psicologia e
da filosofia.
- Falcão, você nunca viveu fora do meu sistema. Quer queira ou não, você faz parte dele.
- Que absurdo! Não confunda o meu mundo com o seu. No meu, as pessoas são
transparentes; no seu, elas se disfarçam atrás dos sorrisos, da estética. No meu, as pessoas têm
tempo para investir no que amam; no seu, elas são transformadas em máquinas de trabalhar e
consumir.
Marco Polo ficou constrangido, mas não se intimidou.
- Eu concordo que a sociedade organizada está doente em muitos aspectos, mas o princípio da
co-responsabilidade inevitável demonstra que é impossível haver dois sistemas distintos. O que existe
são duas maneiras de ver e atuar no mesmo sistema. As pessoas jamais são completamente
separadas umas das outras.
Falcão nunca tinha ouvido falar nesse princípio. Pela primeira vez coçou a cabeça, revelandose
confuso diante do discípulo. Estava perturbado com essa idéia. Se ele se convencesse de que
não há dois sistemas, qual era o argumento para se esconder em seu casulo?
- Que princípio é esse? Que pensador o elaborou? - perguntou, desconfiado.
- Eu o elaborei!
Falcão deu de ombros. Foi contagiado pelo orgulho. Cônscio desse contágio, em seguida se
refez.
- Desculpe-me. Debata-o. Apresente suas idéias!
Ao dizer essas palavras, recordou-se de quando tivera uma crise na sala de aula no curso de
direito. Queria ser enfrentado no campo das idéias. Era neste ponto que Marco Polo o desafiara,
e, o que era pior, no ponto mais delicado da sua história.
Marco Polo defendeu a sua tese com veemência. Comentou que o princípio da co-responsabilidade
inevitável demonstra que as relações humanas são uma grande teia multifocal. Revela que ninguém
é uma ilha física, psíquica e social dentro da humanidade. Todos somos influenciados pelos
outros. Todos nossos atos, quer sejam conscientes ou inconscientes, quer sejam atitudes
construtivas ou destrutivas, alteram os acontecimentos e o desenvolvimento da própria
humanidade.
Qualquer ser humano - intelectual ou iletrado, rico ou pobre, médico ou paciente, ativista ou
alienado - é afetado pela sociedade e, por sua vez, interfere nas conquistas e perdas da própria
sociedade através de seus comportamentos. Marco Polo queria dizer que todos são coresponsáveis
pelo futuro da sociedade e, por conseqüência, pelo futuro da humanidade e do
planeta como um todo.
- Nossos comportamentos afetam de três modos as pessoas: alteram o tempo delas; alteram a
memória delas, através do registro desses comportamentos; e alteram a qualidade e freqüência
das suas reações. Alterando o tempo, a memória e as reações das pessoas, modificamos
seu futuro, sua história.
Falcão começou a sair do estado de indiferença para o de assombro. “Aonde esse garoto quer
chegar!", pensou.
Marco Polo foi mais longe. Discorreu afirmando que os mínimos comportamentos podem
interferir em grandes reações na história. O espirro de um norte-americano pode afetar as reações
das pessoas no Oriente Médio. Uma atitude de um europeu, por mínima que seja, pode interferir
no tempo e nas ações da China.
Falcão começava a entender aonde seu amigo queria chegar, mas ainda não estava
completamente claro. Observava atentamente cada uma das suas frases. Marco Polo passou da
teoria para os exemplos:
- O padeiro que fez pão no século XV em Paris afetou o tempo e a memória da dona-de-casa
que o comprou, afetando as reações dos seus filhos, que, por sua vez, alteraram os
comportamentos dos seus amigos, vizinhos, colegas de trabalho, e que, numa reação em cadeia,
influenciaram a sociedade francesa da sua época e de outras gerações. Assim, numa seqüência
ininterrupta de eventos, o padeiro do século XV influenciou, séculos mais tarde, os pais, os
amigos e, conseqüentemente, a formação da personalidade de Napoleão, que afetou o mundo.
- Hitler, em 1908, mudou-se para Viena com o objetivo de se tornar pintor. O professor da
academia de belas-artes que o rejeitou afetou seu tempo, sua memória, seu inconsciente. Por sua
vez, influenciou sua afetividade, sua compreensão do mundo, suas reações, sua luta no partido
nazista, sua prisão, seu livro. Todo este processo interferiu na eclosão da Segunda Guerra
Mundial, que afetou a Europa, o Japão, a Rússia, os EUA, que mudou os rumos da humanidade.
- Se Hitler fosse aceito na escola de belas-artes, talvez tivéssemos um artista plástico, ainda que
medíocre, e não um dos maiores psicopatas da história. Não estou dizendo que a psicopatia de
Hitler seria resolvida com sua inclusão na escola de Viena, mas poderia ser abrandada ou talvez
não se manifestar.
Falcão estava espantado. Os papéis tinham se invertido. Marco Polo falou ainda que um índio
numa tribo isolada da Amazônia também afeta a história. Ao abater um pássaro, este deixará de
produzir ovos, de chocá-los e de ter descendentes, afetando o consumo de sementes, os
predadores e toda a cadeia alimentar, o ecossistema, a biosfera terrestre.
Além disso, a ausência de descendentes do pássaro abatido afetará o processo de observação
dos biólogos, interferindo em suas reações, suas pesquisas, seus livros, sua universidade e sua
sociedade.
Uma pessoa que se suicida não deixou de atuar no mundo social, afirmou Marco Polo. O ato
do suicídio alterou o tempo dos amigos e parentes e, principalmente, despedaçou a emoção e a
memória deles, gerando vácuo existencial, lembranças e pensamentos perturbadores que afetarão
suas histórias e o futuro da sociedade.
- Ninguém desaparece quando morre. Viver com dignidade e morrer com dignidade deveriam
ser tesouros cobiçados ansiosamente. Portanto, o princípio da co-responsabilidade inevitável demonstra
que nunca podemos ser uma ilha na humanidade. Jamais deveria haver a ilha dos norteamericanos,
dos árabes, dos judeus, dos europeus. A humanidade é uma família vivendo numa
complexa teia. Somos uma única espécie. Deveríamos amá-la e cuidar dela mutuamente, caso
contrário não sobreviveremos.
Para o jovem pensador, somos todos responsáveis inevitavelmente, em maior ou menor
proporção, pela prevenção do terrorismo, da violência social, da fome mundial.
Falcão concordou com a engenhosidade do raciocínio de Marco Polo. Embora fosse um
especialista na arte de pensar, não percebeu que estava caindo na rede do seu discípulo. Em
seguida, o jovem comentou com seu mestre que as reações dos outros podem afetar-nos fraca
ou intensamente. Assistir a um filme, conversar com um amigo, elogiar alguém, pode mudar
pouco ou muito o curso de nossas vidas.
Lembrou-se de um amigo humilhado pela professora porque não conseguira ler direito um
parágrafo. Ela pediu que ele repetisse várias vezes a leitura do texto, sob o deboche dos colegas.
O registro desta experiência tinha bloqueado a inteligência do aluno, gerando gagueira,
insegurança, afetando drasticamente seu futuro como pai e como profissional. Nunca mais
conseguiu falar em público.
Após fazer a abordagem geral e dar esse exemplo, Marco Polo calibrou a arma da sua
inteligência e desferiu um golpe fatal em Falcão. Preparou, ainda que sem grandes pretensões,
uma base para que ele questionasse seu comportamento nas últimas duas décadas e mudasse para
sempre o curso da sua história. Foram vinte minutos que mudaram uma vida. Cortou a
resistência do amigo como a lâmina de um bisturi.
- Você é o mestre e eu o pequeno aprendiz, mas, por favor, diante dessa explanação, respondame:
é possível haver sistemas socialmente isolados?
Falcão deu um sorriso entrecortado e admitiu honestamente:
- Não. Há sistemas que pouco se comunicam, mas não são isolados.
- Subir no banco de uma praça, declamar uma poesia ou pedir dinheiro para comprar um pão
são reações que interferem na dinâmica dos comportamentos das pessoas que o ouviram,
interferindo, por sua vez, nos seus colegas de trabalho, na sua empresa, na sociedade, no
comércio internacional. Por isso, fechar-se em seu mundo pode ser um ato egoísta! Você
concorda ou discorda?
- Sob essa ótica, o isolamento pode ser um ato egoísta - disse Falcão transpirando.
- Você se fechou dentro de si mesmo porque a sociedade o excluiu e o discriminou, mas você se
superou, tornou-se um sábio. Essa mesma sociedade que o feriu precisa das suas idéias e da sua
coragem para se transformar. Até porque o seu sistema nunca foi separado do meu.
O mundo desabou sobre Falcão. Ficou boquiaberto, pasmo, reflexivo. "Como ele nunca havia
pensado nisso?" Marco Polo tinha razão. "Interferimos na memória e no tempo dos outros o
tempo todo. A memória e o tempo nos unem numa inevitável rede", pensou.
- Suas idéias são amargas como fel, mas não posso fugir delas. Eu influencio seu mundo e sou
influenciado por ele.
E, para completar, o jovem fitou o gênio e deu-lhe o último golpe:
- Responda-me mais uma pergunta, pensador. Por que não é possível se alienar ou se isolar
socialmente de maneira pura, completa, absoluta?
Com a voz embargada e sabendo de antemão aonde Marco Polo chegaria, o filósofo disse com
sinceridade:
- Porque a ausência de uma reação já é uma ação em si, é a ação da não-reação. A não-reação
contribui para a ação dos outros. Assim como uma pessoa que se suicida continua interferindo na
história dos seus íntimos, um pai que se torna um andarilho continua interferindo em seu próprio
filho - falou Falcão, com lágrimas nos olhos.
- Muito bem, mestre! Sei que é doloroso tocar nesse assunto, mas sua ausência desencadeou
uma seqüência de eventos que influenciaram a personalidade de Lucas. Toda vez que ele o
procurou e não o encontrou ou teve de explicar para alguém a sua ausência, você alterou intensa
mente suas emoções, pensamentos, auto-estima. Portanto, nunca deixou de ser co-responsável
por ele.
Falcão levantou-se do banco. Começou a andar em círculo. Jamais algumas palavras geraram
tantas conseqüências em seu intelecto. Concluiu que até mesmo fazer discursos nas praças e
levar as pessoas a viajarem para dentro de si mesmas eram fatos que influenciavam a sociedade e
atingiam indiretamente seu filho.
A questão não era se sua ausência fora melhor ou pior para Lucas. A questão é que nunca
conseguira se isolar dele. O pensador foi vencido no único lugar que poderia mudar as rotas da
sua vida: no campo das idéias. Temeroso, disse sinceramente:
- Não conseguimos fugir dos outros porque não conseguimos fugir de nós mesmos. Correrei
riscos para reencontrar meu filho!
Resolveu romper seu casulo. Havia uma grande tarifa a pagar para reconstruir sua história. Os
problemas que enfrentaria seriam enormes. Teria de se deparar com predadores dentro e fora de
si. Poderia ser rejeitado por ter sido um mendigo. Teria de enfrentar o ex-sogro, a ex-esposa, os
ex-colegas de trabalho. E, o que era pior, Lucas poderia culpá-lo, ser indiferente a ele, ter
vergonha do pai. Poderia também não estar vivo. O preço era incalculável; os riscos
inimagináveis.
- Tenho medo! - reagiu.
Marco Polo nunca ouvira Falcão dizer tais palavras. Sempre o considerara imbatível.
- Medo! Você sempre foi destemido.
- Tenho medo de mim mesmo. Medo de me enfrentar. Medo de caminhar por estradas que há
muito não piso e em que pensei nunca mais pisar.
Pelo fato de estar aprendendo a arte de produzir frases de efeito com o próprio Falcão, Marco
Polo novamente o surpreendeu:
- O medo pode ser um excelente mestre. Tira reis do seu trono e ensina-os a ser o que sempre
foram: apenas frágeis seres humanos.
Falcão deu uma risada entrecortada no meio da sua dor. Procurando consolar-se, olhou outra
vez para a sua platéia invisível e disse:
- Todos nós temos uma criança para encontrar. Uns dentro, outros fora de si. Preciso achar a
de fora, sem perder a de dentro.
Em seguida, pediu para ficar mais um dia nas ruas. Teria de se despedir pelo menos
temporariamente de seu estilo de vida e da ampla casa onde vivia há anos. Queria abraçar mais
árvores, conversar com mais flores, brincar com as borboletas, observar as estrelas enquanto
fechava seus olhos para mais uma noite de sono.
Marco Polo combinou que no dia seguinte, sábado, o pegaria pela manhã. Seus amigos de
escola, que dividiam a mesma habitação, viajariam para suas cidades. A casa estaria vazia. Falcão
passaria o final de semana com ele. Planejariam juntos a longa viagem para sua cidade.
Falcão fez uma longa despedida. Abraçou uma dúzia de árvores. Sentiu a brisa, o som sereno
do vento. Ajoelhou-se nos jardins, beijou as rosas, dialogou com Deus. Terminou com essas
palavras: "Deus, você foi meu amigo na loucura, na miséria e nas noites sem abrigo. Tenho medo
que não o seja na fartura e nas noites confortáveis. É tão fácil esquecê-Lo. Caminhe em meus
passos."
Ao deitar-se, as estrelas não induziam seu sono como sempre fizeram. O velho cobertor não o
aqueceu como antes. O banco da praça pressionava suas costelas desconfortavelmente. Teve
pesadelos. Viu-se alvo de risadas e desprezo. Sua mente se tornou um turbilhão de imagens
ameaçadoras.
No outro dia, Marco Polo o levou para casa. Falcão tomou um belo banho, aparou sua barba,
cortou apenas parte do seu longo cabelo. Marco Polo emprestou-lhe algumas roupas, mas, como
era dez centímetros mais baixo do que o amigo, a calça e a camisa ficaram engraçadas.
O velho que aparentava entre setenta e oitenta anos remoçou. Retornou aos 55 anos, sua real
idade. Marco Polo riu da aparência do amigo. Falcão parecia um garotão desarrumado com as
roupas curtas. Zombando de Marco Polo, afirmou:
- Ainda estou bonitão! - e fez uma pose desajeitada.
- Bonito o suficiente para não me espantar.
O jovem amigo juntou algumas economias e ambos saíram em busca de roupas decentes. Para
Falcão, qualquer roupa estava bem. Entraram em uma loja e Marco Polo escolheu uma camisa
de manga comprida verde-folha e uma calça vermelha. Falcão vestiu-as e achou-as belíssimas,
lembravam as rosas vermelhas com talos verdes dos jardins. Felizmente as vendedoras
intervieram. Compraram duas camisas brancas e uma calça bege.
Ao sair da loja, Falcão sentia-se fantasiado, artificial. Andava ereto, sério e sem
espontaneidade. Há anos não se preocupava com os olhares das pessoas. Sentia-se observado.
Não era um sentimento decorrente da antiga paranóia, mas de ter de representar o que não
sentia, de sorrir quando estava infeliz.
Marco Polo viu o rosto do amigo entristecer pouco a pouco. Nada o animava. Ligou a TV
num programa de notícias para que ele se distraísse um pouco, mas piorou as coisas. Desde que
saiu pelo mundo, Falcão nunca mais assistira à TV, apenas de relance.
Viu um repórter denunciando a fome na Etiópia, mostrando imagens de crianças magérrimas,
em pele e osso, sem expressão facial, em profundo estado de melancolia. Quase não tinham
força muscular para se movimentar. Deviam estar brincando, mas estavam morrendo. Falcão
curvou-se, colocou a cabeça à frente do corpo e arregalou os olhos.
O repórter disse que, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e Alimentos), a cada cinco segundos morre uma criança de fome. Falcão, estarrecido,
meneou a cabeça gritou:
- Não é possível! Estão deixando as crianças morrerem!
Em seguida, viu outra imagem fantasmagórica: um pai correndo e gritando desesperadamente
com um filho sangrando no colo. Ele fora vítima de um ataque terrorista. As imagens que
saltavam da tela pareciam mais loucas do que as alucinações que o perturbavam na sua fase
psicótica mais drástica. E aquilo era real. Falcão começou a passar mal, Teve palpitações e suor
excessivo.
Em seguida, observou a expressão facial do repórter que transmitia as notícias. Para seu
espanto, o rosto não traduzia o drama da notícia, revelava apenas um ar de consternação.
Posteriormente, o mesmo repórter mudou rapidamente o semblante, abriu um sorriso e falou
de um milionário excêntrico, que aparecia na tela acariciando seus cavalos em suntuosas cocheiras.
Esta notícia penetrou como um terremoto no intelecto de Falcão. Estava incrédulo.
Percebeu que o processo de transmissão das informações destruía a afetividade dos
espectadores. Fitou o jovem amigo e comentou incisivamente:
- Vocês não sentem asco por essa sociedade?
- Esses acontecimentos são péssimos! - confirmou Marco Polo.
- Péssimos? São horríveis! Vocês estão adaptados ao lixo social. Não se perturbam mais com
eles!
- Não! Nós detestamos essas imagens!
- Seus olhos a detestam, mas suas emoções não reagem.
Marco Polo ficou abalado. Sentiu que Falcão estava coberto de razão. Embora perambulasse
pelas ruas e presenciasse determinados tipos de sofrimentos, não tinha contato com algumas das
mais repugnantes misérias cometidas pelo sistema. Sua sensibilidade não estava doente nem era
exagerada, mas anestesiada, analisou.
Nesse momento teve um insight. Num lance rápido de lucidez, analisou a psicoadaptação
dentro da sala de anatomia. As primeiras imagens dos cadáveres, bem como o cheiro de formol,
tinham causado fortes reações nos alunos, mas pouco a pouco essas reações se diluíram no
inconsciente. O cheiro de formol tornara-se suportável. Alguns estudantes que choraram de
tensão no primeiro dia brincavam com os cadáveres, movimentando seus membros como se eles
estivessem vivos.
Marco Polo fez um paralelo entre a sala de anatomia e o ambiente social. O impacto causado
pelas imagens grotescas noticiadas pela TV perdia o efeito à medida que os espectadores
assistiam a elas diariamente. Percebeu que a sensibilidade estava morrendo na humanidade.
Tornara-se um espetáculo de terror. Por isso, humildemente, expressou:
- Estamos doentes.
Ainda completamente indignado, Falcão usou o próprio discurso de Marco Polo, do princípio da
co-responsabilidade, para questionar:
- Os líderes da sociedade são adultos?
- Obviamente são adultos.
- Então me responda: os governantes dos países ricos e os empresários que dominam o mundo
são co-responsáveis por essas misérias?
- Sim.
- Eles têm insônia ou não por tais sofrimentos?
Acuado, o rapaz não soube responder. Então, Falcão respondeu por ele.
- Se eles dormem e sentem-se tranqüilos, são crianças. Só uma criança não tem consciência das
misérias dos outros e não é responsável por elas. Só uma criança come fartamente e dorme
serenamente enquanto há outras crianças morrendo de fome.
Falcão e o Poeta freqüentemente divertiam as crianças nas praças e habilmente as ensinavam a
pensar com suas idéias e gestos. Para eles, pensadores excluídos, as crianças eram a única coisa pura
da sociedade, seu maior tesouro. Vê-las maltratadas esmagava seus sentimentos.
De repente, Falcão abriu as janelas do seu inconsciente e resgatou as suas reações nos dias
posteriores ao ter abandonado seu filho. Reviveu as primeiras noites como caminhante.
Rememorou os gritos que dava chamando Lucas. Olhava para os escolares e via neles o rosto do
filho. Queria abraçá-los, mas os pais os afastavam.
Essas imagens se mesclaram com as cenas da TV, aumentando sua perturbação. As imagens
dos cavalos abrigados nas cocheiras luxuosas com as imagens das crianças morrendo de fome
embaralharam-se na sua mente. Inquieto, andava pela sala. Parecia que vivia a dor dos infantes.
Teve ânsia de vômito. Queria vomitar sua indignação. Fixou-se na sua platéia invisível e
começou a proclamar como se estivesse em crise. Os vizinhos mais próximos ouviram seus
brados. Marco Polo ficou paralisado.
- Loucos! Estúpidos! Uma espécie que destrói seus pequenos comete suicídio! Que sociedade é
essa em que as crianças são tratadas como animais e os animais como crianças? Não as
maltratem! Deixem-nas brincar! Deixem-nas viver!
Asfixiado interiormente, Falcão saiu subitamente de casa. Precisava respirar.
C a p í t u l o 12
Ao sair pela rua, Falcão foi acompanhado apreensivamente por Marco Polo de longe. Na rua,
entretanto, pouco a pouco, Falcão se libertou. Começou a dançar e fazer caretas para as crianças
e estimulá-las a sorrir. Cumprimentava todo mundo, inclusive quem não conhecia. Abraçou uma
árvore. Voltou a ser o Falcão de sempre. Refez-se, mas não esqueceu as imagens.
Retornou para casa e, junto com Marco Polo, começou a organizar a viagem. Saíram na
madrugada do domingo para segunda-feira no velho carro do jovem. A viagem durou mais de seis
horas. Quando o dia amanheceu, ainda estavam na estrada.
Os primeiros raios solares penetravam em seus olhos. Falcão estava convencido de que
precisava reencontrar os porões do seu passado, abrir algumas feridas que nunca foram
cicatrizadas e enfrentar os fantasmas que nunca morreram.
O nome verdadeiro de Falcão era Sócrates. Sua mãe escolhera o nome do filósofo grego sem
grandes pretensões intelectuais, apenas porque o achara bonito, sonoro. Mas este nome o
influenciara a se interessar, nos tempos de colégio, pelo extraordinário filósofo.
Descobriu que Sócrates fora um questionador do mundo, mas não deixara nada escrito. Seus
discípulos escreveram sobre ele, tal como Marco Polo um dia escreveria sobre Falcão. Fascinado
com a postura intelectual do filósofo, o jovem Sócrates resolveu seguir a carreira de filosofia.
- Para mim, você será sempre Falcão - comentou Marco Polo.
- Não sou mais Sócrates.
Finalmente chegaram à cidade. Foi difícil para Falcão reconhecer as ruas, as praças e os bares. A
cidade sofrerá mudanças, mas não substanciais. Conseguia orientar-se. Seu coração estava
taquicárdico, suas mãos suavam, a musculatura enrijeceu.
Encontrou a velha cantina italiana próxima à sua casa. Pediu para parar.
Era um lugar simples, mas agradável. Nessa cantina, ao redor de uma mesa e segurando o copo de
um bom vinho, fizera grandes debates sobre política, crises sociais, relações humanas. Os clientes
ouviam-no embevecidos. Aprendiam a filosofar como na Grécia Antiga. Falcão lembrou-se de
algumas doces passagens. Todavia foi também essa cantina que teve de sair retirado pelos amigos
quando tinha seus surtos psicóticos.
As paredes estavam desbotadas, o piso xadrez mantinha-se, mas sem brilho, os azulejos floridos
com fundo branco permaneciam intocáveis. Toni, o proprietário, um pouco mais velho que
Falcão, era apaixonado por sua inteligência, e tornaram-se grandes amigos.
Desceu do carro lentamente. Olhou para o horizonte da rua, fitou as construções. Respirou a
brisa da manhã, ainda eram dez horas. Marco Polo, pegando-o pelo braço direito, impeliu-o
suavemente para dentro do estabelecimento.
Falcão perguntou por Toni. O jovem do balcão contou que o proprietário havia sofrido uma
isquemia cerebral e andava com dificuldade, mas não perdera a lucidez. Disse que iria chamá-lo,
mas antes perguntou quem o procurava.
- Diga que é Falcão, ou melhor, Sócrates, um velho amigo.
O balconista abriu a porta dos fundos, onde havia uma antiga residência. Um senhor de cabelos
grisalhos, ao saber da notícia ficou pasmo. Com andar trôpego, esforçava-se ansiosamente por
andar mais rápido. Ao se aproximar, um sorriso incrédulo estampou-se em seu rosto. Parecia que
estava vendo algo do outro mundo. Afinal de contas, um morto acabava de ressurgir.
- Sócrates! Sócrates! Não pode ser você! - disse, tentando correr.
A cena foi quase indescritível. Os olhos viram as letras do tempo. Os dois amigos se abraçaram
prolongadamente sem dizer palavras. Não era necessário dizê-las. O silêncio foi mais eloqüente.
Toni sempre achou Sócrates um gênio. Sofrerá intensamente com as crises psicóticas do amigo.
Dizia que a genialidade o enlouquecera. Seu desaparecimento o tornara um tabu naqueles ares.
Ainda hoje comentavam seu caso.
Após o afetivo abraço, Toni perguntou de onde ele vinha.
- Venho de todos os lugares e de lugar nenhum. Pertenço ao mundo, meu amigo.
Toni ficou felicíssimo com sua resposta. Percebeu que Sócrates continuava afiado nas frases curtas,
mas de grande alcance. Marco Polo observava tudo como atento espectador. Após alguns minutos
de conversa, Falcão entrou no árido terreno do seu passado, perguntando ao amigo:
- E Lucas?
Falcão muitas vezes trouxera seu filho à cantina. Toni conhecia a história. Sabia da longa e
penosa separação. Fez uma pausa. A pausa congelou os sentimentos de Falcão. Em seguida, a
grande notícia.
- Tornou-se um grande homem.
- Como assim? - indagou Falcão, extasiado e aliviado.
- As sementes que você plantou geraram um pensador.
- Não plantei semente alguma. Meu filho teve um pai psicótico - falou humildemente.
Toni, discordando dele, repetiu uma frase inesquecível de autoria do próprio Falcão.
- Você se lembra: "O maior favor que se pode fazer a uma semente é enterrá-la." Você a
enterrou no coração do seu filho. Parecia que morrera, mas eclodiu. Vá à Universidade Central e
veja com os próprios olhos - disse taxativamente.
As lágrimas escorriam dos olhos de Falcão. Em seguida, o velho amigo completou:
- Seu filho veio muitas vezes a essa cantina me ouvir falar sobre você. Conheceu suas peripécias
intelectuais.
O pensador das ruas não suportou ficar de pé. Foram longos anos de sofrimento. Parecia estar
fora da realidade diante de Toni. Sentou-se e disse, incrédulo:
- Não é possível! Meu filho me procurou!
Marco Polo prolongou sua inspiração. Teve certeza nesse momento de que havia tomado um
bom caminho. Toni ofereceu bebida e comida a eles.
- Desculpe-me, amigo, mas a fome e a sede da minha alma são mais urgentes...
Foram à universidade, a mesma onde Falcão havia lecionado e de onde fora expulso. Os
longos corredores e o piso de granito escuro abriram as janelas da sua memória. Novamente
lembranças agradáveis e frustrantes ocuparam o cenário da sua mente. Ficou apreensivo.
Chegaram à secretaria e perguntaram por Lucas. Descobriram que ele havia ido longe. Era
doutor em sociologia e pró-reitor da universidade. Tinha apenas 32 anos. Falcão ficou espantado
com a notícia. Como o filho de um doente mental, que fora perturbado pelas crises do pai, tinha
chegado tão jovem ao topo da hierarquia acadêmica?
Falcão sabia que as doenças psíquicas não são contagiosas e nem são determinantes
geneticamente; no máximo geram influência que podem ser dissipadas pelo ambiente
educacional. Tinha ciência de que o universo psíquico é tão complexo que filhos de psicóticos e
depressivos eram capazes de superar o clima estressante de suas casas e se tornar felizes, seguros,
líderes.
Vivera dez anos com Lucas. A base da personalidade de seu filho já se formara. O temor de
que sua ausência pudesse ter prejudicado a personalidade do menino sempre o assombrou. As
notícias atuais sobre Lucas refrigeravam sua emoção.
A secretária comunicou que o Dr. Lucas estava no departamento de ciências jurídicas dando
uma conferência sobre "A crise na formação de pensadores". Falcão, indeciso, disse que voltaria
numa outra hora. Marco Polo pegou-o pelo braço e pediu para lhe apontarem a direção do
anfiteatro. Chegaram ao evento. A sala estava praticamente cheia.
Havia apenas alguns lugares na primeira fila. Sem alternativa, sentaram-se próximo do
conferencista. Dr. Lucas interrompeu rapidamente sua fala, esperou que os novos ouvintes se
acomodassem e continuou sua exposição.
Falcão estava irreconhecível com seus cabelos grisalhos, relativamente longos e revoltos. Pele
seca e sulcada pelos maus-tratos da rua. Na platéia estavam professores, alguns antigos colegas.
Ouvir seu filho discursar com segurança, disparou inúmeros gatilhos em sua memória. Um
vendaval de imagens passou em sua mente. Recordou-se de inúmeras passagens do pequeno
Lucas. Parecia incrível, surreal, que depois de tantos anos estivesse diante dele novamente. Seus
olhos se fixavam na sua face comovidamente. Tinha vontade de interromper a conferência,
correr e abraçá-lo. Mas conteve-se. Até por não saber como ele reagiria.
Lucas terminou sua palestra afirmando que as universidades se multiplicaram, mas a formação
de pensadores não aumentou. Comentou que uma das causas era o fato de o conhecimento estar
separado, dividido, formando profissionais com uma visão unifocal e não multifocal da realidade.
Disse que a matemática, a física e a química deveriam unir-se com a sociologia, a psicologia e a
filosofia, para construir uma ciência humanista, capaz de produzir ferramentas que modifiquem
o mundo. Em seguida, concluiu, sob os aplausos acalorados da platéia:
- O conhecimento humanista produz idéias. As idéias produzem sonhos. Os sonhos
transformam a sociedade...
Após o término, estimulou os participantes a debaterem suas idéias e experiências. A platéia
estava hesitante, como se o palestrante não tivesse dado margem para questionamentos.
Marco Polo, ousado, fez sinal para Falcão falar, mas ele emudeceu. Novamente o jovem
estimulou o amigo, sussurrando-lhe:
- E a sua grande oportunidade para ajudar as pessoas e impressionar seu filho. Você é um
mestre nesse tema. Vamos!
Falcão balbuciou:
- Não sou capaz.
Nesse momento, Marco Polo recordou a lição que Falcão lhe dera quando disse
insensatamente que a ciência era o deus do ser humano. Mentiu que era a sua vez de devolver-lhe
a lição. Levantou-se subitamente, foi à frente da platéia, pegou o microfone e subiu ao palco
onde estava o Dr. Lucas.
Ao ver a atitude de Marco Polo, Falcão percebeu que tinha entrado numa das maiores
encrencas da sua vida. Seu discípulo aprendia as coisas rapidamente. Do alto do palco, Marco
Polo falou ousadamente:
- Estimada platéia! Vou apresentar-lhes um dos maiores pensadores da atualidade. Fez
caminhadas em várias universidades do mundo. Ele é tão requisitado que não tem endereço
certo. É tão eloqüente que é capaz de fazer discurso até em cima de um banco de praça. Entende
como ninguém a crise dos pensadores.
As pessoas, admiradas, deram risadas. Em seguida, Marco Polo apontou as duas mãos para o
amigo.
- Com vocês, Dr. Falcão!
Havia mais de trezentos participantes. A platéia achou estranho o nome do debatedor. Dr.
Lucas, em sinal de respeito, levantou-se e o aplaudiu. A platéia fez coro. Falcão não teve outra
alternativa.
Subiu ao palco, fitou a platéia demoradamente. Reconheceu por trás dos cabelos brancos
alguns colegas. Lembrou-se dos que lhe deram as costas e fizeram chacotas. Seu olhar penetrante
invadiu-lhes a inteligência.
Começou a falar com uma voz vibrante e pausada. Parecia que nunca havia saído do
microcosmo da sala de aula. Disse que os grandes homens produziram suas mais brilhantes idéias
na juventude, quando ainda eram imaturos.
- Por que foram tão produtivos na juventude, senhores? Porque não tinham medo de pensar.
E por que não tinham medo de pensar? Porque não eram servos dos paradigmas e conceitos
antigos e nem de suas verdades. Não foram aprisionados pelo conhecimento pronto.
Em seguida questionou a platéia.
- O que é mais importante para formar um pensador: a dúvida ou a resposta pronta?
- A dúvida! - responderam em coro.
- O que vocês ensinam?
Surpreendidos com a pergunta, os professores de direito, psicologia, sociologia, engenharia e
pedagogia, na grande maioria, disseram com honestidade:
- A resposta pronta.
- Senhores, desculpem-me, mas ainda que não tenham consciência disso, por transmitir o
conhecimento pronto, vocês estão formando repetidores de idéias e não pensadores. O sistema
acadêmico tem aprisionado o ser humano e não libertado sua inteligência.
Enquanto Falcão falava, alguns membros da platéia tiveram a impressão de que o conheciam.
Seu atrevimento e fineza de raciocínio os remetiam ao passado. Falcão, então, focando antigos
docentes e pesquisadores, golpeou-os frontalmente:
- Talvez muitos de vocês também estejam algemados por esse sistema sem que o saibam. No
começo da carreira acadêmica provavelmente duvidavam, aventuravam-se e produziam mais
conhecimento do que hoje, quando são reconhecidos. O sucesso na carreira e os títulos que
valorizam os cientistas podem funcionar como venenos que matam a sua ousadia e criatividade.
Na realidade, não deveríamos ser doutores, senhores, mas eternos aprendizes.
Lucas ouvia atentamente o homem culto e provocador. Como líder da universidade, ele sabia
que muitos ilustres professores escondiam-se atrás dos seus títulos e não mais produziam ciência.
Lucas tornara-se um destemido pensador; seu sucesso viera do seu caos. Crescera num dos
piores ambientes, mas seu pai, antes da sua psicose e nos momentos de lucidez entre os surtos, o
levara a não ter medo do novo, a explorar o desconhecido, a molhar-se na chuva, a construir seus
próprios brinquedos, a enfrentar sua insegurança e sentimento de humilhação.
Falcão olhou para Lucas, para Marco Polo, depois para a platéia e finalizou:
- Nossos alunos consomem o conhecimento como sanduíche, um fastfood. Não o digerem,
não o assimilam e nem conhecem seu processo de produção. Recebem diplomas e se preparam
para o sucesso, mas não para lidar com frustrações, perdas, desafios e fracassos. As
universidades, com as devidas exceções, têm gerado servos e não autores da sua história.
A platéia ficou abalada com essa exposição crítica e contundente. Houve uma explosão de
aplausos. Perguntaram baixinho a Marco Polo de onde vinha o professor. Marco Polo disse-lhes
que de muitos lugares e de lugar nenhum.
Falcão, com a voz embargada, agradeceu e disse:
- Dirijo os aplausos a uma pessoa aqui presente mais importante do que eu. Alguém com
quem, na sua infância, brinquei, beijei e amei mais do que tudo nessa vida... Mas também alguém
que feri e perturbei com minhas crises. Para poupá-lo, parti para uma longa viagem. Nessa
viagem, superei minhas crises, mas não tive coragem de voltar. Tive medo de mim mesmo. Sei
agora que errei e muito...
O público, confuso, não entendeu a mudança de discurso, e Lucas igualmente. Falcão estava
chorando. Fez mais uma pausa para conter seu pranto.
- Meu filho sofreu muito, perdeu demais, mas usou sua dor para conquistar seu sucesso.
Tornou-se um brilhante pensador e um generoso ser humano...
Falcão falava olhando para Lucas. Entrou em estado de choque. Com a voz entrecortada,
abaixou o microfone e limpando com as mãos as suas lágrimas, disse:
- Filho... Eu o amo! Perdoe-me, meu pequeno pupilo.
Lucas jamais se esquecera do apelido carinhoso que seu pai lhe dera. Como um raio, as últimas
palavras de Sócrates abriram as crateras do seu interior e iluminaram os becos da sua história. Ele
reconheceu seu pai. Transportou-se para o passado. Imediatamente inúmeras imagens saíram da
colcha de retalhos da sua memória, ganharam visibilidade no palco consciente. Começou a ver e
ouvir seu pai de braços abertos chamando-o. Voltou aos dez anos e viu também seu próprio rosto
apavorado procurando-o no meio da multidão.
Tinha chorado muitas vezes na adolescência, gritando pelo pai em silêncio. Lucas não se
importava se os outros debochavam dele. Amava-o e queria-o do jeito que ele era, seu querido pai.
Agora, Sócrates estava no palco flamejando sua inteligência como se nunca tivesse deixado o
cenário de sua vida. Parecia irreal. Lucas caiu em prantos. Ficou completamente sem reação.
Não eram dois intelectuais encontrando-se, mas duas almas despedaçadas, um pai e um filho
cujas histórias foram mutiladas pelas intempéries da existência, mas que agora foram reunidas.
Lucas levantou-se soluçando e balbuciou:
- Pai! Papai! É você...
Abraçaram-se prolongadamente. Consolaram-se das suas dores. Beijaram-se afetivamente. O
tempo parou. A platéia estava atônita. Momentos depois, Lucas olhou para Falcão e disse-lhe:
- Pai, você não imagina como o procurei! Foram noites de insônias e pesadelos.
- Meu filho, meu filho! Perdoe-me! Quis ser um herói, mas fui um covarde!
- Não, papai, você foi o mais corajoso dos homens. Vovô Pedro, em seu leito de morte,
confessou a mim e a mamãe o que fizera com você. Disse que comprou um laudo de um
psiquiatra para afastá-lo de mim. Jamais deixei de amá-lo.
Eles se abraçaram novamente. O público levantou-se e aplaudiu sem entender direito os fatos.
Estavam apenas cônscios de que presenciavam uma das mais belas cenas de amor...
Marco Polo não suportou a comoção. Foi até a janela, abriu-a e sentiu a brisa acariciar seu rosto.
Observou os movimentos suaves das folhas e flores. Num mergulho interior, pela primeira vez
sussurrou algumas palavras que pareciam uma oração: "Deus, eu não sei quem você é. Eu
também não sei quem eu sou. Mas obrigado pela vida e por todas as alegrias e sofrimentos que a
transformam num espetáculo único!"
Falcão voltou-se para Marco Polo, abraçou-o profundamente e agradeceu-lhe. Apresentou-o
como filho adotivo e, para não perder seu humor, ainda teve tempo para brincar.
- Os loucos vivem mais aventuras do que os normais. Nunca seja muito normal, Marco Polo...
Ao ouvir essa frase, o rapaz resgatou a frase de seu pai que estava submersa em seu inconsciente:
"Saia do lugar-comum, meu filho!"
Meneando a cabeça, Marco Polo entendeu o recado. Resolveu em seu íntimo libertar sua
criatividade e caminhar sem medo pelas curvas da existência. Desejou honrar seu nome e fazer da
sua vida uma fascinante aventura.
C a p í t u l o 13
Falcão e Marco Polo foram para a casa de Lucas. Ele havia se casado e tinha uma filha de dois
anos. Conversaram longamente. No dia seguinte, Débora, a ex-esposa, apareceu. Lucas lhe
comunicara as surpreendentes notícias. Ela estava abalada e cética. Parecia um sonho o retorno
de Sócrates e, principalmente, o resgate da sua lucidez.
O relacionamento de Débora com o ex-psiquiatra de Falcão tinha durado pouco, cerca de um
ano. Moraram juntos por seis meses. Como todo relacionamento que não tem raízes, caso
freqüente entre terapeutas e pacientes, eles não suportaram o clima das dificuldades. O psiquiatra,
tão gentil e solidário nos primeiros meses, se mostrou intolerante e pouco amante do diálogo.
Terminaram a relação e nunca mais se falaram.
Débora teve outros namorados. Chegou a morar por quatro anos com um juiz de direito,
amigo de seu pai. Mas o relacionamento não tinha tempero emocional. Faltava cumplicidade e
afetividade.
O juiz era isolado, fechado, vivia para o trabalho e não trabalhava para viver. Era um excelente
profissional, mas não sabia investir naquilo que mais amava. Não conseguia compreender a
emoção ferida e carente de Débora nem penetrar no mundo solitário de Lucas. Assim, desde a
partida de Sócrates, ela nunca mais encontrara um grande amor. Há dois anos estava só.
Débora chegou de surpresa na casa de Lucas. Ao entrar na sala, os olhos dela encontraram os
olhos dele. Foi um momento regado com ternura. A doçura e a dor se entreteceram. Os olhos
dele umedeceram, os dela lacrimejaram. Só o silêncio conseguia decifrar a magia desse momento.
Lucas calou-se. Marco Polo, que se preparava para retornar à sua cidade, aquietou-se.
Conhecia Débora pelas palavras de Falcão. O olhar do amigo a denunciara, sabia que estava
diante dela. Após rápida apresentação, Marco Polo e Lucas os deixaram a sós, mas Falcão e
Débora preferiram sair. Precisavam percorrer as avenidas de seu passado.
Refletindo sobre o período em que não suportara suas crises e o tinha trocado pelo seu
psiquiatra, Débora abaixou lentamente a cabeça e disse-lhe suavemente:
- Não sei se é possível, mas perdoe-me. Perdoe-me por tê-lo abandonado no momento em
que você mais precisava de mim...
Meneando a cabeça, Falcão rapidamente tentou aliviar o peso do sentimento de culpa dela.
- Eu te compreendo. Eu te compreendo...
Raramente poucas palavras foram tão eloqüentes. Em seguida, ele refletiu sobre o ciúme
doentio que tinha da mulher. Por isso acrescentou:
- Perdoe-me também. Perdoe-me pelo meu ciúme paranóico. Perdoe-me por todas as vezes
que, em meus delírios, a acusei de traição.
- Você não tinha consciência.
- Consciente ou não, eu a feri. Não consigo imaginar o quanto você sofreu. Sei que não foi
fácil suportar minhas loucuras.
- Por trás das suas loucuras havia um ser humano maravilhoso.
Em seguida, ela o abraçou afetuosamente. Ele beijou seu rosto suavemente. Aos seus olhos,
ela ainda era linda. De mãos dadas, continuaram conversando. A partir dali tornaram-se grandes
amigos.
Falcão foi reconduzido à sua universidade. Alguns antigos colegas reconheceram com gestos e
não com palavras o erro cometido. Eles o tinham discriminado por ter sido um paciente
psiquiátrico e erraram ao tachar sua doença mental como doença completamente incapacitante.
Em muitas universidades havia outras vítimas.
O retorno de Falcão às suas atividades profissionais foi mais do que um ato de compaixão da
sociedade, tentando realizar a inclusão social. Foi uma das raras vezes em que a sociedade
reconheceu a sabedoria de um ex-psicótico e deu-lhe a oportunidade de provar que vários
mutilados pela vida têm muito a ensinar a quem tem muito a aprender.
Falcão manteve seu apelido. Provocativo, ele instigava seus alunos a abrir as janelas do intelecto,
a ter audácia para construir idéias críticas contra tudo que engessava suas mentes. Com olhar
penetrante e fala afiada, o mestre das ruas voltou a flamejar no pequeno mundo da sala de aula.
Marco Polo retornou à sua cidade. Enquanto dirigia na estrada, contemplava o ocaso. Os raios
solares transpassavam os espaços entre as nuvens deixando estrias douradas. Era uma anatomia
celeste encantadora. Enquanto observava a natureza, mergulhou dentro de si. Um pensamento
deixou o silêncio do seu ser e ganhou sonoridade: "Gastarei minha vida explorando o mais
complexo e deslumbrante dos mundos: a mente humana. Serei um garimpeiro que procura ouro
nos escombros das pessoas que sofrem."
Esse pensamento mudaria para sempre sua vida, pautaria sua conduta e o faria pouco a pouco
enxergar os transtornos psíquicos por outros ângulos. Ao longo dos anos, teria um pensamento
diferente do pensamento corrente na ciência. Não encararia as psicoses, as depressões e os
demais transtornos psíquicos como atributo dos fracos, mas da complexidade da personalidade
humana.
O contato estreito com Falcão fez Marco Polo se tornar um estudante de medicina mais
questionador e crítico do que antes. Era um modelo de estudante raro no mundo acadêmico.
A grande maioria de seus colegas de classe tinha medo de expor suas dúvidas e críticas. Ele, ao
contrário, embora procurasse ser gentil, não suportava ficar calado. Causava tumultos em sala de
aula por sua ousadia em interrogar os professores. Estes ficavam aflitos diante dele, pois estavam
preparados para ministrar aulas a uma platéia passiva.
Alguns alunos, muitíssimos bem-comportados, tiravam melhores notas do que Marco Polo,
mas não tiravam as melhores notas nas funções mais importantes da inteligência - não
trabalhavam a capacidade de pensar antes de reagir, a segurança, a sensibilidade, a intrepidez.
Eram sérios candidatos à frustração profissional e emocional.
Não ter medo de ser diferente nem sempre era o caminho mais confortável para o jovem
Marco Polo. Exigia um preço, mas, como desejava ter luz própria e não ficar na sombra dos
outros, estava disposto a pagá-lo. Para ele, o diploma passou a ser apenas um apêndice.
Por pensar muito e viver analisando os fatos internos e externos da sua vida, Marco Polo era
uma pessoa marcadamente distraída. Esquecia onde deixara a chave do velho carro e, às vezes,
onde o estacionara.
Certa vez, no quinto ano de medicina, ficou de levar um paciente com a perna engessada e que
andava de muletas para o setor de ortopedia. Entretanto, esqueceu-se de que o paciente o seguia.
Subiu alguns andares, desceu outros, andou por corredores compridos e entrou na cozinha do
grande hospital. Ao chegar lá, percebeu que alguém o perseguia. Era o paciente de muleta. Pediu
desculpas e disse com humor:
- Você está melhor do que eu!
O traumatizado sorriu. Algumas pacientes diziam-lhe:
- Doutor, minha memória está ruim.
- Não se preocupe, a minha está péssima - falava em tom de brincadeira.
Estava se tornando quase tão distraído como Hegel em sua velhice. O ilustre filósofo entrou
uma vez na sala de aula calçando apenas um sapato. O outro deixou, sem perceber, na lama.
Apesar de sua distração, Marco Polo era intensamente generoso e afetivo com os pacientes.
Nas aulas práticas, seus professores reuniam grupos de oito alunos e, na beira do leito dos
pacientes, começavam a descrever as doenças, suas causas, tratamentos e sobrevida. Referiam-se
em códigos a algumas doenças, como "c.a." para câncer, para não constranger os pacientes. Mas
estes sempre ficavam ansiosos.
Após o grupo sair das aulas práticas, Marco Polo procurava esses pacientes. Queria entrar nas
entranhas de suas histórias, aliviar-lhes a angústia decorrente da internação e expectativa de
morte. Tornava-se amigo deles. Fascinado com a medicina, pensava: "Um dia, mais cedo ou mais
tarde, todo ser humano adoecerá e precisará de um médico. Ricos e miseráveis, famosos e
anônimos, são iguais perante a dor e a morte. Eles são os fenômenos mais democráticos da
existência."
Com o passar do tempo, apesar do apreço pela medicina, Marco Polo começou a ficar
decepcionado com o que observava. A medicina moderna especializou-se em eliminar a dor física
e emocional, mas não aprendeu a utilizá-la minimamente. O desespero em querer eliminar a dor
retardava o alívio e bloqueava os pacientes, impedindo-os de usá-la como ferramenta para
corrigir suas rotas e lapidar sua maturidade. Por detestar a dor, a medicina, tal qual a sociedade
moderna, especializou-se em tratar o sofrimento do ser humano, e não o ser humano que sofre.
A medicina se tornou lógica, objetiva, uma escrava da tecnologia. Muitos aparelhos, muitos
exames, muitos procedimentos, mas pouca sensibilidade para descobrir as causas emocionais e
sociais. A ansiedade na gênese dos infartos quase não era levada em conta. O estresse escondido
nos bastidores dos cânceres era pouco analisado. Os pensamentos antecipatórios por trás das
gastrites, hipertensão arterial, cefaléias, dores musculares raramente eram investigados.
Certa vez, Marco Polo estagiava no setor de emergência. O ambiente do pronto-socorro era
sombrio, excessivamente técnico e pouco afetivo. Nesse estágio, ficou inconformado com as
atitudes de certos professores de medicina diante dos sintomas de algumas mulheres. Elas apresentavam
fortes dores de cabeça, dores abdominais, dores no tórax, mas não tinham doença
física que justificasse os sintomas.
Diante disso, prescreviam analgésicos, às vezes, tranqüilizantes, e secamente as despediam
dizendo que não tinham nada orgânico. No máximo, alguns sugeriam que elas procurassem um
psicoterapeuta.
Após as pacientes saírem do consultório, determinados professores reclamavam delas para os
estudantes. Diziam que elas atrapalhavam o serviço, que simulavam sintomas, inventavam
doenças, não tinham mais o que fazer. Negavam que elas possuíam um conflito interior
massacrante.
Certa vez, Marco Polo teve uma discussão com um professor, Dr. Flávio, que tratou
estupidamente uma mulher. Ela aparecia toda semana para ser atendida com aperto no peito,
taquicardia e sensação de falta de ar. Ao vê-la novamente com a mesma queixa, ele argüiu
rispidamente:
- Você não tem mais o que fazer? Quantas vezes já lhe disse que não tem nada fisicamente? Vá
resolver sua vida! Procure um psiquiatra.
A paciente caiu em prantos.
Marco Polo pegou-a delicadamente pelo braço e pediu-lhe que esperasse lá fora. Em seguida,
olhou para seu professor e falou-lhe:
- Por que, em vez de criticá-la, o senhor não conversa sobre as causas psíquicas desses
sintomas? Por que não investiga a sua história?
Uma das tarefas mais difíceis do mundo é ensinar um professor que perdeu sua capacidade de
ser um aluno. Sentindo-se afrontado, o professor elevou seu tom de voz. Com autoritarismo,
falou na frente de outros três colegas de Marco Polo presentes na sala:
- Olha aqui, garoto, não me venha dar lição de moral. Sou doutor em emergência médica e
você é um mero aprendiz. Aqui não temos tempo para cuidar de bobagem.
Intrépido, Marco Polo retrucou:
- Se o senhor, que é culto e saudável, ficou ofendido com minhas simples palavras, imagine
como essa paciente não se ofendeu com suas palavras.
O professor engoliu em seco. Em seguida, Marco Polo emendou:
- Vir a um pronto-socorro não é a coisa mais agradável de se fazer. Se essa paciente teve
coragem para vir a esse ambiente tenso, desprovido de alegria, é porque ela deve estar sofrendo
muito. O senhor não acha que seus sintomas, ainda que imaginários, representam um grito
de que ela está precisando que o senhor dialogue com ela?
Os demais alunos sentiram calafrios pela ousadia de Marco Polo.
- Não sou psiquiatra.
- Professor, desculpe a minha ignorância diante da sua competência, mas será que não
loteamos os pacientes entre a medicina biológica e a psiquiatria? Talvez ela não precise de um
psiquiatra no momento, mas de um especialista como o senhor que a ouça, lhe dê apoio,
compreensão e segurança de que ela não tem nenhuma doença grave.
Os alunos se entreolharam apreensivos. O professor ficou perturbado e sem ação. Mas, depois
de um momento de silêncio, demonstrou um gesto de rara humildade:
- Reconduza-a a esta sala.
Na sala, o Dr. Flávio perguntou seu nome completo e indagou se ela podia falar sobre sua
história na frente de todos os alunos ou preferia conversar a sós. Catarina comentou que poderia
falar a todos. Era uma mulher de traços belos, mas marcados pela angústia crônica. Tinha trinta
anos, era casada e com um filho de um ano e meio.
Para surpresa do professor e dos alunos, ela relatou espontaneamente que há um ano perdera,
através de um infarto fulminante, uma das pessoas que mais amava na vida: seu pai. Ele fora seu
grande amigo e sempre estivera presente nos momentos mais difíceis da sua história. Agora, ela
atravessava um gravíssimo problema, mas não tinha mais seu ombro, seu consolo e conselho.
Há quatro meses seu marido sofrerá um grave acidente automobilístico, teve um trauma de
coluna e estava numa cadeira de rodas. Ele chorava diariamente querendo andar, praticar
esportes, rever os amigos. Sua casa, antes um canteiro de alegria, tornara-se uma terra seca. Os
médicos disseram que ele tinha chance de voltar a andar, mas ela temia que isso não acontecesse.
O medo da vida, o medo do amanhã, o medo de ter um marido paraplégico a dominavam.
Insegura, começou a ter outros tipos de medos: de não conseguir sustentar sua casa, de morrer de
infarto tal qual seu pai, de deixar seu filho sozinho no mundo.
Não tinha o pai para dividir sua dor e não podia contar com o marido. Além disso, seu marido
não tinha seguro-saúde e nem seguro-desemprego. Ela trabalhava para sustentar a casa, mas seu
salário mal dava para a família sobreviver. E, enquanto trabalhava, ficava pensando no marido
numa cadeira de rodas e no filho indefeso. Ao falar tudo isso, desatou a chorar. Estava insone,
deprimida e profundamente solitária. Sentia-se desprotegida.
Ao olhar para a angústia de Catarina, Dr. Flávio ficou pensando em tudo o que possuía e não
valorizava. Sentiu-se um grande egoísta. Sua esposa era saudável, seus filhos maravilhosos, havia
uma empregada para cuidar da casa, não tinha problemas financeiros. Tudo o que Catarina não
tinha, mas vivia insatisfeito, reclamando da vida e do trabalho. Marco Polo se antecipou e lhe
disse:
- Você tem razão de ter esses sintomas, Catarina. Eles são a ponta do iceberg do seu
sofrimento.
Para surpresa da paciente, o professor que a ofendera completou amavelmente:
- Desculpe minha atitude inicial. Eu concordo com Marco Polo. Seus sintomas são pequenos
diante de tantos transtornos. Catarina, você é uma heroína. Creio que seja mais forte do que nós.
Tenha convicção de que você não tem nenhum problema físico importante. Os exames que
fizemos na semana passada demonstram que seu coração está ótimo. Venha aqui todas as vezes
que desejar. Você terá sempre alguns amigos para ouvi-la.
Marco Polo ainda acrescentou:
- Você está canalizando para seu corpo a ansiedade decorrente das suas perdas. Lute contra
seus medos, lute pelas pessoas que você ama, lute pelo seu filho e pelo seu marido.
Dr. Flávio ficou impressionado com os conflitos da sua paciente e com o altruísmo e a força
do seu aluno. Profundamente sensibilizada, Catarina agradeceu e saiu do pronto-socorro, pela
primeira vez, alegre e disposta a enfrentar a vida.
Sabia, agora, que tinha um porto seguro, que podia contar com alguns amigos. Entendeu e
convenceu-se de que seus sintomas eram de origem emocional. Quando eles apareciam, ela já
não gravitava em torno deles. Resgatou sua auto-estima e sua segurança.
Infelizmente, seu marido teve seqüelas irreversíveis - ficou paraplégico. Catarina o encorajou a
não se entregar, a encontrar alegria e liberdade em suas limitações. Apoiado pela esposa, ele não
teve compaixão de si mesmo, não se considerou um pobre miserável, mas foi à luta. Em vez de
deprimir-se, seu filho revigorou-lhe o ânimo.
Mesmo numa cadeira de rodas, ficou dois anos cuidando da criança enquanto Catarina
trabalhava. Raramente um pai curtiu tanto um filho. Posteriormente, conseguiu recolocar-se. O
menino foi para uma creche. Tornaram-se uma família rica, embora não tivessem grandes
recursos financeiros.
Catarina nunca mais voltou ao setor de emergência como paciente. Retornou apenas para
apresentar o filho e o marido aos novos amigos. Superou a masmorra do medo.
C a p í t u l o 14
Marco Polo se correspondia freqüentemente com Falcão, e pelo menos uma vez a cada
semestre eles se visitavam. Quando se encontravam, ainda faziam peripécias. Suas atitudes
inusitadas de abraçar árvores, contemplar prolongadamente a natureza, fazer poesias de
improviso e declamá-las continuavam a atrair todos ao redor.
Chegou o dia da formatura. Pela admiração que construíra em seus colegas de classe, Marco
Polo foi o orador da turma. Sua preleção resgatava sua experiência desde os tempos da sala de
anatomia, mesclava filosofia com uma visão crítica da medicina e da psiquiatria. Finalizou seu
ousado discurso com estas palavras:
Um dia todos nós vamos para a solidão de um túmulo. Uma criança de um dia de vida já
é suficientemente velha para morrer. A morte é a derrota da medicina. Todavia, apesar das
limitações da ciência, devemos usar todas as nossas habilidades não apenas para prolongar a
vida, mas para fazer dessa breve existência uma experiência inesquecível. Os médicos devem
ser pessoas de rara sensibilidade, artesãos das emoções, profissionais capazes de enxergar as
angústias, as ansiedades e as lágrimas por trás dos sintomas. Caso contrário, tratarão de
órgãos e não de seres humanos. Acima de tudo, os médicos, bem como todo profissional que
cuida da saúde humana, devem ser vendedores de sonhos. Pois, se conseguirmos fazer
nossos pacientes sonharem ainda que seja com mais um dia de vida ou com uma nova
maneira de ver suas perdas, teremos encontrado um tesouro que reis não conquistaram...
Marco Polo foi ovacionado com entusiasmo. Seu discurso deixou os presentes reflexivos. Mas
ele não imaginava que um dia passaria por muitas dificuldades e que teria de fazer desse
audacioso discurso os pilares centrais da sua vida, caso contrário não sobreviveria. Teria de
vender e construir sonhos.
Logo após sua formação, ingressou num curso de especialização em psiquiatria, num grande
hospital psiquiátrico, chamado Atlântico. Havia mais de oitocentos pacientes internados. Parte do
tempo, ele fazia atendimentos internos e na outra parte realizava atendimentos de pacientes nãointernados.
Freqüentemente seus professores se reuniam para discutir os casos mais complexos.
O Hospital Atlântico era constituído de três grandes prédios, com belas fachadas, janelas
torneadas e ricamente trabalhadas. As construções lembravam os edifícios da parte velha de
Paris. Porém, por dentro, o ambiente estava longe de ser encantador. As paredes eram brancas e
descoloridas. As áreas de lazer entre os prédios eram enormes, mas mal utilizadas e os jardins
extensos e pouco cuidados.
Nos tempos de Marco Polo, a hospitalização já era desencorajada. Em tese, os pacientes
deveriam ficar o menor tempo possível internados, mas ainda havia inúmeros hospitais e muitos
pacientes internados cronicamente, desamparados por suas famílias. O jovem pensador se
entristecia ao constatar que a sociedade insistia em separar os normais dos anormais. O problema
consistia em saber quem era menos doente, se os de fora ou os de dentro.
Alguns hospitais psiquiátricos eram mais humanizados do que o Atlântico. Neles, os pacientes
menos graves passavam o dia internados e à noite retornavam a suas casas. Mas o velho hospital,
embora fosse referência nacional, parecia mais um depósito de doentes mentais.
Os enfermeiros eram irritados e ansiosos. Os psiquiatras raramente sorriam, tinham um mau
humor latente. A tristeza era contagiante. Faltava alegria e solidariedade no famoso hospital.
Marco Polo estava chocado com o que vivia. No começo da sua especialização, ele se perguntava
freqüentemente: "O que estou fazendo aqui?" Era um mundo completamente distinto da
sociedade em que crescera.
Embora tivesse breve contato com alguns pacientes psiquiátricos durante o curso de medicina,
agora estava na cidade deles. Via pessoas por toda parte com o eu desagregado, partido, sem
identidade, sem parâmetros de realidade. Os pacientes estavam embotados, sem expressão facial,
com musculatura contraída. O tratamento era fundamentalmente medicamentoso. Tal
procedimento contrariava tudo o que aprendera com a história de Falcão. Marco Polo estava
inconformado.
Alguns pacientes achavam, em seus delírios, que eram grandes personagens da história. Outros
se sentiam controlados, perseguidos e sentiam que suas mentes eram invadidas por vozes, como
Falcão em seus surtos. Ainda outros construíam imagens de animais ou de objetos ameaçadores.
Havia também pacientes vítimas de alcoolismo, dependência de outras drogas e depressão.
A doença psíquica não escolhia cor, raça, nacionalidade ou status social. As pessoas internadas
vinham de todas as camadas sociais, de simples funcionários a executivos. Advogados,
engenheiros e até alguns médicos faziam parte da população do Hospital Atlântico.
De acordo com a engenhosidade inconsciente, cada paciente construía seus delírios e
alucinações com características e freqüências próprias. Cada cabeça era um mundo. Um mundo
que encantava Marco Polo.
Logo que começou a atender os pacientes internados, o jovem pensador percebeu que o
tratamento psiquiátrico gerava uma fábrica de preconceitos. As pessoas da sociedade tinham
medo de procurar psiquiatras porque achavam que eles eram médicos de loucos, e os internados
estavam tão combalidos que eles mesmos sentenciavam-se como doentes, proclamando
espontaneamente seu diagnóstico: "Eu sou esquizofrênico", "Eu sou PMD" (psicótico maníacodepressivo).
Não havia brilho nos olhos dos pacientes internados, não havia esperança. Para sua tristeza,
Marco Polo concluiu que, se havia um lugar na sociedade onde os sonhos morreram, era dentro
dos hospitais psiquiátricos. Os presídios eram menos cáusticos. Parecia que naqueles ares a
psiquiatria não vendia sonhos, mas pesadelos.
Algumas pessoas preconceituosas encaravam os pacientes internados como esgotos da
sociedade, não percebiam que eles mereciam um solene respeito. Os pacientes não eram
culpados por seus transtornos psíquicos, como os pacientes com AIDS, câncer e infarto também
não o são. Todavia, a sociedade dos "normais" ama procurar explicações superficiais, ama achar
culpados para os problemas que não entende.
Marco Polo também descobriu que até os portadores de leves transtornos emocionais
facilmente perdiam a auto-estima. Eles se autotachavam de depressivos, fóbicos, estressados.
"Quais são as raízes desse preconceito, se não há ninguém psiquicamente saudável na
sociedade?", pensava, inconformado.
Começou a desconfiar que os pacientes vestiam o rótulo dos diagnósticos na psiquiatria e se
sentiam condenados a conviver com eles pela vida toda. Perdiam a maior dádiva da inteligência:
reconhecer que, acima de nossas mazelas psíquicas, somos seres humanos e, como tal,
possuidores de personalidade fascinante. Abalado, começou a entender mais estreitamente as
rejeições que Falcão atravessou em suas crises antes de sair pelo mundo.
Não demorou muito para Marco Polo movimentar o ambiente. Ele reunia os pacientes nos
corredores, nas áreas de lazer, nas salas de atendimento, fitava-os e com convicção lhes dizia:
"Vocês não são doentes mentais. Vocês são seres humanos portadores de uma doença mental.
Acreditem em seu potencial intelectual. Não desistam de si mesmos. Vocês são fortes e capazes."
Alguns pacientes choravam diante do conforto que nunca tinham recebido. Outros não
entendiam o que ele queria dizer. Outros saíam eufóricos com a injeção de ânimo. Outros ainda
achavam que ele era também um paciente que se passava por médico. Diziam: "Que louco legal!"
Ele sorria. Aos poucos a fama de Marco Polo correu no ambiente. Uma raposa aparecera no
ninho do grande Hospital Atlântico para despertar mentes cerradas e perturbar os dogmas.
Ele achava que devia haver mais romantismo e prazer num ambiente tão tétrico. Criticava o
mau humor dos profissionais do hospital. Por isso, começou a revolucionar o relacionamento
com os pacientes. As formalidades foram dispensadas. As distâncias entre os médicos e pacientes
foram aproximadas. Marco Polo começou a chamar cada um alegre e efusivamente pelo nome.
Abraçava-os e elogiava-os onde quer que os encontrasse: "Joana, você está maravilhosa?
Eduardo, hoje você está mais sorridente! Jaime, que bom revê-lo!"
Os psiquiatras e enfermeiros se surpreendiam com as atitudes do jovem psiquiatra. Algumas
pessoas maldosas diziam que ele era candidato a algum cargo político.
Um belo dia, uma senhora de 75 anos, deprimida, pessimista e excessivamente crítica, foi
atendida por Marco Polo. Seu nome era Noemi. Ela possuía inúmeras janelas killers em seu
inconsciente. Essas janelas são zonas de conflito que geram alto volume de tensão capaz de
"assassinar" ou bloquear a capacidade de pensar de uma pessoa num determinado momento,
levando-a a reagir por instinto, com agressividade.
Qualquer contrariedade, até um pequeno olhar, detonava um gatilho inconsciente que
conduzia Noemi a abrir as janelas killers, levando-a reagir sem pensar, conduzindo-a a ofender e
criticar impulsivamente as pessoas ao seu redor. Antes de ela entrar no consultório de Marco
Polo estava zangada e ansiosa como sempre, mas ele a desarmou. Levantou-se da cadeira, foi até
a porta, recebeu-a com um sorriso, chamou-a pelo nome e fez um grande elogio.
- Dona Noemi, como a senhora é bonita!
Fazia dez anos que ela não ia à cabeleireira. Ela mesma cortava o próprio cabelo e raramente o
arrumava. Constrangida e admirada pelo gesto do psiquiatra, ela se sentou feliz, procurando
ajeitar seus cabelos.
- Obrigada, doutor, pela sua gentileza. Você é muito simpático - disse ela, devolvendo quase
inconscientemente o elogio.
- Gostaria muito de conhecer a sua história.
Noemi era uma pessoa fechada e incapaz de fazer elogios às pessoas, nem mesmo aos seus três
filhos. Na primeira consulta abriu alguns capítulos da sua vida. Na outra consulta foi mais aberta
ainda. Veio com Uma roupa mais apresentável e o cabelo todo arrumado. Tinha feito escova e
tintura.
A paciente tratava agressivamente as pessoas e estas devolviam-lhe as indelicadezas, fechando
o ciclo da ansiedade. Um pequeno gesto de Marco Polo começou a romper o círculo vicioso do
seu pessimismo. Aos poucos, estimulou-a a criticar sua postura diante da vida, a repensar seu
passado, a atuar em seu pessimismo, a extrair prazer das pequenas coisas e principalmente a
aprender a se colocar no lugar dos outros.
Noemi não precisava apenas de tratamento psiquiátrico, mas a reaprender a viver. E
conseguiu. Do alto dos seus 75 anos reeditou as janelas killers, desenvolveu solidariedade,
gentileza e altruísmo.
Marco Polo tornou-se mais ousado em quebrar os paradigmas do atendimento. Começou a
sair do consultório e receber os pacientes na própria sala de espera. Sempre com elogios e um
sorriso no rosto, características de sua personalidade. Lisonjeados, os pacientes sentiam-se
pessoas de raro valor e não doentes. Entravam para a consulta com a auto-estima elevada,
rompendo as resistências conscientes e inconscientes que causavam um bloqueio, impedindo-as
de entrar em contato com sua própria realidade. As consultas, embora tivessem momentos
tensos, envolvidos por lágrimas, relatos de perdas e crises ansiosas, eram de um modo geral
muito agradáveis.
Para Marco Polo, a sociedade moderna empobreceu, perdeu a amabilidade e a afabilidade. As
pessoas tinham cultura como em nenhuma outra geração, mas perderam o poder da gentileza e
do elogio. A medicina tinha sido contagiada por esta insensibilidade.
Ele era afável não apenas com os pacientes, mas com os funcionários mais simples do hospital.
Brincava com os porteiros e as auxiliares de enfermagem. Abraçava as faxineiras. Trouxe alegria
ao sombrio ambiente do Hospital Atlântico.
Até nas terapias de grupo procurava conduzir as reuniões não apenas com inteligência, mas
com humor. Certa vez, ocorreu um caso inusitado. Um dos pacientes do grupo era Ali Ramadan,
um palestino que vivera no Iraque por muitos anos. Ele foi torturado pela polícia de Sadan
Hussein, conseguiu escapar, mas perdeu grande parte da família. Seu pai nunca saiu de Abu
Ghraib, a cadeia-símbolo do regime.
Ali Ramadan desenvolvera sua psicose a partir de 25 anos de idade. Ele se atormentara durante
anos com a imagem de extraterrestres. Com a evolução da sua doença, o grau de sua perturbação
aumentou. Começou a conversar com ETs e falar obsessivamente sobre eles com as pessoas, em
particular com seus colegas do Hospital Atlântico. Numa das sessões do grupo, ele perguntou a
Marco Polo:
- Doutor, você sabia que existem seres de outros planetas?
- Se há seres em outros planetas eu não sei, mas dentro de cada um de nós há muitos monstros
que nos perturbam.
Pego de surpresa com a resposta, Ali Ramadan, pela primeira vez, sorriu quando falou sobre
extraterrestres. Percebendo que seu relaxamento era uma preciosa oportunidade para ajudá-lo a
ter consciência crítica, Marco Polo aproveitou o momento e emendou:
- Estimado Ali, não se preocupe com seres de outros planetas, bastam os monstros criados
diariamente em nossas mentes. Combata-os, critique-os sem medo. Seja livre!
- Estou cheio de monstrinhos na minha cabeça. Quer alguns, Ali - falou Sara com
espontaneidade.
- Não, já bastam os meus ETs! - falou pensativo.
Todos deram risadas. Marco Polo não perdeu tempo dizendo que o paciente alucinava. Não
era o momento, mas usou o potencial intelectual de Ali para que ele mesmo enxergasse a
incoerência das suas idéias e compreendesse a real fonte de suas perturbações.
O paciente tornou-se reflexivo, o que não era uma característica dele. Abriu as janelas da sua
inteligência e começou paulatinamente a progredir na terapia de grupo. Começou a criticar as
suas fantasias e a potencializar o efeito dos remédios. O jovem médico e Ali teceram uma longa
amizade.
Aos poucos, Marco Polo passou a ser motivo de conversas na direção do hospital. O ambiente
perdeu sua rotina com o jovem irreverente. Certa vez, ao contemplar uma árvore repleta de
flores amarelas no meio do imenso jardim do hospital, não resistiu. Abraçou seu tronco, deu-lhe
um beijo e disse algumas palavras. Foi um escândalo para alguns profissionais que o viram.
Observando-o, muitos pacientes começaram a imitá-lo logo que ele saiu. Formou-se uma
imensa fila diante dessa árvore. Cada paciente abraçava-a por alguns minutos e depois a beijava.
Saíam aliviados. Jaime, um professor de biologia que depois de muitas crises fora abandonado
pela família, gostou da experiência. Há anos não abraçava ninguém, nem mesmo os responsáveis
por sua saúde. Ao abraçar a árvore e sentir seu frescor, saiu pulando pelos jardins. Abraçava e
beijava todas as árvores que estavam à sua frente e gritava:
- Você é maravilhosa!
O caso chegou ao arrogante e autoritário Dr. Mário Gutenberg, diretor-geral do Hospital
Atlântico. Ele era um europeu inteligente, perspicaz, radical. Um médico respeitado, mas
pouquíssimo flexível. Chamado a dar explicações, Marco Polo foi questionado.
- O que você está ensinando aos pacientes?
- Não estou entendendo, Dr. Mário?
- Não está entendendo? Dezenas de pacientes estão beijando árvores neste hospital.
Marco Polo, com um nó na garganta, disse:
- Não pedi que fizessem esse gesto. Eu, de vez em quando, gosto de abraçar uma árvore e lhe
dar um beijo. É minha forma de agradecer à natureza pela dádiva da vida.
- Dádiva da vida? O senhor está tratando de pacientes ou precisa de tratamento?
- Todos nós precisamos.
- Onde você aprendeu a ser tão atrevido? Seus comportamentos podem precipitar crises nos
pacientes.
- Abraçar árvores pode desencadear crises?
- Não sei, mas eles estão eufóricos, diferentes.
- Se os psiquiatras, psicólogos e enfermeiros pudessem abraçar os pacientes e ser mais
afetivos com eles, talvez eles não precisassem abraçar árvores.
- Que petulância! O senhor ainda nem é um especialista em psiquiatria e quer virar de cabeça
para baixo nosso sistema! Esta instituição tem quase um século. Não a perturbe. Estarei
observando-o.
C a p í t u l o 15
Em outra ocasião, Marco Polo se envolveu em um novo incidente, agora mais grave, com o
corpo de médicos. Havia mais de quarenta psiquiatras atuando no hospital e dez médicos em
processo de especialização.
Marco Polo participava de uma reunião de discussão de casos que contava com a presença de
dez psiquiatras, incluindo alguns professores e cinco alunos. O Dr. Alexandre, um psiquiatra de
grande reputação, renomado professor universitário, conduzia a discussão. Ele concluiu a reunião
com o seguinte comentário:
- Quem não aprender com seriedade a fazer diagnósticos será um
péssimo psiquiatra.
Quando cessaram os aplausos, Marco Polo retrucou:
- O diagnóstico pode ser útil para mim, mas é ético dizê-lo categoricamente aos pacientes?
- Sim, os pacientes têm o direito de saber a verdade.
- Concordo que os pacientes devam saber a verdade, mas que verdade é essa que construímos
na psiquiatria? Não é a verdade de nossas teorias que estão sujeitas a inúmeras mudanças ao longo
dos anos?
- Você está querendo questionar a psiquiatria? - falou impacientemente o professor.
- Ela precisa ser questionada em algumas áreas. Gostaria que o senhor me respondesse:
devemos colocar os pacientes dentro de uma teoria ou a teoria dentro dos pacientes?
O professor refletiu e ficou sem resposta. Escrevera muitos artigos científicos, mas nunca havia
pensado nisso. Marco Polo tentou simplificar sua pergunta:
- Se as teorias estão acima dos seres humanos, se elas são irrefutáveis então devemos colocar
os pacientes dentro delas e rotulá-los de acordo com seus pressupostos. Entretanto, se os seres
humanos estão acima das teorias e suas personalidades são tão diferentes umas das outras
devemos ter cuidado com os diagnósticos. O diagnóstico que pode servir para dirigir minha
conduta pode servir para controlar a vida de um paciente e cometer atrocidades.
Os demais colegas sentiram-se desarmados. O Dr. Alexandre ficou abalado com o argumento
e a ousadia de Marco Polo. Nunca enfrentara uma situação como essa. Mas tentou sair pela
tangente.
- É folclore que os pacientes possam sofrer com os diagnósticos.
- Há milhões de pessoas no mundo vivendo sob a ditadura dos rótulos, e afirmando: sou
depressivo, sou esquizofrênico, sou bipolar.
- Você não acha que é muito jovem para criticar a psiquiatria? - disse o Dr. Alexandre,
constrangido.
- Professor, se eu perder minha capacidade de criticar, serei um servo das teorias e não um
servo da humanidade.
Marco Polo via diferenças entre comunicar o diagnóstico de uma doença física e de uma
doença psíquica. Um paciente que sofreu um infarto ou é portador de um câncer, quando fica
sabendo de sua doença, tem como colaborar com o tratamento para superar a doença e, assim,
melhorar e expandir sua qualidade de vida. Por isso, emendou:
- Raramente os pacientes portadores de câncer ou infarto são discriminados por terem tais
doenças. Ao contrário, freqüentemente recebem afeto, apoio e visitas dos amigos e parentes.
Enquanto que os portadores de psicose maníaco-depressiva ou esquizofrenia são rejeitados por
alguns familiares e excluídos socialmente. Raramente são visitados por seus amigos. O rótulo na
psiquiatria gera um isolamento cruel e injusto.
- Eu não rotulo os pacientes - disse um outro professor.
- Desculpe-me, mas às vezes os rotulamos sem querer rotulá-los. A maneira como
comunicamos a eles nossos diagnósticos pode gerar um desastre emocional. Eles perdem a
identidade como seres humanos e introjetam que são doentes.
Em seguida, Marco Polo respirou e acrescentou:
- E quanto ao poder dos rótulos? Einstein disse certa vez: "É mais fácil desintegrar um átomo
do que desfazer um preconceito."
Os professores presentes ficaram intrigados com a cultura e intrepidez do jovem médico.
Felipe, que também estava se especializando, falou:
- Einstein era um gênio. Se ele disso isso, temos de tomar cuidado, podemos causar mais
danos do que ajudar os pacientes.
- O próprio Einstein foi atingido pelo preconceito em duas ocasiões - completou Marco Polo.
- Quando? - perguntou outro psiquiatra.
- Na primeira foi vítima de preconceito, na segunda foi agente. Einstein mostrou que o espaço
e o tempo são intercambiáveis e pertencem à mesma estrutura. Todavia, a estrutura espaçotempo,
como um todo, não varia, não é relativa, por isso o próprio Einstein quis mudar o nome
da teoria da relatividade para teoria da invariância, mas não conseguiu. E por quê? - perguntou
olhando para o Dr. Alexandre.
- Porque a palavra "relatividade" já tinha se tornado popular - respondeu.
- Correto! A maior teoria da física foi perpetuada com o nome errado. O preconceito venceu.
Marco Polo silenciou. Não disse qual foi a segunda ocasião em que Einstein foi atingido pelo
preconceito. Tinha uma coisa muito séria para revelar, talvez nunca antes comentada sobre o
cultuado cientista. Esperou que a curiosidade produzisse um estresse saudável nos presentes,
capaz de abrir as possibilidades do pensamento. Ansioso, um dos psiquiatras não suportou.
Indagou:
- Qual a segunda situação?
- Um dos maiores gênios da humanidade também gerou um doente mental. Ele teve um filho
portador de esquizofrenia.
Os colegas se entreolharam curiosos, não sabiam disso. Marco Polo completou:
- Aqui há uma grande lição. Excetuando as causas genéticas, uma pergunta nos vem à mente:
se um dos maiores gênios da humanidade gerou um filho mentalmente doente, quem está livre
de gerá-los? Esta pergunta nos induz a uma resposta angustiante: ninguém está livre desse
drama. Porém, ela precisa ser rebatida com um questionamento' Einstein foi o expoente da
ciência lógica, do mundo da física e da matemática, mas para gerar filhos psiquicamente
saudáveis precisamos ser expoentes em outro mundo, o mundo ilógico da emoção, da sensibilidade,
da flexibilidade, do diálogo, do perdão.
Eles ficaram intrigados com o raciocínio de Marco Polo. Olharam para a própria história. Era
de esperar que psiquiatras ou psicólogos raramente gerassem filhos doentes. Mas sabiam que
vários profissionais de saúde mental, incluindo alguns dos psiquiatras na platéia, tinham filhos
estressados, deprimidos, fóbicos, tímidos e com outros conflitos.
Todo o conhecimento lógico sobre a mente humana que possuíam não fora suficiente para
lhes garantir o sucesso na formação da personalidade dos seus filhos. Entenderam que educar era
lavrar um solo ilógico. Todo ser humano, mesmo psiquiatras e psicólogos, tem dificuldades em
pisar nesse sinuoso terreno.
Outro psiquiatra indagou:
- Qual foi a reação de Einstein diante de um filho psicótico?
- Não poderia ter sido pior! Einstein desta vez não foi vítima, mas agente do preconceito.
- Como assim?
- Einstein visitou apenas uma vez seu filho no hospital psiquiátrico. Abandonou-o, deixou que
a solidão fosse sua companheira. E a rejeição e a solidão, caros amigos, não são mais rápidas do
que a luz estudada pela física, mas são mais penetrantes do que ela.
A platéia ficou emudecida. Depois de alguns instantes de profunda reflexão, o próprio Dr.
Alexandre perguntou humildemente:
- Ainda que dentro das limitações da interpretação, quais foram as causas que você detectou
que conduziram Einstein a abandonar seu filho, se nós recomendamos exaustivamente para as
famílias não desampararem seus pacientes neste hospital? Por que uma das mentes
mais brilhantes da humanidade foi opaca nessa situação?
Marco Polo respirou profundamente e comentou:
- Na minha singela opinião, quatro causas foram responsáveis pela atitude preconceituosa de
Einstein, incompatível com a sua inteligência. Primeira, o abalo emocional pelas condições
inumanas do hospital em que seu filho estava internado. Notem que até hoje nossos hospitais são
deprimentes. Segunda, a falta de esperança de que seu filho superasse sua psicose. Terceira, a
dramática angústia que as alucinações e delírios do seu filho lhe causavam. Quarta, o medo de ter
de enfrentar sua própria impotência diante de um mundo que não conhecia.
- Einstein tinha uma mente ávida por respostas, mas deve ter ficado perturbado com a falta de
respostas que explicassem a desagregação da inteligência de seu filho - concluiu o Dr. Alexandre.
Após uma breve pausa para respirar, Marco Polo completou:
- Essas quatro causas revelam que o homem que mais entendeu as forças do universo físico
não compreendeu as forças do mais complexo dos universos: o psíquico. Einstein foi um homem
afetivo e amante da paz, mas o preconceito o encarcerou. Seu eu, nessa área, foi prisioneiro
das janelas killers ou zonas de conflitos arquivadas em seu inconsciente. Sua fascinante história
revela que é mais fácil lidar com o átomo e com o imenso espaço do que com nossas mazelas e
misérias psíquicas.
Em seguida, finalizou:
- Senhores, cada cabeça é um universo a ser explorado. Bem-vindos à área mais complexa da
ciência!
O Dr. Alexandre inspirou-se diante dessa última frase. Ele sempre fora uma pessoa madura.
Como todo mundo, tinha suas defesas quando questionado ou contrariado. Mas, ao ser
convencido sobre seu equívoco, teve a coragem de apertar as mãos do seu aluno.
- Marco Polo tem razão. Reconheço meu erro. A psiquiatria e a psicologia, bem como a
medicina em geral, não podem ver a doença como um produto, tal como no mundo capitalista.
Com o passar do tempo nos tornamos técnicos em doenças e perdemos a sensibilidade pelos
doentes. Vamos nos vacinar contra a indústria do preconceito. Usem os diagnósticos, mas não
sejam usados por eles.
Desse modo, a reunião se encerrou. A pequena platéia deu um salto na compreensão do
fantástico mundo da psique humana.
C a p í t u l o 16
No Hospital Atlântico trabalhavam mais de duzentos profissionais, entre médicos, psicólogos,
enfermeiros, assistentes sociais, atendentes, seguranças e outros. A maioria dos profissionais não
conhecia intimamente Marco Polo e desconfiava de sua atuação. Alguns psiquiatras, entre os
quais o diretor do hospital, o viam mais como amotinador do que como um competente
profissional. Menos de um décimo dos pacientes o conhecia, mas os que o conheciam o amavam.
De longe o cumprimentavam.
Felipe estreitara os laços com Marco Polo. Tornaram-se grandes amigos. Todavia, embora Felipe
também tivesse críticas contra o sistema de tratamento do hospital, era contido, discreto, avesso a
escândalo e preocupado com seu futuro e com sua imagem social.
Numa tarde de segunda-feira, Marco Polo e Felipe passeavam pelo pátio onde os pacientes
tomavam sol e tentavam recrear-se. Olhando para os rostos cabisbaixos, entristecidos,
desesperançados, como prisioneiros na pior de todas as celas - a cela psíquica -, Marco Polo subiu
no pequeno coreto que estava no centro do jardim.
Preocupado, Felipe argüiu-lhe:
- O que você vai fazer?
- Garimpar ouro.
- Garimpar o quê?
Ao subir no coreto, Marco Polo recordou dos discursos que ele e Falcão faziam nas praças
para conduzir as pessoas a realizarem uma viagem interior. Em seguida, recordou do que
prometera para si mesmo em seu pequeno carro após ter deixado Falcão na casa de Lucas: "Farei
da minha vida uma grande aventura, procurarei um tesouro escondido nos escombros das
doenças psíquicas." Ao mesmo tempo que trazia essas imagens à mente, olhava para os pacientes
do Hospital Atlântico e ficava frustrado. Ele atendia, no máximo, alguns pacientes por dia,
portanto, sabia que jamais teria a oportunidade de conversar e conhecer a maioria deles. Movido
por um forte ímpeto, exclamou solenemente:
- Queridos amigos, aproximem-se! Nós podemos mostrar o caminho, mas só vocês podem
abrir as portas da sua mente e caminhar para a liberdade. Nós podemos dar a caneta e o papel,
mas só vocês podem escrever a sua história. Vocês não são doentes! Vocês estão doentes!
Aqui não é seu lar! Seu lar é o mundo livre! Sonhem em ser felizes!
Os pacientes nunca tinham visto uma apresentação como essa. Vários não entenderam o que
Marco Polo lhes disse, mas aplaudiram com entusiasmo. Os que compreenderam sua mensagem,
lacrimejaram os olhos. Entre eles, o Dr. Vidigal, um médico clínico-geral vítima de um crônico
transtorno bipolar. O Dr. Romero, um psiquiatra, vítima há mais de 15 anos de uma psicose
esquizofrênica, tremulou seus lábios. E, aproximando-se, beijou as mãos do jovem psiquiatra.
Centenas de pessoas se aglomeraram em torno do coreto. Inúmeros seguranças e enfermeiros
começaram supervisionar o local. No primeiro momento, achavam que se tratava de mais um
psicótico delirando, mas depois as enfermeiras perceberam que era o futuro psiquiatra
novamente colocando em polvorosa o ambiente.
O Sr. Bonny, um velhinho de oitenta anos, que havia sido internado vinte vezes no Hospital
Atlântico e conhecia bem alguns psiquiatras, gritou, sorridente:
- Eu voto nesse homem! Fora o Dr. Mário!
Jaime, que se tornara um beijoqueiro de árvores, ficou animadíssimo com o discurso. Acatou a
sugestão do Sr. Bonny e começou a clamar:
- Marco Polo! Marco Polo!
Todos os pacientes fizeram coro.
A platéia borbulhava de entusiasmo. Era a primeira vez em cem anos da instituição em que os
pacientes experimentavam uma euforia coletiva. Todos unanimemente o aplaudiam e gritavam.
- Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou!
Essa era a eleição a que Marco Polo jamais queria concorrer. A enfermeira-chefe, Dora, rangia
os dentes de raiva ao presenciar o transtorno que ele causara. Ele a viu confabulando com outros
psiquiatras e com seguranças para tentar contê-lo, mas não se intimidou. Olhou prolongadamente
para a platéia ferida, observou os trejeitos dos pacientes e exclamou novamente:
- Eu não mereço esses aplausos. Vocês é que os merecem. Quem são mais importantes: nós
psiquiatras ou vocês pacientes?
Gritaram sem titubear:
- Os psiquiatras!
- Não! Os psiquiatras existem porque vocês existem. Vocês são mais importantes do que nós.
E acrescentou:
- Olhem para as enfermeiras. Vocês são inferiores a elas?
Alguns pacientes mais próximos beijavam as mãos delas como divas, deusas da sobrevivência.
A atenção que elas lhes dispensavam era fundamental para que tivessem o mínimo de conforto,
mas muitas não tinham qualquer paciência com eles.
Um paciente simples foi beijar as mãos de Dora, mas assumindo a postura de chefe, ela não se
deixou beijar. Quinze anos antes, Dora era uma profissional afetuosa, solidária, mas os anos de
trabalho no Hospital Atlântico tornaram sua afetividade árida como o Saara. O ambiente adoecia.
Dr. Vidigal, com a voz trêmula pelos efeitos dos remédios e esquecendo-se de que um dia já
fora um respeitado médico, exclamou para Marco Polo:
- Doutor... Nós não... não... sooomos nada. Nada mesmo.
Esquecendo-se de que já fora um psiquiatra, o Dr. Romero disse, com lágrimas nos olhos:
- Somos lixo, doutor! Não temos nenhum valor para a sociedade.
Marco Polo os conhecia e ficou profundamente sensibilizado. Criticara intensamente o
preconceito, mas agora percebia que seus efeitos eram mais graves do que imaginava - era um
câncer emocional. "Se os dois médicos, por serem pacientes do hospital, se acham um lixo, imagine
como está a auto-estima dos demais pacientes que não têm a cultura deles", pensou.
Marco Polo, com olhos úmidos e voz embargada, chamou alguns pacientes que conhecia pelo
nome e começou a encorajá-los.
- Dr. Romero, o senhor é uma pessoa de grande valor; o mundo pode desprezá-lo, mas jamais
se diminua. Sara, olhe para o tesouro que se esconde dentro de você! Ali Ramadan, meu amigo,
você é inteligente e capaz de vencer seus fantasmas interiores. Sua esposa o aguarda!
Jaime, você é um poeta da natureza. Lute pelos seus sonhos, seus filhos precisam de você.
Em seguida, respirou profundamente e bradou em voz bem alta para toda a platéia:
- Vocês são mais fortes do que muitos generais. Vocês têm enfrentado suas crises, suportado a
dor da discriminação, a rejeição dos amigos, o afastamento dos familiares, mas conseguiram
sobreviver. Grandes homens na história não estariam de pé se sofressem tais perdas, mas
vocês ainda estão de pé. Não desistiram da vida. Vocês são heróis! Pelo menos, meus heróis!
Essas palavras comoveram Felipe. Num impulso, ele subiu no coreto e bradou:
- Vocês também são meus heróis!
Marco Polo, animado com a atitude do amigo, percorreu a face dos pacientes com os olhos.
Apontou para eles com as mãos e proclamou várias vezes junto com Felipe:
- Vocês são heróis! Vocês são heróis!
Os pacientes, sem nenhum valor social, estavam atônitos com esse clamor. Jamais se sentiram
tão importantes. Enquanto os dois amigos proclamavam essas palavras, algo poético e belíssimo
aconteceu. A multidão de pacientes começou a chorar coletivamente. Foi a primeira vez que
houve um choro coletivo de exultação num ambiente deprimente.
Os anônimos ganharam visibilidade. Os fracos se sentiram grandes, os abatidos ganharam
força, os rejeitados se sentiram amados. Os dois irreverentes médicos escavaram as ruínas
psíquicas dos pacientes e desvendaram relíquias preciosas nelas escondidas. Exerceram a bela
arte da antropologia psicológica.
A cena que evocava uma indescritível emoção, mexeu no inconsciente coletivo dos internos.
Eles começaram a se abraçar como soldados que, numa guerra, amparam os amigos mutilados.
Sentiram-se compreendidos e amados. Sentiram que eram seres humanos.
De repente, alguns pacientes começaram a recolher suas coisas para ir embora. As enfermeiras,
seguranças e outros psiquiatras ficaram temerosos. Perguntaram rispidamente:
- Aonde vocês vão? Uns diziam:
- Voltar para casa. Precisamos beijar nossos filhos. Outros comentavam:
- Precisamos abraçar nossas esposas.
E ainda outros afirmavam:
- Aqui não é nosso lugar. Queremos ser livres.
Dora tentou impedi-los com a ajuda dos seguranças.
- Vocês estão ficando loucos!
O Dr. Vidigal respondeu:
- Agora, um pouco menos. Sou um herói em ficar aqui.
À medida que tentavam sair, eram barrados pelos seguranças do hospital. Alguns pacientes
foram empurrados e caíram. Devido aos efeitos dos potentes tranqüilizantes, eles estavam fracos.
Sensível, Sara entrou em pânico e começou a chorar inconsolavelmente. O ambiente ficou tenso.
Marco Polo entrou no meio da confusão e falou incisivamente para os seguranças e enfermeiras.
- Não toquem nesses pacientes! Não há maior loucura do que exercer a agressividade para
convencer as pessoas. Falem com respeito, que eles os atenderão.
Em seguida, Marco Polo, temendo pela integridade dos pacientes, suplicou-lhes:
- Queridos amigos, não vão embora ainda. Com esse ardente desejo pela liberdade, vocês
acelerarão o tratamento e logo receberão alta. Serão livres.
Os pacientes o ouviram e recuaram. Na seqüência, outros seguranças, a pedido do Dr. Mário,
seguraram Marco Polo pelo braço e o levaram até a sala. Com ele, estavam reunidos o diretorclínico,
a enfermeira-chefe, Dora, o chefe de segurança e alguns psiquiatras mais idosos da
instituição. O Dr. Alexandre não estava presente. Os dias de Marco Polo no Hospital Atlântico
pareciam estar contados.
O Dr. Mário bufava de raiva. Pelo relato distorcido de Dora e de alguns psiquiatras, Marco
Polo colocara em risco tanto a vida dos pacientes como a própria instituição. Nunca alguém
ameaçara tanto o renomado hospital. O Dr. Mário temia um escândalo na imprensa, o que
poderia representar o fim de sua carreira.
Antes de começar a julgar Marco Polo, o Dr. Mário enviou uma equipe de enfermeiros com
injeções e camisas-de-força para debelar a euforia e os possíveis excessos de alguns pacientes. O
Dr. Romero, Ali Ramadan e alguns outros pacientes foram contidos quimicamente. Jaime
resistiu. Gritando, recusou uma dose adicional de tranqüilizante, mas não adiantou, recebeu à
força. Silenciaram, assim, a suposta rebelião.
Felipe estava presente na reunião. Marco Polo se adiantou.
- Felipe não tem culpa de nada. Os acontecimentos são de minha inteira responsabilidade.
- O senhor assume toda a responsabilidade por seus atos inconseqüentes? - perguntou com ira
o diretor.
- Assumo a responsabilidade, mas não assumo que foram inconseqüentes - rebateu Marco
Polo, que podia perder a guerra, mas não o ânimo para o combate.
- Eu investiguei sua vida, doutor. Fiquei sabendo de sua fama nos tempos da faculdade de
medicina. Aluno rebelde, irreverente, tumultuador da classe, questionador do mundo. Sua ficha é
uma bomba!
Os presentes ficaram apreensivos com essas palavras. Consideraram Marco Polo uma ameaça.
O diretor continuou:
- Você escolheu o lugar errado para botar suas asas de fora seu... seu rebelde.
- Eu posso ter errado na ação, mas acertei na intenção. Eu queria...
Antes de completar a frase, o diretor o interrompeu.
- Pare de ser cínico. Você quebrou a rotina do serviço, a tranqüilidade dos pacientes e colocou
o hospital em perigo.
Marco Polo sabia que seria expulso da instituição. Neste momento lembrou-se de uma
marcante frase de Falcão: "Vocês podem aprisionar meu corpo, mas não minhas idéias." Diante
disso, ficou convicto de que poderiam excluí-lo, mas não seria infiel à sua consciência. Fitou os
olhos do Dr. Mário e depois olhou para os presentes e falou com segurança:
- Eu quis mostrar aos pacientes que eles são seres humanos, que devem lutar pela sua
liberdade. Eu lhes disse que "estão doentes" e não que "são doentes". Vocês podem me expulsar,
mas jamais me calarei sobre o que penso.
A intrepidez de Marco Polo abalou o grupo. Acuado e portando um sentimento de raiva e
fascínio diante da sua intrepidez, o Dr. Mário resolveu dar o último cálice de misericórdia para o
jovem aventureiro:
- Você está aqui para aprender e não para ensinar. Coloque-se no seu lugar. Sua atitude é digna
de expulsão. Vamos dar-lhe uma única oportunidade. Não se esqueça, não terá uma segunda
chance - e assim encerrou drasticamente a reunião.
C a p í t u l o 17
Desde que Marco Polo começou a tumultuar o ambiente do Atlântico, o hospital ficou mais
alegre. As pessoas se comunicavam mais, alguns enfermeiros tornaram-se mais afetivos e alguns
psiquiatras mais bem-humorados.
Após a reunião para sua expulsão, Marco Polo ficou mais contido, mas não menos arrojado.
Continuava a fazer pequenas transformações, desta vez com o aval da diretoria. Pintou os quartos
dos pacientes com tintas coloridas e sujou as mãos com elas. Fez algumas competições entre os
pacientes e organizou um teatro com eles. Ensaiava montar um grupo de apoio, onde os pacientes
menos graves ajudariam os mais graves. Queria que eles se sentissem úteis.
O Dr. Mário sentia-se impelido a aprovar algumas sugestões de Marco Polo, desde que o
mantivesse sob seu controle. Tinha medo de sua liberdade criativa. Para evitar maiores
transtornos, garantiu que estivesse sob constante vigilância. Os seguranças não tiravam os olhos
dele. Alguns tinham a coragem de bater na porta do seu consultório para saber se tudo
transcorria normalmente.
Marco Polo mostrava sinais de abatimento. Continuava admirando o universo dos pacientes,
mas o entristecia pelo clima de policiamento. Nesse ambiente, escreveu uma comovente carta ao
seu velho amigo. Nela, sua alma transpirava e exalava sua visão sobre a vida e o sofrimento
humano.
Caro amigo Falcão,
Certa vez você me disse que tanto você como o Poeta viam a assinatura de Deus nas flores, nas
nuvens e também nas crises dos que possuíam transtornos psíquicos. Na época, pensei
sinceramente que isso era um delírio, que seria impossível encontrar beleza no caos. Pois bem,
você tem razão. Tenho encontrado indescritível riqueza dentro daqueles que sofrem. Eles não
são miseráveis nem passíveis de penúria. Precisam sim ser compreendidos, apoiados e
encorajados. Tenho encontrado um patrimônio psíquico de inestimável valor em meio às
lágrimas e desespero.
Nos portadores de psicose tenho descoberto uma criatividade espantosa. Embora os delírios e
alucinações os perturbem, eles revelam uma criatividade excepcional, uma engenhosidade
intelectual sem precedentes. Nem os melhores roteiristas e diretores de Hollywood conseguiriam
ter tanta imaginação. Pena que a psiquiatria clássica despreze o imenso potencial intelectual
deles.
A inteligência dos portadores de psicose maníaco-depressiva me assombra. São verdadeiros
gênios. Na fase maníaca, a excitação, a rapidez de raciocínio e o volume de pensamentos que
produzem os transportam para as nuvens, num estado de graça, longe da realidade. Nessa fase,
têm uma auto-estima exacerbada. Acham-se imbatíveis, revestidos de um poder sobrenatural.
Na fase depressiva, ao contrário, eles aterrissam sua euforia, seus pensamentos tornam-se
pessimistas, levando-os a se atolar em sentimentos de culpa e viver os patamares mais baixos da
auto-estima. Se aprendessem a pilotar seus pensamentos e a gerenciar o motor da sua
inteligência para não abandonarem os parâmetros da realidade, brilhariam mais do que
qualquer "normal". Infelizmente eles são incompreendidos, tanto por eles mesmos como pela
sociedade em que estão inseridos.
Entre as pessoas deprimidas tenho encontrado rara sensibilidade. São tão sensíveis que não
possuem proteção emocional. Quando alguém as ofende, estraga-lhes o dia, a semana, o mês e,
às vezes, a vida. São tão encantadoras que, sem ter consciência, vivem o princípio da coresponsabilidade
inevitável de maneira exagerada. Por isso, perturbam-se com o futuro e
sofrem intensamente por problemas que ainda não aconteceram. Preocupam-se tanto com os
outros que vivem a dor deles! São ótimas para a sociedade, mas péssimas para si mesmas. Falcão,
eu não tenho dúvida de que, se os líderes políticos tivessem uma pequena dose da sensibilidade
que as pessoas deprimidas possuem, as sociedades seriam mais solidárias e menos injustas. Sinto
que minha emoção éfria e seca quando comparada à deles.
Entre os que têm síndrome do pânico, tenho encontrado um desejo invejável de viver. Quando
um ataque de pânico os atinge, o cérebro deles entra em estado de alerta tentando protegê-los de
uma grave situação de risco, um risco virtual. Ficam taquicárdicos, ofegantes e suam muito,
procurando fugir da síncope ou da morte, uma morte imaginária que só existe no teatro das
suas mentes. Se aprendessem a resgatar a liderança do eu em suas crises seriam livres do
cárcere do medo. Quem dera os usuários de drogas, os que vivem perigosamente, os terroristas,
os que promovem guerras tivessem a consciência da finitude da vida e da grandeza da
existência que os portadores da síndrome do pânico possuem. Apesar do sofrimento imposto
pelo pânico, são apaixonados pela vida. Queria amar a vida como eles amam, viver cada
minuto como se fosse um momento eterno.
Falcão, você tem razão em me dizer que a sociedade é estúpida. Realmente ela valoriza a
estética e não o conteúdo. Estou decepcionado até com as pessoas aparentemente cultas. Não
percebem que cada ser humano e em especial os que sofrem transtornos psíquicos são jóias
únicas no anfiteatro da existência.
Meu desafio como psiquiatra não é apenas medicá-los ou fazer sessões de psicoterapia, mas
mostrar a eles que a flor mais exuberante brota no inverno emocional mais rigoroso. Os que
atravessaram seus desertos psíquicos e os superaram tornaram-se mais belos, lúcidos e ricos
do que eram.
Não é isso o que aconteceu com você, meu dileto amigo? Através do drama da sua psicose
você expandiu a sua nobre inteligência e se tornou um mestre, meu mestre. Agora, meus
pacientes me ensinam. Em alguns momentos, aprendo mais com eles do que com meus
professores. Espero que nunca morra minha capacidade de aprender.
Procurei especializar-me em psiquiatria para conhecer a fascinante personalidade humana e
tratar das suas doenças. Entretanto, assim como você questionou o que era a loucura, tenho me
questionado muito sobre o que é a saúde psíquica: Quem é saudável? São saudáveis meus
colegas psiquiatras incapazes de receber seus pacientes com um abraço e um sorriso? São
saudáveis os pais que ouvem os personagens da TV, mas não conhecem os temores e as
frustrações dos seus filhos, nem têm paciência com seus erros? São saudáveis os professores que
se escondem atrás de um giz ou de um computador e não conseguem falar de sua própria história
com seus alunos? São saudáveis os jovens cuja emoção é incapaz de extrair muito do pouco, cujos
prazeres são fugazes? E os que batalham para ganhar dinheiro, mas não sabem lutar pelo que
amam, são eles ricos ou miseráveis?
Tenho também questionado minha própria qualidade de vida. Pensei que eu era saudável,
pois falo o que penso, luto pelo que amo e procuro proteger minha emoção, mas descobri que
conheço apenas a sala de visita do meu próprio ser. Falta-me tolerância, afetividade, sabedoria,
tranqüilidade. O dia que deixar de admitir o que me falta estarei mais doente do que meus
pacientes. Obrigado por me ensinar que sou apenas um caminhante. Há muita estrada a
percorrer...
Do seu amigo e admirador, Marco Polo.
Ao ler a carta, Falcão ficou emocionado. Recordou os momentos difíceis da sua história e os
belos tempos com Marco Polo. Alegrou-se com a psiquiatria humanista que ele e alguns dos seus
colegas exerciam. Acreditava que Marco Polo poderia fazer muito pela humanidade, mas pouco
para o próprio bolso.
Passados alguns dias, Marco Polo vivenciou uma experiência em que o Hospital Atlântico quase
desabou sobre ele: um paciente com grave depressão associada a uma psicose, caracterizada por
confusão mental, perda de identidade, dificuldade de se localizar tempo-espacialmente foi a
origem deste tumulto. Chamava-se Isaac.
Isaac era membro de uma família judia riquíssima e politicamente poderosa na região. Devido
à grave depressão, seus sentimentos estavam embotados. Ele recusava-se a ter contato social, a
sair do quarto, a dialogar, tomar banho e se alimentar. Desenvolvera, assim, uma importante
anorexia nervosa.
Freqüentemente ficava prostrado em sua cama. Tinha um comportamento estranho e
incomum, uma projeção psicótica, afirmava algo que não era. Repetia continuamente que era um
sapo. Abria e fechava sua boca com freqüência, imitando os comportamentos do anfíbio.
Quando alguém se aproximava e perguntava-lhe algo, Isaac dizia apenas "sou um sapo".
Eliminava qualquer possibilidade de interação interpessoal. Queria ficar em seu claustro e morrer
nele. Este bizarro comportamento se repetia há várias semanas. Pouco a pouco, o paciente
emagrecia. Simplesmente recusava-se a viver.
O tratamento não surtia efeito. Vários medicamentos em diversas dosagens foram tentados.
Psicólogos tentaram também ajudá-lo, mas ele não saía do seu casulo. Alguns psiquiatras
resolveram, então, fazer algumas sessões da antiga e questionável terapia do eletrochoque.
Também não houve resultado. Isaac corria risco sério de morrer.
Levaram o caso para o Dr. Mário. Ele ficou preocupado com o drama do paciente e com a
imagem da instituição diante da ausência de qualquer melhora.
O Dr. Mário já tratara outras vezes de Isaac. Apesar de conhecê-lo, ignorava a atual gravidade
da sua crise.
- Não é possível que durante dois meses, com todo o arsenal de medicamentos que temos,
vocês não conseguiram aliviar a depressão do paciente, retirá-lo do surto psicótico e trazê-lo à
lucidez! Já consegui fazer esse paciente sair de várias crises. Precisamos de profissionais mais
eficientes na casa - disse com arrogância à sua equipe.
Alguns profissionais de saúde mental são capazes de ajudar os outros, mas incapazes de ajudar
a si mesmos. Era o caso do Dr. Mário. Reconhecido como um excelente profissional, tinha
doutorado em psiquiatria, era um eloqüente professor universitário, publicara inúmeros trabalhos
científicos, mas não sabia lidar com seus próprios conflitos emocionais.
Em situações de estresse, não conseguia pensar antes de reagir, nem se colocar no lugar dos
outros. O mundo tinha de girar em torno das suas verdades. Como muitos líderes bemintencionados,
mas autoritários sua postura bloqueava a inteligência dos seus subordinados.
Após questionar a eficiência dos psiquiatras, ele pediu que relatassem os procedimentos e os
medicamentos antipsicóticos e antidepressivos utilizados, bem como suas respectivas dosagens.
Após o relato, caiu em si e percebeu que Isaac apresentava uma crise gravíssima e diferente de
todas as outras.
Todavia, para não perder a postura de chefe, convidou alguns psiquiatras e alguns jovens que
estavam se especializando, entre eles Marco Polo e Felipe, para fazer uma avaliação do paciente
em seu leito. Queria dar-lhes uma aula.
No quarto, Isaac, como sempre, mostrou indiferença aos presentes. O diretor se apresentou e
começou a fazer-lhe algumas perguntas.
- Qual é o seu nome?
Isaac permanecia em silêncio. O Dr. Mário insistiu:
- Por favor, qual é o seu nome?
- Sou um sapo.
- Qual a sua idade e onde o senhor mora?
- Sou um sapo.
Fez outras perguntas sobre seus parentes, onde ele já trabalhara, mas a resposta era a mesma.
A conversa não evoluiu. Ficou constrangido diante dos alunos. Deu algumas rápidas explicações
sobre esse tipo de psicose, falou da impotência da psiquiatria em alguns casos e encerrou sua
visita. Mas, ainda inconformado em não poder dar uma brilhante aula, retrucou quando estava
para sair do quarto:
- Desde quando você é um sapo?
O paciente olhou para ele e disse:
- Desde quando eu era um girino!
Os alunos, embora respeitassem o paciente e o diretor, não se agüentaram. Colocaram as mãos
no rosto para sufocar o riso. O diretor meneou a cabeça descontente e insistiu:
- Sr. Isaac, você é um ser humano. Tem cabeça, braços, pernas de um homem. Você não pode
ser um sapo.
O paciente olhou levemente para ele e de novo expressou:
- Sapo. Sou um sapo.
Fechou-se em seu mundo, não havia meios de fazê-lo mudar de idéia. Todos saíram do quarto,
à exceção de Marco Polo. Observador, percebeu que enquanto as pessoas insistiam em dizer o
que Isaac não era, ele mantinha sua convicção obsessiva. Entretanto, quando o Dr. Mário entrou
sem perceber no delírio dele, perguntando desde quando era um sapo, ele formulou uma frase
diferente: "Desde quando eu era um girino!"
Resolveu, então, não questionar o delírio, mas entrar nele. O caso era diferente do de Ali
Ramadan, inspirava mais cuidado e impunha mais riscos. Isaac não tinha nenhum diálogo lógico.
Marco Polo não se esquecera de que a imaginação é mais importante do que o conhecimento.
Usou sua imaginação. Disse:
- Olhe que lagoa linda que está à nossa frente. Como as estrelas são belas. Veja quantos sapos
estão coaxando.
Paulatinamente Marco Polo deixou de ser um intruso no mundo de Isaac. Assim, ele começou
a se abrir, a falar distintamente outras frases.
- Cadê a lagoa? - perguntou.
- Olhe! Está à sua frente. Você a está vendo?
- Sim!
- Onde você mora nessa lagoa?
Issac começou a pensar no espaço.
- Naquele lado.
- De que tamanho você é?
- Não está me enxergando? - falou com contundência.
Após esse breve diálogo, novamente Isaac se fechou. Dizia apenas que era um sapo. Marco
Polo ficou eufórico com suas palavras. Em seguida lembrou-se de que no corredor próximo à
sala do Dr. Mário havia um sapo de porcelana. Foi até o local e pegou-o.
Um segurança avisou rapidamente o diretor. Curioso e apreensivo este mandou interceptar o
aluno e foi até o local para verificar ele mesmo o comportamento do intrigante Marco Polo.
Questionado sobre suas atitudes, o jovem respondeu-lhe que queria entrar no mundo do
paciente, no universo de seus delírios e ganhar sua confiança. Após ganhar a confiança dele,
desejaria estimular sua capacidade crítica.
- Não perca tempo. Profissionais bem mais experientes do que você tentaram sem sucesso. E,
além disso, se esse caso não foi resolvido com medicamentos antipsicóticos, não é com palavras
que será solucionado.
- Mas por que então o senhor nos levou ao quarto de Isaac e conversou com ele?
- Bom, eu fui dar uma aula para vocês - justificou-se, constrangido.
- Professor, sei da sua competência, mas acredito na força da psicologia e não apenas na ação
de medicamentos. Vamos dar uma medicação convencional e, apesar da minha falta de
experiência, permita-me tentar ajudá-lo.
Relutante, o Dr. Mário resolveu conceder-lhe espaço.
- Vá em frente, mas, logo após a consulta, procure-me - disse, incrédulo, tentando manter
tudo sob controle.
Em seguida, Marco Polo entrou no quarto, tirou o sapo de porcelana do jaleco branco e disse:
- Isaac, isto é um sapo. Você é igual a este sapo?
O paciente levou um choque. A imagem da porcelana não era a imagem alucinante que criara
no palco do seu imaginário. Apesar de ainda estar confuso, o impacto que levou abriu um pouco
mais as portas da sua racionalidade.
- Pegue o sapo, Isaac.
Isaac o pegou, manipulou-o, pensou e, em seguida, disse:
- Não sou um sapo.
E desse modo a conversa começou a evoluir. Posteriormente Isaac se fixou em outra idéia que
intrigou Marco Polo. Como já fazia mais de meia hora que estava conversando com ele, resolveu
poupá-lo. Percebeu seu desgaste. Resolveu retornar no outro dia.
Marco Polo foi à sala do Dr. Mário. Vários psiquiatras estavam reunidos. Numa das raras
vezes em que estava bem-humorado, o diretor indagou:
- Fale, pesquisador! O que você conseguiu com o homem-sapo?
- Consegui estabelecer um pequeno diálogo com ele.
Os psiquiatras estavam céticos. Acharam que era um blefe.
- Você conseguiu que ele falasse outros pensamentos? - perguntou um deles.
- Como? - perguntou outro.
- Entrei em seu delírio e a partir daí comecei a levá-lo a duvidar das suas fantasias. Agora ele
diz que é outra coisa.
Desconfiado, o Dr. Mário rapidamente perguntou:
- O que ele diz que é agora?
Marco Polo fez uma pausa e falou, apreensivo:
- Agora ele diz que é algo melhor.
- Fale, vamos - perguntaram curiosos.
- Isaac diz que é o Dr. Mário.
Os psiquiatras, embora raramente exagerassem em seus comportamentos na frente do diretor,
não se seguraram. Deram gargalhadas. Acharam a piada engraçadíssima. Até o Dr. Alexandre,
que estava presente, não se agüentou. Além disso, alguém soltou baixinho "um pouco melhor".
O Dr. Mário, humilhado, levantou-se raivoso, convocou os psiquiatras para acompanhá-lo até
o quarto do paciente, mas antes disse:
- Prepare suas malas para sair desta instituição. Você cometeu um grave erro que poderá
manchar sua carreira para sempre: falta de ética com seu paciente e com seu diretor.
Rapidamente dirigiram-se ao local e mais rápido ainda o Dr. Mário perguntou a Isaac:
- Quem você é?
Ele levantou a cabeça, olhou fixamente para o diretor e disse:
- Eu sou um sapo.
Os psiquiatras gelaram. Gostavam de Marco Polo. Era a primeira vez que um estudante de
psiquiatria seria expulso do Hospital Atlântico.
Marco Polo ficou tenso. Teve vontade de abrir a boca e extrair outras palavras de Isaac, mas, se
o bombardeasse com perguntas tentando retirar palavras que ele não quisesse responder, aí sim
estaria selando sua falta de ética.
O Dr. Alexandre, desde a discussão sobre alguns traços da personalidade de Einstein e o
preconceito, tornara-se amigo de Marco Polo. Tentando sair em sua defesa, insistiu ansiosamente:
- Qual é o seu nome? Onde você mora?
O Dr. Mário estava com um pé no corredor, mas ouviu Isaac dizer:
- Sou o Dr. Mário.
Dessa vez foi o próprio Dr. Mário que sentiu uma onda fria percorrendo sua espinha dorsal,
circulando pela cabeça e alojando-se na garganta. Além de ter ficado profundamente
envergonhado diante dos colegas, estava sendo intensamente injusto com Marco Polo.
Ele sabia que Marco Polo, embora fosse irreverente, era arrojado, sensível e inteligente. Não se
tratava de "mais um" profissional, mas de um construtor de conhecimento, que amava o que
fazia. Todavia, não suportava sua audácia. Desde que ele entrara na instituição, há um ano, o Dr.
Mário perturbara-se com seu comportamento e vinha questionando silenciosamente sua própria
prática e rigidez.
Algumas vezes teve noites de insônia tentando espantar Marco Polo dos seus pesadelos. Ter de
expulsá-lo do hospital seria doloroso para ele, por isso, apesar de envergonhado, ficou feliz por
seu aluno e pela pequena evolução do paciente.
Marco Polo humildemente disse ao Dr. Mário:
- Por conhecê-lo de longa data e o admirar, Isaac identificou-se com o senhor.
- Não tente justificar meu erro. Desculpe-me. E assuma o caso.
Com essas palavras, saiu rapidamente do ambiente. Foi a primeira vez que o Dr. Mário
reconheceu um erro publicamente e pediu desculpas. O homem imbatível começou a enxergar o
que sempre fora, apenas um ser humano, e, como tal, sujeito a falhas e erros. A partir desse
momento, começou a ser mais flexível. Sair do seu trono não o deixou menos líder nem menos
admirável, ao contrário.
Assumir o tratamento de Isaac, portador de uma das doenças mais difíceis do Atlântico, era
uma tarefa dantesca, mas, como Marco Polo detestava o mercado da rotina, aceitou com prazer o
desafio. Qualquer reação de melhora do paciente era recebida com grande elogio pelo jovem
psiquiatra.
- Quem sou? Onde estou? - Isaac dizia agitado e andando.
- Parabéns, Isaac, você está melhorando! Não tenha medo de pensar! Não tenha medo da vida!
O paciente não compreendia direito o cumprimento, mas compreendia o acolhimento e o
afeto. A ação dos medicamentos começou a ser potencializada quando ele passou a colaborar
com o tratamento.
Ao longo das semanas, Isaac foi se alimentando melhor. Aos poucos falava frases mais
complexas e retornava à sua consciência. Foi lentamente se deparando com sua dura história, que
o fizera romper com a realidade e perder sua identidade. Certo dia, ao ter plena consciência de si
mesmo, caiu em prantos.
- Eu não tive infância, doutor... - fez uma pausa.
- Fale sem medo, Isaac, estou aqui para ouvi-lo.
- Minha mãe sempre teve problemas psíquicos. Meu pai, embora rico, bebia diariamente
grandes doses de uísque. Era um judeu praticante, mas abandonou a religião.
Fez novamente uma pausa.
- Casei-me apaixonado. Elisa era a mulher mais bela e mais amável. Em seguida, tivemos um
filho maravilhoso. Minha família era meu oásis. Quinze anos depois, meu casamento virou um
solo estéril. Peguei minha esposa na cama com o meu melhor amigo, o gerente da minha
empresa. Eu era um homem rico, mas me sentia um miserável.
Isaac soluçou.
- Minha esposa suplicou-me perdão. Hesitante, eu não a abandonei,
mas também nunca a perdoei.
Marco Polo solidarizava-se com ele através do seu silêncio. Em seguida perguntou:
- E o seu filho?
- Posteriormente, meu querido filho, Gideão, tornou-se dependente de heroína. Ele tinha
febre, vômitos, dores pelo corpo quando parava um dia de usar a droga. Era horrível ver meu
filho de 15 anos nesse desespero. Procurava a heroína como um ofegante procura o ar. Eu tinha
medo que ele morresse. Aflito, tentei ajudá-lo de todas as formas, mas ele era agressivo, fechado,
alienado, parecia impenetrável. Acusava-me de nunca ter sido seu amigo. Agora ele está com 19
anos, mora sozinho, sua dependência se agravou e é HIV positivo. Há um ano recusa-se a falar
comigo. Não tenho mais nada.
Marco Polo, enfim, entendeu as causas da depressão psicótica de Isaac. Seu eu, que representa
sua vontade consciente, preferia imergir num estado de inconsciência a suportar o peso das suas
perdas e frustrações.
- Você gostava de lagoas?
- Pescar era meu passatempo preferido. Sempre gostei da calmaria de uma lagoa.
Tentando descontraí-lo, Marco Polo disse:
- Você é esperto, Isaac. Viver numa lagoa é um dos melhores lugares para fugir da realidade.
Isaac sorriu. Marco Polo acrescentou:
- Mas você acha esse mecanismo saudável?
- Não!
- Todos passam por sofrimentos na vida, uns mais outros menos. Fugir de nós mesmos
produz um falso alívio e, além disso, dilacera nossa saúde psíquica.
Isaac olhou para as paredes do hospital, recordou seu processo de adoecimento nesses últimos
quatro anos e expressou:
- O preço foi muito caro.
- Não é fácil enfrentar nossas ruínas, mas é a única maneira de sermos autores de nossa
história e não vítimas dela.
- Mas o que eu vou fazer da vida? Perdi tudo que eu mais amo.
- Todos perdem algo na vida. Uns precisam assumir suas perdas, outros precisam recolher os
pedaços que sobraram. Que atitude você deve tomar? Nenhum psiquiatra ou psicólogo pode
fazer essa escolha por você.
Isaac ficava impressionado pela maneira como Marco Polo conduzia as sessões de
psicoterapia. Ele provocava sua inteligência e não o tratava como um coitado, digno de pena. A
cada momento o estimulava a tomar suas próprias decisões.
- Sobraram os pedaços. Preciso recolhê-los.
- Recolha-os com coragem. Não importa o quanto algumas pessoas o decepcionaram, você as
ama, não pode apagá-las da sua vida. Se você apagá-las do seu consciente, não apagará as do seu
inconsciente.
Além de usar essas técnicas, Marco Polo recordou como Falcão libertara-se das suas crises.
Pediu que Isaac fizesse um exercício intelectual diariamente no silêncio da sua mente.
- Tudo em que você crê o controla. Se o que você crê o encarcera, então você será um
prisioneiro; se o que você crê o liberta, então você será livre.
Isaac havia se tornado um caso crônico. Ninguém esperava mais nada dele, nem ele mesmo.
- Como me libertar das algemas que me transformaram num doente mental?
- Duvide dos seus pensamentos perturbadores. Questione seu sentimento de incapacidade,
questione por que você está programado para ser infeliz. Grite em seu interior. Critique sua fuga.
Critique suas fantasias. Determine estrategicamente conquistar as pessoas ao seu redor. Retire
seu eu da platéia. Entre no palco da sua mente e treine ser líder de si mesmo. Faça isso diária e
silenciosamente.
Isaac aprendeu a manipular a arte da dúvida, da crítica e da determinação e teve uma melhora
substancial, apesar de pequenas recaídas. Todos os profissionais ficaram entusiasmados com ele.
Um mês depois, estava tão bem que diminuíram a dose do medicamento. Logo recebeu alta.
Continuaria a fazer tratamento apenas no consultório. Antes de sair, Marco Polo deu-lhe algumas
recomendações:
- Isaac, os fracos condenam, mas os fortes perdoam. Você acusa sua esposa, e seu filho o
acusa. Todos erramos. Perdoe-a e, se sentir necessidade, peça desculpas ao seu filho, descubra-o.
E principalmente perdoe-se, não carregue consigo o monstro da culpa. Surpreenda-os e permita
surpreender-se por eles.
Isaac abraçou Marco Polo e simplesmente disse:
- Obrigado por me fazer acreditar em mim e na vida! Obrigado por me fazer acreditar que é
possível sobreviver quando se perde tudo.
Isaac traçou conscientemente seus caminhos. Fez suas escolhas. Voltou para os braços da sua
esposa. Permitiu deixar-se ser amado por ela e entregou-se ao amor.
Começou a olhar para seu filho por outros ângulos. Descobriu que o maior problema de
Gideão talvez não fosse a droga, mas sentir-se órfão de um pai vivo. Começou a encantá-lo,
cativá-lo, falar menos sobre a droga e mais sobre si mesmo. Tornou-se um contador de histórias.
Gideão conheceu a historia de Moisés, Abraão, do rei Davi, de Salomão. Após algumas semanas,
sentiu que era mais importante para seu pai, apesar da sua dependência. Teve mais forças para
lutar contra a droga. Mais tarde, Marco Polo tratou dele e o ajudou.
Marco Polo rompeu as barreiras e as distâncias e tornou-se amigo da família de Isaac. Do
mesmo modo tornou-se amigo da família de Ali Ramadan quando ele deixou o hospital, um mês
após Isaac.
Embora não tivesse muito tempo, freqüentava suas casas. Gostava muitíssimo da culinária
judia e árabe. Na realidade, tinha um apreço por essas raças fascinantes.
Seis meses depois, Marco Polo aproximou Ali Ramadan de Isaac. Ali queria viver em outro
planeta, pois a Terra fora um palco de perdas. Isaac, por sua vez, queria morar numa lagoa,
porque a Terra também fora um palco de perdas, um deserto seco. As perdas e a dor haviam sido
tantas que os fizeram tecer um belíssimo relacionamento. Tornaram-se grandes amigos.
Passaram a freqüentar a casa um do outro. Faziam belos jantares, tinham longas conversas
sobre o Oriente Médio. Ambos eram descendentes de Abraão. Tinham mais coisas em comuns
do que diferenças.
Comentavam um com o outro e com o maior respeito as belas passagens do Pentateuco de
Moisés, dos salmos e das suratas do Alcorão. Marco Polo era convidado e os ouvia com grande
prazer. Além de aprender com eles, Marco Polo gostava de falar sobre a inteligência do Mestre da
sensibilidade, Jesus, que aprendera com o filósofo mendigo. Todos se respeitavam, todos
ensinavam, todos aprendiam, todos comiam sem parar. Era uma festa o encontro dos três
amigos. Só faltava o Falcão.
Mais uma vez assistiu-se a um fenômeno que excitava os olhos do coração: uma flor
exuberante surgiu no caos do inverno psíquico.
C a p í t u l o 18
O Dr. Mário acompanhou a brilhante atuação de Marco Polo com Isaac e ficou deslumbrado.
Teceu um carinho especial pelo jovem profissional. Os demais psiquiatras começaram também a
respeitá-lo e a serem mais criativos. Cada cabeça é um planeta e cada planeta tem uma rota
peculiar e exige um plano de vôo distinto para ser atingido.
Psiquiatras e psicólogos perderam o medo de tocar, de se relacionar e de brincar
saudavelmente com seus pacientes. Expandiu-se assim o grau de confiabilidade e de empatia entre
eles.
Tornaram-se mais bem-humorados, sociáveis, sensíveis. Naquele ambiente, a psiquiatria e a
psicologia deram um salto qualitativo. Romperam o modelo superficial e doentio extraído das
relações empresariais, onde chefes e funcionários não podem aproximar-se, onde a hierarquia tem
de ser mantida para o bem da ordem e do progresso. Tal modelo servia para disciplinar um
exército, mas não para formar pensadores, pessoas livres e criativas.
Apesar do clima do Hospital Atlântico ter melhorado, Marco Polo ainda não estava satisfeito.
Achava que os pacientes ficavam muito tempo mergulhados em suas idéias negativistas e
pensamentos mórbidos. Faltava alguma coisa.
Através de sua observação clínica, descobriu que as crianças hiperativas, com transtorno de
déficit de atenção, em quem as mães desenvolveram o prazer pela música clássica na infância,
desaceleraram a agitação, expandiram a concentração, diminuíram a ansiedade e tornaram-se mais
produtivas.
Passado um mês, trouxe um aparelho de som e pediu que fosse instalado no pátio central.
Comprou CDs de Mozart, Chopin, Bach e pediu que os colocassem durante a recreação dos
pacientes. Quinze dias depois, os pacientes estavam mais serenos, motivados, alegres e menos
pensativos. Até as crises diminuíram.
Marco Polo e outros psiquiatras desconfiaram que a música gerava uma abstração sublime que
exaltava o universo dos afetos, que rompia o ciclo da construção ansiosa e exacerbada dos
pensamentos, que liberava endorfinas e potencializava o efeito da medicação no metabolismo
cerebral. Mas esta era apenas uma hipótese que precisava ser comprovada. Do pátio, a música
ambiente começou a ser usada nos quartos e enfermarias do hospital.
Cláudia, uma paciente que andava freqüentemente desanimada e com as costas curvadas,
animou-se com a música. Tinha sessenta anos, mas aparentava oitenta. O som musical a
revigorou. Ninguém sabia, porém ela havia sido uma exímia dançarina e professora de dança na
juventude. Era uma especialista em valsa. Motivada, Cláudia encontrou Marco Polo e contou-lhe
seu passado.
- Eu já brilhei nas pistas de dança, Dr. Marco Polo!
O jovem psiquiatra ficou encantado com sua história.
- Você ainda pode brilhar, Cláudia.
- Não sei. Quando um vendaval passa por nossas mentes, a arte se dissipa.
- Nem tanto. Muitos artistas produziram suas obras-primas nos piores momentos de dor e
frustração. O sofrimento lapidou a arte.
Cláudia saiu reflexiva. Marco Polo guardou seu relato. Certo dia, quando muitos pacientes
estavam aglomerados no pátio, ele apareceu e tirou o CD de música clássica. Alguns pacientes
fizeram um burburinho manifestando sua desaprovação. Em seguida, colocou uma belíssima
valsa.
Cláudia, ao ouvi-la, ficou excitada. Estava na lateral do pátio. Marco Polo dirigiu-se até ela e, na
frente de todos, tirou-a para dançar. Ela quedou extasiada e, ao mesmo tempo, indecisa. Ele
pegou suas mãos e a levou para o centro do pátio. Há 25 anos não dançava, pelo menos em
Público. Seus amigos fizeram uma grande roda e clamaram:
- Dança! Dança!
Ela não resistiu. Marco Polo colocou erradamente suas mãos sobre as costas dela.
Delicadamente, ela o corrigiu. Ele não era um bom dançarino, e Claudia estava com a
musculatura rígida. Nos primeiros trinta segundos, ela não acertava o passo e ele falhava mais
ainda.
Em seguida, ela se soltou e começou a corrigir seus movimentos. Os pacientes ficaram
encantados. Aplaudiram calorosamente. Desconheciam a artista que vivia com eles. Cláudia
sentiu-se uma princesa. Sua mente trouxe doces imagens do glorioso passado.
Aos poucos, os pacientes começaram a formar pares e começaram também a dançar. Como
não havia par para todos, alguns pacientes formaram par com outros do mesmo sexo. Dora
entrou no pátio com cara amarrada. "Desta vez Marco Polo foi longe demais", pensou.
Ao ver sua irritação, o jovem pediu que Cláudia fizesse par com o Dr. Vidigal, que se isolara
num canto. O Dr. Vidigal estava prestes a receber alta e nunca havia dançado uma valsa, mas
ficou animado em aprender.
Marco Polo foi até Dora e convidou-a para dançar. Ela recusou-se. De repente, as pessoas
começaram a se aquietar e a prestar atenção no clima entre os dois. Ele insistiu:
- A vida é tão efêmera, passa tão rápida, permita-se relaxar.
Ela deu-lhe as costas, preparando-se para retirar-se. Contudo, a platéia gritou novamente:
- Dança! Dança!
Ela respirou e subitamente voltou-se para Marco Polo. Todos se espantaram. Pensaram que ela
ia dar-lhe uma bofetada. Com incrível segurança, pegou a mão do rapaz, colocou-a fortemente
sobre suas costas e começou a dançar com incrível agilidade.
Dora havia feito balé clássico durante toda a adolescência e sabia dançar música de salão com
destreza ímpar, porém perdera a habilidade de dançar a valsa da vida. Assombrado, Marco Polo
deixou-se conduzir por ela. Após os aplausos, todos novamente começaram a dançar.
O Dr. Mário e outros psiquiatras ficaram sabendo da confusão no pátio. Ao entrar no
ambiente, ficou perplexo. "Até Cláudia, que é tão recatada, foi contagiada", pensou.
Embora gostasse de Marco Polo, o clima era insuportável para ele. Afinal de contas, sabia que
em nenhum hospital psiquiátrico do mundo havia música ambiente. Uma roda de valsa era
demais para sua cabeça.
Estava para desligar o aparelho quando sentiu uma mão tocando-lhe o ombro. Era Dora.
Delicadamente o impediu. Os pacientes novamente se aquietaram.
- Dora, você sempre foi tão dosada, comedida. O que está acontecendo aqui? Vocês ficaram
malucos?
Sorrindo, Dora disse:
- Agora, um pouco menos.
Em seguida, Cláudia tomou a frente e disse:
- Dr. Mário, por favor, dance comigo!
Ele resistiu, coçou a cabeça e achou um absurdo o convite. Entretanto, num lampejo, ficou
reflexivo e ansioso. Ele já havia atendido Cláudia num surto psicótico e agora ela queria levá-lo
para o centro do palco. Ela estava segura e ele, inseguro. Os papéis se inverteram. "O que está
acontecendo, meu Deus!", pensou.
As crateras do seu inconsciente rapidamente se abriram e perturbaram-no mais ainda. Percebeu
que, embora fosse o psiquiatra mais respeitado da grandiosa instituição, ele também estava
doente. Tinha medo de ir para o palco, ser observado, falhar, passar por ridículo, ser debochado -
os mesmos sintomas de muitos de seus pacientes.
Naqueles poucos segundos de intensa reflexão, o Dr. Mário passou os olhos pela multidão de
pacientes e descobriu que eles possuíam algo valiosíssimo que ele perdera: a espontaneidade. A
espontaneidade, uma característica da personalidade fundamental para a saúde psíquica,
escasseara nas sociedades modernas. Naquele momento o Dr. Mário percebeu que ela não fazia
mais parte do dicionário de sua vida.
A platéia, eufórica, clamou mais uma vez em coro, porém agora citando seu nome:
- Dr. Mário, dança! Dr. Mário, dança!
Sob a mira daquelas pessoas mutiladas pela vida, ele despiu-se da sua inatingível posição.
Resolveu também entrar na dança. Aparentemente sem jeito, pegou em uma das mãos de Cláudia
e colocou a outra mão sobre suas costas. Ela não fez nenhuma correção.
Logo no início, o Dr. Mário tropeçou. Porém, para surpresa de todos, transformou seu
tropeço num passe de dança. A platéia gostou. Rapidamente se soltou, fez bonito na roda. Sabia
dançar muito bem o doutor, mas havia se tornado uma máquina de trabalhar. Como Cláudia, há
mais de vinte anos não dançava.
Tratava de grandes empresários e de celebridades em sua clínica particular, era um especialista
em resolver problemas, mas desaprendera a arte de viver, não seguia as suas próprias orientações.
Nos primeiros anos após sua formação médica era solto, leve, feliz. Com o passar do tempo,
tornara-se circunspecto, fechado, perdera a singeleza. Nem ele se suportava.
Marco Polo, observando a habilidade e graça do seu diretor, pensou: "Quem dera não
escondêssemos nossas identidades atrás de nossos títulos! Quem dera a psiquiatria, sem perder
sua base científica, tivesse mais romantismo e generosidade!"
O Dr. Mário e Cláudia formaram um par maravilhoso. Não era um psiquiatra e uma paciente
dançando, mas dois seres humanos que precisavam resgatar o prazer das pequenas coisas. Após
Cláudia se cansar, ele pegou Dora nos braços e começaram a dançar. Dois psiquiatras saíram do
ambiente meneando a cabeça com indignação. Comentaram um com o outro:
- O Dr. Mário enlouqueceu!
Outros psiquiatras, no entanto, inclusive alguns seguranças, aproveitaram a oportunidade e se
soltaram na pista improvisada. Dora se aproximou de Marco Polo e lhe pediu desculpas pela
arrogância como o tratava. Complacente, ele simplesmente disse:
- Eu a entendo.
- Nós trabalhamos num dos ambientes mais tristes do mundo. Precisamos ser mais
descontraídos - acrescentou Dora.
- Esse é um grande desafio. O maior paradoxo da psiquiatria moderna é que ela usa
antidepressivos para tratar o humor triste, mas não sabe como produzir a alegria. Mas veja o que
conseguimos. Com tão pouco, as pessoas estão muito felizes.
- Eu preciso mudar meu estilo de vida - ela refletiu.
- Todos precisamos. Creio que o ambiente tenso e entristecido do Hospital Atlântico é apenas
um reflexo da sociedade que estamos construindo.
Sem que eles percebessem, o Dr. Mário ouvia atentamente a conversa. Interrompendo-a,
expressou:
- Infelizmente, parece que desaprendemos e não sabemos mais como viver. A sociedade lá
fora não é menos doente do que esse ambiente.
Aliviado, colocou as mãos nos ombros do jovem amigo e expressou:
- Muito obrigado, Marco Polo! Obrigado por me ensinar que é sempre possível recomeçar.
Sorrindo, o Dr. Mário fez um comentário que jamais havia feito:
- Precisamos agradecer a nossos pacientes por nos ensinarem o caminho das coisas simples.
Despediu-se e saiu. Enquanto saía, o diretor abraçava vários pacientes que encontrava pelo
caminho. Deu mais abraços em poucos minutos do que em trinta anos de profissão.
Depois desses acontecimentos, o Hospital Atlântico mudou para sempre. Havia brilho nos
olhos das pessoas. As habilidades dos pacientes foram aproveitadas.
Cláudia abriu uma "escola de dança" no hospital. Brilhou como nunca. Sua escola gratuita
tornou-se sua obra-prima. Quem sabia pintar, encenar, escrever e fazer trabalhos manuais
ensinava os que queriam aprender. O índice de melhora e o tempo de internação diminuíram
significativamente.
Alguns pacientes sentiram-se tão úteis que, após receberem alta, retornavam como voluntários.
A arte do prazer irrigou suas vidas. Foi a primeira vez que se teve notícia de que os pacientes
amaram um hospital psiquiátrico.
C a p í t u l o 19
Marco Polo terminou sua especialização em psiquiatria. De vez em quando, visitava seus
amigos no Hospital Atlântico. Ao mesmo tempo que se destacava como profissional, escrevia
suas idéias sobre o mundo intangível da mente humana. Sua inquietação por novas descobertas e
sua incapacidade de aceitar passivamente o que contrariava sua consciência não se abrandaram
quando formado, ao contrário, intensificaram-se.
Ele concordava com o pensamento de Aristóteles: "O homem é um animal político." Para ele, o
ser humano era um ator social. Os psiquiatras e psicólogos deveriam sair do microcosmo dos seus
consultórios, para atuar socialmente. Deveriam contribuir para prevenir os transtornos psíquicos
e não viver às expensas de um sistema que produz pessoas doentes.
Marco Polo pouco a pouco se tornou um psiquiatra influente na sua cidade e região. Devido à
ousadia das suas idéias, com freqüência o convidavam para dar conferências em faculdades.
Certa ocasião foi convidado para dar uma palestra para duas turmas de alunos do último ano de
faculdade de psicologia. A platéia era composta de mais de cem pessoas. O tema era "Depressão, a
doença do século". Após sua exposição, Marco Polo comoveu os alunos. Terminou com estas
palavras a sua preleção:
- Futuros psicólogos e psicólogas, a depressão é a experiência mais dramática do sofrimento
humano. Só sabe a dimensão dessa dor quem já atravessou seus vales. As palavras são pobres para
descrevê-la. Devemos aprender a respeitar esses pacientes, ouvi-los abertamente e fazê-los deixar
de ser espectadores passivos de seu caos emocional. Precisamos levar os pacientes a gerenciarem
seus pensamentos, protegerem suas emoções e reeditarem o filme de suas histórias. Esta é a
grande tarefa da psicologia. Os que exercem a psicologia devem ser pessoas apaixonadas pela
vida e, acima de tudo, devem desenvolver habilidades para descobrir os tesouros soterrados nos
escombros dos que sofrem. O mapa desse tesouro não está em nossas teorias, mas nos
comportamentos expressos sutilmente pelos próprios pacientes. Deixem-se ser ensinados por
eles. Jamais se esqueçam de que nós não tratamos de doentes por não sermos doentes, mas
porque sabemos que somos...
Marco Polo foi ovacionado entusiasticamente pelos alunos. Eles ficaram reflexivos e até
chocados positivamente com suas idéias. Diante do entusiasmo da platéia, ele comunicou que no
mês seguinte haveria um congresso internacional de psiquiatria cujo tema principal era justamente
a depressão. Se eles quisessem saber mais sobre o assunto, poderiam participar.
Em seguida, abriu a palestra para o debate. Como o assunto era de interesse geral, vários
alunos de direito, engenharia, pedagogia, que passavam pelos corredores do anfiteatro e ouviram
as eloqüentes palavras finais de Marco Polo, pediram licença para ouvir o debate. Sentaram-se no
corredor. Logo de início, uma aluna tocou com ousadia num assunto sério:
- Professor, alguns psiquiatras não enviam seus pacientes para os psicólogos. Eles confiam no
poder da medicação e dão pouca importância à ação psicoterapêutica. Alguns acham até mesmo
que a psicoterapia é uma perda de tempo. Por que a psiquiatria se considera superior à
psicologia?
O assunto era polêmico, mas real e grave. Embora a psiquiatria e a psicologia devessem
caminhar juntas, não poucas vezes andavam separadas, disputando pacientes e prejudicando a
evolução deles. Faltava ética e conhecimento nesse delicado terreno. Recordando e concordando
com as sábias palavras de Falcão, Marco Polo disse:
- Os psiquiatras têm um poder que ditadores e reis jamais tiveram. Através dos
antidepressivos e tranqüilizantes, eles penetram no mundo onde nascem os pensamentos, onde
brotam as emoções. Este poder pode ser muito útil, mas, se mal usado, é capaz de controlar e
não libertar os pacientes. Em tese, os medicamentos produzem efeitos mais imediatos, enquanto
a psicoterapia, mais duradouros. Entretanto nem por isso a psiquiatria é superior à psicologia. As
duas ciências são complementares.
- E por que são separadas? - indagou uma intrépida estudante.
Essa pergunta era curta, mas suas implicações eram grandiosas. Ela tocava na evolução da
ciência, na formação de dezenas de milhares de profissionais (psiquiatras e psicólogos) e afetava a
vida de milhões de seres humanos que anualmente adoecem psiquicamente. Como Marco Polo
não tinha medo de opinar, disse taxativamente o que pensava:
- Para mim a psiquiatria e a psicologia estão separadas porque a ciência está doente. A
psiquiatria e a psicologia se desenvolveram separadamente no século XX. A psicologia tornou-se
uma faculdade separada e a psiquiatria, uma especialidade médica. Elas deveriam unir-se, pois a
mente humana não está dividida, o ser humano é indivisível. Em minha opinião, a psiquiatria
deveria ser uma especialidade da psicologia e não da medicina.
Os alunos deliraram. Irromperam em aplausos pela elevação do status da psicologia diante da
poderosíssima psiquiatria. Jamais imaginaram que ouviriam esse parecer de um psiquiatra. Marco
Polo completou:
- Os psiquiatras saem bem-formados na compreensão do metabolismo cerebral e na ação dos
medicamentos, mas malformados na compreensão da personalidade. Os psicólogos, ao contrário,
saem bem-formados na compreensão da personalidade, mas malformados na compreensão do
cérebro e na ação dos psicotrópicos. Os psiquiatras podem atuar como psicoterapeutas, mas os
psicoterapeutas não podem atuar como psiquiatras, jamais podem prescrever medicamentos. Esta
é uma injustiça científica.
- Há prejuízos para os pacientes pelo fato de a psiquiatria ser separada da psicologia? - bradou
curioso um jovem estudante de direito, sentado no meio do corredor.
Marco Polo ficou feliz por seu interesse.
- Em certos casos há, e muito. Quando um psicólogo atende um caso grave que necessita de
intervenção rápida de medicação e encaminha para um psiquiatra, pode haver um intervalo de
tempo perigoso até que o atendimento psiquiátrico seja feito. Por exemplo, nesse intervalo,
os pacientes podem cometer suicídios, ter surtos psicóticos ou ataques de pânico. Se os
psicólogos tivessem mais dois anos de especialização em psiquiatria, poderiam estudar melhor o
corpo humano, a biologia do cérebro, a ação dos medicamentos e, assim, seriam capazes de prescrevê-
los. Mas infelizmente existe uma disputa de mercado nos bastidores da ciência. Nem
sempre o ser humano está em primeiro lugar.
Em seguida, uma aluna tocou em outro assunto importante e freqüentemente mal entendido.
- Às vezes, os psicólogos, por falta de conhecimento ou por medo de perder seus pacientes,
também não os enviam aos psiquiatras. Quando deveríamos enviá-los para serem medicados?
- Não há regras rígidas, mas darei alguns princípios. Toda vez que há um quadro de confusão
mental, risco de suicídio, humor intensamente depressivo, ansiedade grave ou insônia, o paciente
deve ser medicado. Por favor, não esqueçam que vocês estão mexendo com vidas. Cada paciente
é mais importante do que todo o ouro do mundo. Usem sempre o bom senso.
Os alunos ficaram pensativos. Há anos estudavam psicologia, mas não tinham esses
parâmetros claros em suas mentes. Alguns psicólogos colocavam em risco a saúde dos pacientes
por não encaminhá-los aos psiquiatras. Tinham receio de trabalhar juntos.
- Por que a insônia deve ser medicada, professor?
- Porque o sono é o motor da vida. Ele repara toda a energia que gastamos. A sua falta
desencadeia ou intensifica muitas doenças psíquicas e psicossomáticas. Você pode tentar
remover ou trabalhar as causas de uma insônia, mas não tente por muitos dias. Encaminhe seu
paciente para um psiquiatra ou até a um neurologista, se o caso for simples. E não se esqueça de
que você pode brigar com o mundo e sobreviver, mas, se brigar com sua cama, vai perder. Ah! E
não leve seus inimigos Para a cama. Perdoe-os, fica mais barato.
O grupo sorriu.
- Qual a freqüência de pacientes deprimidos na população?
- Existem diferentes estatísticas. No passado dizia-se que era 10% da população. Atualmente
estamos nos aproximando de 20% das pessoas. O que indica que mais de um bilhão de seres
humanos, mais cedo ou mais tarde, terão um episódio depressivo. E, infelizmente, por
preconceito ou falta de política de saúde pública, a maioria das pessoas não se tratará, trazendo
sérias conseqüências psíquicas, sociais e profissionais.
A platéia agitou-se. A situação era gravíssima. Pela projeção, de dez a vinte alunos do anfiteatro
desenvolveriam depressão. Na realidade, alguns já estavam deprimidos. Como nessa faculdade
70% dos alunos eram mulheres, uma aluna na lateral da classe indagou:
- Quem tem mais transtornos emocionais, as mulheres ou os homens?
- As mulheres têm uma incidência maior.
Houve um tumulto na classe. Os alunos zombaram das suas colegas. Marco Polo fitou-os e
disse:
- As mulheres não adoecem mais facilmente no território da emoção por serem mais frágeis do
que os homens, como sempre acreditou o machismo que reinou por milênios. Excetuando as
causas metabólicas, elas adoecem mais porque amam, se doam, se entregam e se preocupam mais
com os outros do que os homens. Além disso, freqüentemente são mais éticas, sensíveis e
solidárias do que eles. Elas estão na vanguarda da batalha da vida, por isso acham-se mais
desprotegidas. Os soldados no front da batalha têm mais chances de ser alvejados.
Marco Polo suspirou e pediu:
- Por favor, aplaudam as mulheres desta platéia. Sem elas nossas manhãs não teriam orvalho,
nossos céus não teriam andorinhas!
Os futuros psicólogos ficaram rubros, as futuras psicólogas foram às nuvens. Marco Polo, em
seguida, deu uma pequena, mas preciosa orientação terapêutica para elas. Disse-lhes:
- Queridas mulheres, vocês podem viver com milhares de animais e não se frustrarem, mas, se
viverem com um ser humano, por melhor que seja a relação, haverá decepções. Doem-se, mas
não esperem muito retorno dos outros. Esta é uma das mais excelentes ferramentas para proteger
suas emoções.
A partir daí, por usarem essa ferramenta, algumas mulheres evitaram transtornos psíquicos.
Passaram também a aplicar esse princípio com seus futuros pacientes.
Uma aluna da área das ciências exatas, que estava recostada em pé na lateral direita da classe,
não se agüentou:
- Professor, eu estou aqui de curiosa. Sou estudante de engenharia, mas estou tão
impressionada com o nível das idéias que penso que os alunos de todas as faculdades deveriam
ouvir essas palavras. Nós aprendemos a lidar com números e dados, mas saímos completamente
despreparadas para a vida. Por que existe esse vazio nas universidades.
Marco Polo agradeceu e disse:
- O sistema acadêmico não precisa de conserto, mas de uma revolução. Ele gera gigantes na
lógica, mas meninos na emoção. Os alunos não aprendem a libertar a criatividade, a ser
empreendedores, a lidar com riscos e desafios. As faculdades ensinam a amar o pódio, mas não
ensinam a usar as derrotas. - E, recordando as histórias dos debilitados do Hospital Atlântico,
adicionou: - Por mais que sejam cuidadosos, vocês poderão sofrer algumas derrotas, às vezes
difíceis de suportar. Mas lembrem-se desta frase: ninguém é digno do palco se não usar suas
derrotas para conquistá-lo.
Os alunos o aplaudiram com entusiasmo. Em seguida, outra aluna indagou, um pouco trêmula:
- Qual a freqüência das pessoas estressadas na sociedade?
Como muitos, ela era uma pessoa tímida. Toda vez que falava em público, suava frio, tinha
taquicardia, enfim, sofria um desgaste enorme. Aliás, a maioria das pessoas na platéia tinha algum
nível de timidez. Elas não estavam acostumadas a debater, mas Marco Polo criara um clima tão
instigante que não conseguiram ficar caladas.
Como crítico do sistema social, Marco Polo passou os olhos pela platéia e falou
convictamente:
- O sistema nos transformou em máquinas de consumir, uma conta bancária a ser explorada.
Temos sido escravos, vivendo em sociedades democráticas. Vocês são livres para pensar e sentir
o que desejam? Quantas vezes vocês se atormentam por coisas que ainda não aconteceram, ou
por pseudonecessidades?
Os alunos sentiram um nó na garganta. Em seguida, Marco Polo abrandou seu tom de voz.
- Embora exista um estresse saudável que nos estimula a sonhar, a planejar, a enfrentar
desafios, as sociedades modernas se tornaram fábricas de estresse doentio, que bloqueia a
inteligência, obstrui o prazer, gera ansiedade, dores musculares, dores de cabeça, fadiga excessiva. De
acordo com algumas estatísticas, mais de dois terços das pessoas estão estressadas nas sociedades
atuais.
Um estudante brincalhão apontou um amigo agitado da classe e disse:
- Professor, aqui está um "estressadão"!
Marco Polo também brincou com a platéia.
- Atualmente, o normal é ser estressado e o anormal é ser saudável. Se vocês estiverem
estressados, são normais.
A turma, aliviada, sorriu. Uma outra aluna perguntou:
- Mas quem pode ficar livre do estresse nesse mundo maluco e agitado?
Marco Polo fez um passeio em seu passado.
- Quem abraça as árvores, conversa com as flores e vê o mundo com olhos de falcão.
Os alunos assobiaram. Deram gargalhadas, pensando que ele contara uma piada.
Havia uma jovem chamada Anna, sentada na primeira fileira no canto esquerdo da classe. Era a
única que não demonstrava reações enquanto Marco Polo respondia as perguntas. Ele havia
notado seu ar de tristeza. Somente quando ele falou sobre abraçar árvores e conversar com as flores
ela abriu um sorriso. Marco Polo acrescentou:
- Isso não é loucura. Não estou brincando. Abracem árvores, contemplem a anatomia das
nuvens, abracem o porteiro do prédio, cumprimentem o segurança da escola, não escondam seus
sentimentos de quem amam, falem dos seus sonhos. Deixem-me filosofar: a existência é um
belíssimo livro. Ninguém pode fazer uma excelente leitura desse livro se não aprender a ler as
pequenas palavras...
Dizendo isso, Marco Polo encerrou o debate. Os alunos estavam impressionados com o que
ouviram. Ele falara com poesia numa palestra sobre depressão. Jamais tinham visto a psique
humana sob essa perspectiva. Vislumbraram a psicologia namorando a filosofia.
Marco Polo saiu debaixo de aplausos. No corredor, tentou aproximar-se de Anna e cumprimentála.
Tímida, ela estendeu friamente a mão e pediu licença. Em seguida, saiu conversando com uma
amiga. Ele achou estranha a sua atitude, mas, como os alunos o envolveram, não conseguiu abordá-la.
Quando a roda se desfez, foi ao pátio procurá-la.
Viu-a novamente. Aproximou-se e perguntou:
- Desculpe-me, mas qual é o seu nome?
- Anna. Mas, por favor, dê-me licença que tenho compromisso.
Marco Polo ficou inconformado. Somente Anna não o aplaudira. Não era a falta de aplausos
que o incomodava, mas a emoção contraída da moça. Daí a alguns meses ela seria uma psicóloga.
"Que condições teria para exercer sua profissão?", pensou ele. Por isso insistiu:
- Posso conversar outra hora com você?
- Não!
- Não existe um "não" sem uma explicação. Você tem namorado?
- Não! Desculpe-me, mas não quero falar.
- Então minha palestra foi péssima para você - argumentou.
- O problema não é você, o problema sou eu - disse Anna com dificuldade, devido à sua
insegurança.
- Você tem medo de conversar comigo?
Ela o fitou e, sem titubear, disse-lhe:
- Você é que terá medo de conversar comigo! - E saiu sem se despedir.
Marco Polo perturbou-se com as reações dela. Mais uma vez confirmava que cada ser humano é
uma caixa de segredos. Atendera tantas Pessoas, conhecia tantos tipos de personalidade, mas
Anna o intrigara.
C a p í t u l o 20
O incansável apetite para explorar os solos da alma humana levou Marco Polo a ansiar
conhecer os mistérios que envolviam as reações de Anna. Entretanto, algo sutil e inesperado o
fisgou. Anna era uma jovem alta, morena, cabelos longos e encaracolados. Ela o atraiu.
Fez outra tentativa de ir à faculdade para encontrá-la. Avistando-o, os alunos novamente o
envolveram. Ele agradecia, mas seus olhos procuravam outra personagem. Anna, ao vê-lo de
longe, se dissipou na multidão de estudantes.
A atitude dela o incomodava. Ao mesmo tempo que procurava um distanciamento para
interpretar suas reações, os comportamentos da jovem tocavam seu orgulho. Não era apenas o
psiquiatra que fora alvejado, mas também o homem Marco Polo. Um sentimento ambíguo o
envolveu.
Queria saber ao menos as causas da sua resistência. Preferia que ela o criticasse, o considerasse
um tolo, mas não o rejeitasse. Ele havia aprendido a se proteger das frustrações, mas como a
emoção não segue a regras da matemática, nesse momento, sentiu-se frágil.
Na semana seguinte fez uma última tentativa de encontrar-se com Anna, mas ela não estava
presente. Ao indagar a uma de suas amigas, ela apenas disse:
- Anna é uma pessoa espetacular, mas seus comportamentos de vez em quando são estranhos.
Ela se isola de todos. Fica dias sem assistir às aulas. Parece que tem medo de enfrentar alguma
coisa.
Marco Polo ficou pensando se sua insistência teria provocado ou agravado seu isolamento.
Achou que ultrapassara os limites. Criticou sua atitude tola de querer respostas para tudo. Foi
atingido por um sentimento de culpa. "Deveria ter lhe dado o direito de não conversar comigo,
ainda que sem explicações. Afinal de contas ninguém é obrigado a gostar de mim", refletiu.
Na realidade, Anna tinha um passado mutilado, não revelado nem para suas amigas.
Dissimulava suas reações. Sorria por fora, chorava por dentro. Era portadora de uma depressão
crônica que se arrastava desde a infância. As amigas tentavam conhecê-la, mas Anna era uma
pedra de granito, difícil de se penetrar. Embora fosse fechada, era afetiva, sensível, fiel aos amigos.
Amava ler. Goethe era seu escritor preferido e Fausto, a sua obra predileta.
Apesar de seus períodos de ausência, era considerada uma aluna exemplar, pelo menos nas
provas. Tirava as melhores notas da turma. Procurava esconder nas notas altas a sua baixa autoestima.
Como muitos alunos, escolhera conscientemente o curso de psicologia para ser uma
psicoterapeuta, mas inconscientemente para compreender-se e superar seus próprios conflitos.
Entretanto, frustrara-se, pois sua doença emocional resistia, perpetuara-se durante os anos de
faculdade. Percebeu que seria mais fácil ajudar os outros do que a si mesma.
Anna era prisioneira no único lugar em que deveria ser livre: dentro de si mesma. Belíssima por
fora, triste por dentro, não suportava críticas, ofensas, desafios. Era tolerante com os outros, mas
autopunitiva. Cobrava-se demais. Seu perfeccionismo roubava-lhe o encanto pela vida e
imprimia-lhe uma grave ansiedade.
Seus antigos namorados não conseguiram entender suas crises e seus isolamentos. Ela não se
entregava na relação por medo de perder quem amava. Quando o relacionamento exigia
cumplicidade, ela recuava e rompia a relação.
Tratou-se com vários psiquiatras e psicólogos desde a infância. Os resultados não foram
consistentes. Alternava períodos de melhora com crises. Sua emoção era um navio sem âncora,
incapaz de navegar com segurança no belo e tumultuado oceano das emoções.
Alguns psiquiatras de renome fizeram um diagnóstico sombrio e inadequado de sua doença
psíquica. Disseram que ela teria de conviver com sua depressão para o resto da vida, pois tinha
deficiência de serotonina no cérebro.
Para uma futura psicóloga que sonhara em ajudar as pessoas a serem saudáveis era difícil
aceitar a depressão como hóspede ad aeternum da sua personalidade. O sonho da liberdade que
inspirou seres humanos a escrever poesias, escalar montanhas, romper grades de ferro quase não
existia em Anna, pois se diluíra no calor das suas crises.
Marco Polo amava o desafio. Anna amava a rotina. Ele resolveu respeitar o espaço dela. Não a
procurou mais.
No mês seguinte, ele foi ao famoso Congresso Internacional de Psiquiatria. Milhares de
psiquiatras do mundo todo participavam do magno evento. Lampejos de esperança seriam
anunciados para o tratamento das doenças psíquicas, em especial a depressão.
Marco Polo discorrera na faculdade de psicologia sobre os tesouros ocultos nos destroços dos
que sofrem. Sua forma sensível de falar sobre a psique levou dezenas de futuros psicólogos a
participar do evento. Estavam entusiasmados. Não sabiam que suas expectativas se tornariam um
pesadelo.
Anna ousou também participar. Evitava Marco Polo, mas suas idéias a atraíram. Os alunos
esperavam enriquecer sua formação. Afinal de contas, logo conquistariam um diploma e teriam
de tratar das mais complexas doenças, as que atingem o mundo invisível da psique. Pensavam:
"Logo, a vida de um ser humano estará em nossas mãos." Alguns sentiam calafrios diante dessa
gigantesca responsabilidade.
A maioria das conferências desse congresso era sobre farmacologia (estudo dos
medicamentos), lançamento de antidepressivos de última geração e causas metabólicas das
doenças psíquicas. O poder dos remédios seria exaltado. O poder da interação social, o de
técnicas para proteger a emoção e o da expansão da sabedoria para sobreviver nas estressantes
sociedades modernas seriam pouco valorizados.
Marco Polo alegrou-se ao encontrar os estudantes no imenso saguão do hotel onde o
congresso se realizava. Abraçou-os. Viu Anna, ficou feliz, mas cumprimentou-a discretamente.
Passada a descontração, ele ficou apreensivo. Olhou ao redor e observou, constrangido, os
laboratórios farmacêuticos instalados em luxuosos boxes seduzindo os presentes. Ele havia
estimulado os alunos a virem ao templo da psiquiatria, mas começou a ficar preocupado com os
fatos imprevisíveis que poderiam ocorrer.
As indústrias farmacêuticas - principalmente as indústrias que estavam lançando uma nova
droga medicamentosa -, patrocinavam o evento, os pró-labores de alguns conferencistas e os
coquetéis. Além disso, pagavam a inscrição, as passagens e a hospedagem de alguns destacados
psiquiatras para participarem do conclave.
Até a década de 1970, nos EUA, a maior parte das pesquisas clínicas para produzir novas
drogas era financiada com verba pública. Com o declínio da economia norte-americana na
década de 1980, os recursos escassearam e os pesquisadores acadêmicos começaram a receber
patrocínio das empresas.
Na década de 1990 a situação se agravou. Cerca de 70% das pesquisas eram agora financiadas
pelas indústrias farmacêuticas, mas a situação ainda era positiva, pois grande parte delas
realizava-se no santuário das universidades, onde a averiguação de dados era mais detalhada,
mais comprometida com a saúde do ser humano e menos com os lucros.
Marco Polo tinha consciência dessas mudanças na produção científica, coisa rara entre
psiquiatras e cientistas. Analisando dados, percebeu que essas mudanças se intensificaram no
século XXI. A maioria das pesquisas, além de ser financiada pelas indústrias farmacêuticas,
passou a ser realizada dentro das suas próprias dependências e não mais nas universidades. Os
objetivos eram cortar gastos, reduzir a burocracia e melhorar a rapidez dos resultados.
Tal mudança não foi em si mesma um processo antiético, até porque essas indústrias
contribuíram muito para a saúde mundial. Marco Polo sabia disso. Entretanto, para ele, assim
como os tribunais e o aparelho Policial são úteis para a sociedade, mas às vezes cometem graves
erros, as indústrias farmacêuticas não estavam isentas de cometê-los, principalmente porque
lidavam com quantias inimagináveis de dinheiro.
As pesquisas de novas drogas nas dependências das indústrias farmacêuticas eram objeto de
sua inquietação. Ele se preocupava com três tipos de controle, que, feitos inadequadamente,
poderiam prejudicar a saúde de uma parte significativa da humanidade: do processo de pesquisa,
dos resultados da pesquisa e manipulação desses resultados e sua divulgação para a classe
médica.
O terceiro tipo de controle era o que mais o incomodava. No campo da psiquiatria, bem como
em outras especialidades médicas, era muito fácil manipular de forma inadequada os resultados
das pesquisas e propagá-los de forma prejudicial.
Todo remédio tem efeitos colaterais. Omitir tais efeitos era uma forma perniciosa de divulgar
uma nova droga. Mas a forma que mais preocupava Marco Polo era a maneira com que os
materiais gráficos eram produzidos pelas indústrias farmacêuticas e distribuídos entre os médicos
do globo. Nesses riquíssimos materiais, confeccionados com papéis caríssimos, os efeitos
positivos das drogas eram super-destacados e os efeitos colaterais colocados no rodapé, às vezes
quase imperceptíveis.
Como os médicos trabalham excessivamente para sobreviver, vivem estressados e não têm
tempo de assimilar o universo de informações transmitido nos congressos e nas revistas
científicas, acabavam confiando nas sintéticas informações divulgadas nos materiais didáticos
produzidos pelas indústrias farmacêuticas.
Baseados nessas informações, alguns médicos prescreviam medicamentos sem necessidade,
sem uma eficácia adequada ou, então, com efeitos colaterais que comprometiam a saúde dos
pacientes. Na medicina, os dados são fundamentais; a manipulação deles, ainda que pequena,
dilacera a ética e maximiza os riscos.
A poderosa indústria dos medicamentos tornou-se um negócio qualquer, onde o lucro tinha
um destaque primordial. A vida de milhões de pessoas estava em jogo numa disputa onde o juiz
nem sempre era imparcial.
Marco Polo era particularmente preocupado com os grandes laboratórios que sintetizavam
remédios que atuam no delicado e indecifrável cérebro humano, como os tranqüilizantes,
indutores do sono e antidepressivos. Desde seu estreito contato com Falcão, começou a
questionar a pressão e a sedução dessas indústrias para que os médicos prescrevessem seus
medicamentos.
Somava-se a essa pressão a permissão de propaganda na mídia de medicamentos que exigiam
prescrição médica. Apenas nos EUA e no pequeno e belo país da Nova Zelândia ocorria esta
permissão. Comerciais de antidepressivos eram divulgados nas TVs por atores profissionais que
simulavam ser pacientes depressivos, mas que depois de tomar o tal remédio davam um salto
emocional e faziam um brinde à felicidade.
As imagens desses comerciais penetravam no inconsciente coletivo da população, gerando a
crença nos poderes miraculosos dessas drogas, não levando em consideração a necessidade de
aprender a navegar nas turbulentas águas da emoção, a reavaliar o estilo de vida, a trabalhar
conflitos psíquicos e a superar decepções.
Muitos pacientes chegavam diante dos seus psiquiatras ditando os medicamentos que
gostariam de tomar. O paciente queria controlar o médico, e o clima ficava péssimo. Com a
recusa dos médicos, os pacientes trocavam de profissional e sempre encontravam algum que
prescrevesse os remédios de sua preferência.
Desse modo, a medicina e em particular a psiquiatria, que deveria ser o exercício pleno de um
espírito livre e de um intelecto consciente, acabaram sendo pressionadas pelo poder do
marketing. A medicina foi contagiada pelas leis do mercado.
Além disso, outro problema surgiu no horizonte. O acesso pela Internet das informações
sobre doenças e tratamentos levou muitos pacientes a serem seus próprios médicos - médicos
virtuais. A democratização das informações também gerou efeitos colaterais.
Alguns internautas realizavam seus diagnósticos, faziam suas prescrições e se automedicavam.
Esqueciam-se das particularidades de cada organismo, de cada doença e de cada medicamento,
análises que somente os verdadeiros médicos foram treinados para fazer.
O mundo moderno estava em conflito, vivia em franco processo de transformação. Médicos
virtuais, manipulação de dados dos medicamentos, pressões do mercado, tudo isso gerava uma
inquietação em Marco Polo. Ele deveria se preocupar apenas em ganhar seu dinheiro cuidar do
seu futuro, desfrutar das suas férias, como qualquer outro profissional. Entretanto não conseguia
escapar de sua paixão pela humanidade.
Alguns dos seus amigos não entendiam esse sentimento pelo ser humano, queriam sentir um
pouco do que Marco Polo experimentava mas tinham dificuldade. Essa paixão fora iniciada pelas
histórias que seu pai lhe contava e expandida ao se deparar com os corpos sem história na sala de
anatomia.
Depois, ela foi forjada na relação com Falcão e esculpida quando começou a descobrir o
fascinante universo dos "miseráveis" da sociedade. Portanto, sua paixão pela humanidade não era
movida por um messianismo. Desde que desenvolvera o princípio da co-responsabilidade
inevitável não conseguia ser individualista, viver somente para si.
Para ele, nenhum doente mental tinha menos grandeza do que qualquer celebridade política ou
artística. Uns são artistas por encenar dramas em Hollywood, outros o são ao produzir seus
próprios dramas no palco de suas mentes. Achava que a fama era uma estupidez intelectual e
criticava a propagação de gurus pela mídia, pois acreditava que todos deveriam construir sua
própria história. Pensava convictamente que cada ser humano merecia toda a dignidade, mesmo
os anônimos ou as crianças especiais.
Por ser exímio observador, analisava alguns paradoxos das sociedades modernas que o
perturbavam. Para ele, nunca a indústria do lazer - a TV, os videogames, a Internet, o esporte, a
música, o cinema - foi tão expandida e, no entanto, o ser humano nunca teve um humor tão triste
e ansioso. Nunca as pessoas viveram tão adensadas nos escritórios, nos elevadores, nas salas de
aula, e nunca foram tão solitárias e caladas sobre si mesmas. Nunca o conhecimento se
multiplicou tanto em sua época, mas nunca se destruiu de tal maneira a formação de pensadores.
Jamais a tecnologia deu saltos tão grandes e, contraditoriamente, jamais o Homo sapiens
desenvolveu tantos transtornos psíquicos e teve tanta dificuldade de se tornar autor de sua
própria história.
O drama desses paradoxos levou Marco Polo a pensar que, se a ciência não mudasse seu foco e
vultosas quantias de dinheiro público e privado não fossem gastos em pesquisas que evitassem o
adoecimento do ser humano, a humanidade implodiria.
Achava completamente injusto e até um crime social esperar as pessoas desenvolverem
ansiedade, doenças psicossomáticas, depressão, para depois tratá-las. Considerava que isso feria
frontalmente seu princípio psicossocial.
O que mais sufocava a sua alma era este pensamento: "Se as poderosíssimas indústrias
farmacêuticas dependem da existência de doentes para vender seus produtos, qual o interesse
que elas têm no desaparecimento deles?"
No congresso em que Marco Polo e o grupo de formandos em psicologia estavam presentes
via-se um batalhão de funcionários e profissionais vestidos a caráter, contratados pelos
laboratórios para abordar os psiquiatras e médicos de outras especialidades. Vários psiquiatras
seguiam sua consciência e não se deixavam seduzir, mas era uma tarefa árdua escapar a qualquer
envolvimento.
Para encantá-los, sorteavam viagens, davam riquíssimos brindes e distribuíam riquíssimos
folders. Os futuros psicólogos não estavam acostumados com tanto luxo. Eles não sabiam que
por trás dessa intensa propaganda de medicamentos estavam em jogo bilhões de dólares. Os
congressos de psicologia eram bem humildes, sem alardes e pompa. As idéias sobrepunham a
estética.
Havia várias conferências simultâneas no evento. Sentindo-se desconfortável pelos olhares
tensos dos estudantes, Marco Polo recomendou que eles assistissem no auditório principal à
palestra de um renomado professor de psiquiatria, um conceituado pesquisador em
neurociências, o Dr. Paulo Mello. Ele iria discorrer sobre causas e tratamentos da mais insidiosa
e angustiante doença psíquica.
Após sua conferência haveria uma mesa-redonda, composta de ilustres psiquiatras, e um
debate aberto aos participantes. Entre os membros da mesa estava o Dr. Mário Gutenberg,
diretor-geral do Hospital Atlântico.
Anna, ansiosa para saber mais sobre os vales de sua dor, aceitou a sugestão de Marco Polo. Ele
não sabia, mas fizera uma péssima escolha para os futuros psicólogos. Pois na conferência o
complexo funcionamento da mente seria tratado como fruto de um computador cerebral O
intangível ser humano seria confinado dentro dos limites da lógica. As abordagens causariam
náuseas nos jovens que alimentaram belos sonhos com a psicologia.
Todavia, Marco Polo estava presente e sua presença, como em muitos lugares que freqüentava,
era um convite para estilhaçar os paradigmas e agitar o ambiente. Um tumulto ocorreu naqueles
ares.
C a p í t u l o 21
O Dr. Paulo Mello não era apenas um cientista de renome internacional, mas também um
eloqüente conferencista. Não tinha medo de colocar suas idéias. Durante sua exposição,
comentou sobre as bases biológicas dos transtornos mentais. Disse que a deficiência de
neurotransmissores, em especial a serotonina, era a causa fundamental da depressão e de outras
doenças psíquicas.
Abordou que os neurotransmissores eram como carteiros do cérebro que transmitem as
mensagens nas sinapses nervosas, ou seja, no espaço de comunicação entre os neurônios ou
células cerebrais. A sua deficiência gerava falta de comunicação na rede de neurônios, diminuindo
as respostas emocionais e causando crises depressivas. O papel dos antidepressivos, disse ele, era
preservar esses carteiros em doses aceitáveis no metabolismo cerebral.
A platéia de psiquiatras estava atenta às suas idéias, mas os alunos de psicologia não gostaram.
Ele não falou nada sobre os conflitos na relação pais-filhos, o estresse social, as crises familiares e
a má-formação do eu como causas das doenças psíquicas.
Sentiram que estavam em um mundo diferente do que viveram nesses árduos anos de
formação psicológica. Parecia que o ilustre professor falava de uma outra espécie, um outro ser
humano que eles não estudaram na faculdade. Perceberam o que já desconfiavam: em algumas
áreas a psiquiatria estava tão distante da psicologia como o Sol da Terra. Sentiram-se frustrados
com o convite de Marco Polo.
Incomodado, Marco Polo fez um gesto com as duas mãos, querendo expressar: "Paciência!
Acalmem-se, a conferência ainda não terminou." Melhor que tivesse terminado.
Passados alguns momentos, a decepção foi às alturas. O Dr. Paulo Mello radicalizou seu
discurso, afirmando:
- A alma ou psique é química, fruto do metabolismo cerebral Portanto, toda doença psíquica
provém de um erro químico e, conseqüentemente, precisa de correção química para ser
resolvida, ou seja necessita de medicamentos.
Os futuros psicólogos viram o mundo desabar sobre suas cabeças. Sentiram-se feridos e
humilhados. "Se a psique é química e os transtornos psíquicos são erros químicos, que espaço
sobra para a psicologia? Qual é o papel, nessa situação, das técnicas psicoterapêuticas?"
pensaram. Alguns tiveram vontade de sair. Não suportavam a afronta.
Marco Polo nunca tinha assistido a uma conferência do Dr. Paulo, apenas conhecia sua fama.
Sabia que muitos neurocientistas tinham uma visão estritamente biológica e química da psique.
Também sabia que a portentosa indústria farmacêutica dos psicotrópicos era condescendente
com esta visão, utilizava-se dela e ajudava a disseminá-la na imprensa leiga mundial: jornais,
revistas e TV.
Vários jornalistas, desconhecendo os fundamentos da ciência, noticiavam com segurança que o
déficit de serotonina e outros neurotransmissores eram causadores de doenças psíquicas, e que
este déficit precisava ser corrigido através dos medicamentos. Não sabiam que essas informações
eram apenas suposições e não verdades científicas irrefutáveis. Sem perceber, divulgavam a séria
e restrita tese de que a psique era química e, sem ter consciência, contribuíam para os ganhos elevadíssimos
da indústria farmacêutica.
Marco Polo sentiu que tinha sido o maior ingênuo do mundo ao convidar os estudantes de
psicologia para esse evento. Eles poderiam sentir-se frágeis para iniciar sua profissão. Seqüelas
inconscientes poderiam ocorrer. Visivelmente preocupado, pediu mais uma vez com gestos que
eles não saíssem.
Para arrematar, o renomado conferencista deu o golpe fatal na psicologia. Ele não sabia que
havia uma platéia de formandos nesta área, pensara que seu público fosse constituído de médicos,
em especial de psiquiatras.
- Precisamos de medicamentos cada vez mais eficientes, como os que apresentei em minha
palestra. Os psicólogos serão substituídos por drogas de última geração. As neurociências
triunfarão sobre a psicologia. Ninguém pode contrapor-se a seus avanços. O progresso das
neurociências anuncia um futuro saudável para a humanidade.
Os alunos quedaram paralisados, incrédulos diante do que ouviram. Eles, bem como a maioria
dos presentes, não sabiam que por trás desse cenário estava em pauta muito mais do que a
opinião de um cientista num congresso de psiquiatria. A palestra do Dr. Paulo era o reflexo do
perigoso caminho que a ciência moderna estava trilhando.
Nos bastidores da ciência estava em jogo uma disputa intelectual seriíssima sobre a natureza
do Homo sapiens. Muitos dos atores que participavam desse jogo, incluindo cientistas e
profissionais, por saberem cada vez mais do cada vez menos, ou seja, por serem especialistas em
suas áreas, não tinham consciência do próprio jogo e muito menos das suas conseqüências para a
humanidade. Marco Polo há alguns anos pensava e se preocupava muitíssimo com essas
conseqüências.
O que estava em questão era se a psique humana seria ou não meramente um computador
biológico, um aparelho químico. Se pensar, produzir idéias, sentir medo, amar, odiar, sonhar,
ousar, recuar eram ou não apenas frutos do metabolismo cerebral. Se o ser humano possuía ou
não um espírito, um mundo psicológico que ultrapassava os limites da lógica e das reações
bioquímicas. Estava em jogo o eterno debate sobre quem somos e o que somos. Estava em
pauta a última fronteira da ciência.
A julgar pela visão da indústria dos psicotrópicos e pelo pensamento de muitos neurocientistas,
esse jogo já estava ganho. Se as neurociências realmente vencessem nessa queda-de-braço, como
já estava ocorrendo, as conseqüências para o futuro da humanidade poderiam ser chocantes. A
psicologia desapareceria, ou pelo menos perderia sua importância. Medicamentos seriam usados
em massa. Psicotrópicos poderiam ser colocados na água para tratar coletivamente de certas
doenças psíquicas. Vidas seriam controladas.
Além disso, se a mente humana fosse meramente um complexo computador biológico, ela
poderia ser alimentada pelos computadores eletrônicos. Os professores desapareceriam, seriam
substituídos por sofisticados programas mais baratos, e não reclamariam. A Internet se tornaria
uma babá eletrônica, como já estava ocorrendo nos tempos de Marco Polo.
Os jogos eletrônicos, os programas multimídia e os programas de TV poderiam se tornar a fonte
mais excelente de prazer e formação da personalidade. Não haveria necessidade de contemplar o
belo, abraçar árvores, cultivar flores, nem extrair alegria das coisas singelas. Marco Polo sentia
calafrios ao pensar nisso.
Ele pressentia que a juventude estava entristecendo-se mundialmente. Em sua época, os jovens
já haviam perdido a capacidade de contestar as loucuras dos adultos, como no período da
contracultura. Não criticavam mais o veneno do capitalismo selvagem, ao contrário, brigavam
para bebê-lo em doses cada vez maiores. Exploravam seus pais. Eram ávidos consumidores,
vítimas de uma insatisfação crônica e insaciável.
Além disso, o triunfo das neurociências poderia anunciar também o triunfo dos
transumanistas, o grupo cada vez maior de pessoas que enfatizava a melhoria da espécie humana
através da manipulação genética e do uso da clonagem. Alguns transumanistas congelavam seus
corpos após a morte para serem revividos no futuro, quando as ciências estivessem mais
avançadas. Eles sonhavam em acelerar o processo de evolução humana. Neste afã científico, os que
não aderissem a esse processo evolutivo ou não se encaixassem no seu padrão de qualidade
poderiam ser excluídos. Os riscos seriam gravíssimos.
As religiões também desapareceriam caso prevalecesse a idéia de que a alma humana é apenas
uma fantástica máquina biológica, pois o vazio existencial, as inquietações do espírito, a procura
pelo Criador e pela transcendência da morte seriam meros desarranjos bioquímicos. Uma vez
corrigidos esses desarranjos, os conflitos existenciais se dissipariam, pondo um fim na
religiosidade humana.
As religiões tentaram durante milênios compreender a natureza intrínseca do ser humano e
perceberam que ela é indecifrável. Agora chegara a vez da ciência fazer esta fascinante tentativa,
porém havia um risco no ar. A ciência poderia tornar-se a mais fechada e perigosa das religiões se
vendesse seus postulados e hipóteses como verdades inquestionáveis.
Ao analisar todos esses fatores, Marco Polo pressentia que o mundo científico estava dentro
de um imenso Coliseu. Embora houvesse diversas interconexões entre as partes, de um lado se
encontravam as neurociências, da qual participava a medicina biológica, a farmacologia, a neurologia,
uma parte da psiquiatria clássica e as ciências da computação. Elas discursavam sobre
neurotransmissores, sistema límbico, amígdalas, corpo caloso, lobo frontal, enfim estruturas
anatômicas e metabólicas cerebrais como a grandiosa fonte da indecifrável personalidade.
De outro lado, estavam as ciências humanistas, que incluíam outra parte da psiquiatria, a
antropologia, a sociologia, o direito, a filosofia e em especial uma parte significativa da
psicologia.
Embora não formulassem um pensamento claro sobre a natureza humana, as ciências
humanistas enxergavam os fenômenos da psique de maneira mais complexa, capaz de ultrapassar
os limites das leis físico-químicas. Para elas, a solidariedade e a tolerância não poderiam ser
conquistadas com programas de computador, o espírito humano precisaria ser educado, a
sabedoria deveria ser lapidada, a sensibilidade necessitaria das experiências existenciais, o papel
dos mestres seria insubstituível no desenvolvimento das funções mais importantes da
inteligência, como pensar antes de reagir e se colocar no lugar dos outros.
Após discursar sobre o domínio das neurociências, o Dr. Paulo Mello encerrou sua
conferência. Foi ovacionado, alguns o aplaudiram de pé. Em seguida, sentou-se satisfeito com a
acolhida.
Havia mais de quinhentos participantes na platéia. Além dos 42 formandos em psicologia,
estavam presentes professores de psiquiatria de diversas universidades internacionais, psiquiatras
particulares, neurologistas, farmacologistas e diretores de laboratórios farmacêuticos.
Os estudantes perceberam também a apreensão de Marco Polo diante do pensamento radical
do conferencista, mas pensavam que ele não podia fazer nada, pois era um "peixe pequeno"
diante do "tubarão" que se movimentava no palco. Não o conheciam.
O debate se iniciou. Alguns membros da mesa teceram rápidas considerações e elogios ao
conferencista. Em seguida, abriram o debate para a platéia participar. Houve um silêncio gélido.
De repente, Marco Polo levantou-se, saiu do centro do anfiteatro e dirigiu-se apressadamente
para o microfone que estava no lado direito do palco, a mais ou menos oito metros da mesa.
Audácia era sua característica principal. Agradeceu rapidamente a oportunidade de falar e sem
rodeios, partiu para o confronto com o conferencista, olhando-o fixamente.
- Estimado Dr. Paulo. O senhor sabe o que é a ditadura da hipótese?
Ninguém entendeu o termo. Este termo não existia na literatura científica. Fora cunhado pela
habilidade de Marco Polo em sintetizar idéias. Tentando mostrar segurança, o Dr. Paulo
respondeu:
- Não, meu jovem, nunca ouvi falar dessa ditadura. Explique-se.
- Não preciso explicá-la. O senhor acabou de cometê-la em sua conferência.
A platéia de psiquiatras fez um burburinho. "Será que esse jovem está questionando o ilustre
conferencista? Não é possível!", murmuravam. Os estudantes também não tinham a menor idéia
de aonde Marco Polo chegaria, mas começaram a se animar. O Dr. Mário, que estava recostado à
mesa, colocou as mãos na cabeça, pois sabia que vinham chuvas e trovoadas pela frente.
Constrangido e irritado, o Dr. Paulo indagou:
- O que você quer dizer com isso?
Marco Polo ensinava perguntando. Não transmitia conhecimento pronto. Levava seus
opositores a pensarem e a tirarem suas próprias conclusões, mesmo num momento em que
parecia digladiar num Coliseu. Aprendera a técnica com o mestre das ruas. Em vez de responder,
fez outro questionamento:
- O que é uma hipótese e qual a distância dela para uma verdade científica?
O Dr. Paulo começou a ficar preocupado com a ousadia do jovem. Respondeu:
- Uma hipótese é algo em que se acredita, que se supõe, enquanto uma verdade científica é um
fato de aceitação unânime pela comunidade científica. A distância entre elas pode ser pequena ou
grande, dependendo da qualidade da hipótese.
Então, Marco Polo deu-lhe o primeiro golpe intelectual:
- A deficiência da serotonina como causadora de doenças psíquicas é uma hipótese ou uma
verdade científica?
- Uma hipótese.
- Parabéns, doutor! Então, o senhor acaba de confirmar que cometeu a ditadura da hipótese,
pois vendeu para a platéia sua hipótese pelo preço de uma verdade científica.
Os alunos de psicologia se entreolharam e o aplaudiram. Perturbado com os aplausos, o
conferencista retrucou agressivamente:
- Isso é uma afronta! Apenas expus meu pensamento.
- Não, doutor. O senhor impôs seu pensamento. Deveria ter dito que a deficiência de
serotonina era uma hipótese. Além disso, o senhor teve a coragem de sentenciar a psicologia ao
desaparecimento. O senhor supervalorizou o metabolismo cerebral e a ação de fármacos (remédios)
e desprezou o complexo mundo emocional e intelectual que nos tornam uma espécie
inteligente.
- Rapaz, deixe de argumentos vazios e apresente suas idéias para realizar um verdadeiro debate!
- rebateu agressivamente o professor, tentando esconder seu erro.
Marco Polo não se intimidou. Respirava desafios.
- Diga-me, ilustre professor, é possível entrar na cidade de Nova York de olhos vendados e
achar a residência de uma pessoa sem saber seu bairro, sua rua, seu número?
Achando que Marco Polo estava perdido em suas idéias, o Dr. Paulo disse-lhe com ar de
desdém:
- Não, a não ser que demore décadas por tentativa e erro.
- Então, como é que o senhor encontra de olhos vendados e em milésimos de segundos o
endereço dos verbos e substantivos em sua memória, que é milhares de vezes mais complexa do
que Nova York, e os insere nas cadeias de pensamento?
Constrangido, ele falou:
- Não sei. Mas quem sabe como isso ocorre?
- Mais duas perguntas, mestre. O senhor sabe como é construída nossa consciência existencial,
que nos faz perceber que somos seres únicos no palco da vida? O senhor sabe como essa
consciência reconstrói o passado ou antecipa os fatos sobre o futuro, sendo que o passado é
irretornável e o futuro é inexistente?
A platéia ficou perturbada. A mente do Dr. Paulo ficou confusa com as perguntas, mas ele disse
honestamente:
- A atual fase da ciência está apenas arranhando os fenômenos que constroem os pensamentos
e desenvolvem a consciência.
Subitamente, mudando o assunto, Marco Polo perguntou:
- Parabéns, mestre! Mais uma pergunta: o senhor acredita em Deus?
- Essa pergunta é de foro íntimo. Estamos numa arena científica. Não quero falar sobre essas
bobagens.
Levantando o tom de voz e abrindo os braços, Marco Polo bradou para a platéia:
- Deus está aqui, gente! Ele está presente em carne e osso. Apresento-lhes Deus - e apontou as
duas mãos na direção do Dr. Paulo, como Falcão fizera com ele.
- Você está tendo um delírio religioso, um surto psicótico! - disse o conferencista com
deboche, tentando descontrair o público.
A platéia riu de Marco Polo.
- Não é um delírio! Se o senhor desconhece os insondáveis segredos que tecem a inteligência
humana, se não sabe como pensa e se desenvolve a consciência existencial, mas tem a ousadia de
afirmar que a psique é o cérebro, que a alma é química, então o senhor é Deus. Pois só Deus é
capaz de ter tamanha convicção. Milhões de pessoas tentaram descobrir este segredo e desceram
para seus túmulos com suas dúvidas, mas o senhor conseguiu. O senhor tem de ser Deus.
A platéia gargalhou, e até os neurocientistas presentes se soltaram. Mas o Dr. Paulo tentou
esquivar-se:
- Você está me ofendendo.
- Desculpe-me. Eu aceito que o senhor expresse sua opinião, mas não concordo que o senhor
imponha seu pensamento. A minha crítica é que muitos profissionais, confiando nas teses de
ilustres cientistas como o senhor, as tomam como verdades absolutas e, assim, cometem erros
crassos. Se o senhor e os demais neurocientistas expusessem essas teses com status de hipóteses,
a democracia das idéias poderia ser exercida. Os que lessem ou ouvissem suas idéias poderiam
criticá-las e filtrá-las.
A platéia emudeceu. Os futuros psicólogos apertaram as mãos uns dos outros em sinal de
aprovação. E Marco Polo parafraseou Shakespeare:
- Há mais mistérios entre o cérebro e a alma humana do que imagina nossa vã ciência!
A platéia novamente sorriu.
- Tenho pós-doutorado em psiquiatria e psicofarmacologia. E o senhor, que tese defendeu? -
perguntou o Dr. Paulo com altivez. Um membro da mesa, querendo ajudar, acrescentou:
- O Dr. Paulo publicou mais de cinqüenta artigos em revistas científicas em todo o mundo.
O conferencista corrigiu:
- Não, são cento e cinqüenta artigos.
- Isso, cento e cinqüenta artigos. Quantos artigos você já publicou? Quais as suas credenciais
como cientista?
Alguns psiquiatras da platéia assobiaram. Pensaram que o jovem colega perderia a voz.
- Sou Marco Polo, um explorador de mundos - respondeu sem titubear.
A platéia desta vez deu gargalhadas. Os estudantes aplaudiram.
- Vamos, rapaz, revele-se.
Diante da insistência, Marco Polo adicionou:
- Tenho explorado os desfiladeiros onde surgem as idéias perturbadoras e os arquipélagos onde
se levantam as defesas emocionais, até mesmo as defesas aqui presentes, mas não defendi ainda
nenhuma tese nem publiquei nenhum artigo. Reconheço que sou um jovem psiquiatra
comparado ao seu currículo. Mas reconheço também que a ciência mais lúcida debate as idéias de
um pensador pelo seu conteúdo e não pelos títulos que o autor apresenta. Creio que os
verdadeiros cientistas amam o debate e não a submissão.
A platéia ficou alvoroçada e caiu em aplausos, solidária com Marco Polo. As universidades
haviam sido seduzidas pelos títulos e pela fama do apresentador. Deixaram de ser um templo de
debates em busca da isenção de preconceitos, como na Grécia Antiga.
Os congressos de psiquiatria e mesmo de psicologia eram freqüentemente tediosos. Há muito
tempo os presentes não viam uma discussão tão rica, com tantas implicações científicas. Vários
professores universitários de psiquiatria vibravam com esse caldeirão de idéias. Faziam anotações
com ânimo.
- Está me dizendo que não sou um verdadeiro cientista? O clima aqui está insuportável - disse
o Dr. Paulo, suando frio e ameaçando deixar a mesa.
O Dr. Mário não permitiu que o conferencista saísse do palco. Pegou o microfone e
comentou:
- Muito interessantes suas idéias, Dr. Marco Polo. Se tem mais alguma coisa para acrescentar,
por favor, continue.
O Dr. Paulo suou frio e sentou-se. Não sabia que os dois se conheciam. Marco Polo procurou
ser mais brando, elogiou o conferencista, buscando abrir as janelas da sua inteligência. Tinha de
declarar para ele e a platéia as coisas entaladas em sua garganta.
- Sei que o senhor é um dos mais renomados psiquiatras do mundo. Eu tenho muito a
aprender com seu ilibado conhecimento.
O Dr. Paulo sentiu-se lisonjeado.
- Mas, para mim, a medicação, quando necessária, é o ator coadjuvante, e a psicoterapia é o
ator principal de um tratamento psíquico.
- Que ingenuidade! Você ama a poesia e eu, a ciência. Em pleno século XXI você desconhece
os espetaculares avanços das neurociências? Nunca usou tranqüilizantes e antidepressivos nas
doenças psíquicas? O senhor deve ser um psicólogo para ter esse tipo de pensamento.
Alguns psiquiatras acharam a piada maldosa.
- Sou psiquiatra, doutor, e uso com certa freqüência esses medicamentos. Sei, embora não
completamente, das suas vantagens e dos seus lirnites. Mas minha tese é de que se não nutrirmos
o eu dos pacientes, que representa sua capacidade de decidir, para serem os atores principais do
teatro de suas mentes, não geraremos pessoas livres, capazes de administrar seus pensamentos,
fazer suas escolhas e construir sua própria história.
Os futuros psicólogos ficaram excitados com essa abordagem. Anna, numa atitude inusitada,
se levantou e o aplaudiu. Marco Polo observou-a, admirado. O Dr. Paulo ficou profundamente
irritado.
- O senhor está usando uma filosofia barata.
- Eu respeito sua posição, mas faço questão de defender o que penso.
Um outro membro da mesa, o Dr. Antony, um psiquiatra de 65 anos, sereno, de voz pausada,
um ícone no meio acadêmico, estava deliciando-se com o calor do debate. Mostrando-se
extremamente interessado, perguntou a Marco Polo:
- Você discorda da hipótese dos neurotransmissores na produção de doenças psíquicas,
doutor?
- Dr. Antony, para mim essa tese é pobre se considerada isoladamente. Há outras hipóteses
tão ou mais importantes, tais como os conflitos na infância, o estresse social, as perdas
existenciais, as frustrações interpessoais, a incapacidade de libertar a criatividade, de preservar a
emoção. Todavia, para mim, a verdade é um fim inatingível. O que deve ocorrer é uma
conjunção das hipóteses das neurociências com as da psicologia.
- O que é a alma para você, meu jovem? - perguntou o Dr. Antony.
Marco Polo respirou pausadamente. Teria de entrar num delicado assunto, um assunto que a
ciência se sentia quase proibida de discutir. Mas não teve medo de expressar seu pensamento.
Usou a poesia.
- Quando vejo uma mãe perdoar um filho apesar de ele não merecer, quando vejo alguém
apostar num amigo quando ninguém mais acredita nele, quando vejo um paciente com câncer
acreditar na vida apesar de estar morrendo, ou quando contemplo um mendigo dividir seu pão
apesar de não ter qualquer valor para a sociedade, fico encantado, embevecido. Eu penso comigo.
"Que mundo maravilhado é a mente humana."
Nesse momento comoveu-se com as recordações. Mas continuou:
- Percebo que amar, cantar, tolerar, recuar são reações que ultrapassam os limites lineares das leis
físico-químicas do cérebro. Nossa alma é mais do que uma máquina cerebral lógica. Os
computadores jamais terão tais reações, nunca terão consciência de si mesmos, serão sempre
escravos de estímulos programados.
A platéia ficou alvoroçada.
- Suas idéias chocam a ciência. Se formos mais do que um cérebro organizado, então o que
somos e quem somos? - perguntou o Dr. Antony.
- Não sei quem somos, mas posso dizer um pouco sobre o que somos. Para mim, a psique é
um complexo e indecifrável campo de energia que coabita, coexiste e cointerfere com o cérebro,
ultrapassando seus limites.
Agora, a platéia ficou perplexa. Nunca viram um postulado com essa dimensão. O Dr. Antony,
introspectivo, comentou:
- Parabéns pelas suas idéias inovadoras. Você tocou na última fronteira da ciência. Se nossa
espécie comprovar sua tese, ela dará um salto sem precedentes no futuro. No entanto, apesar da
profundidade desta tese, não há como prová-la. O único argumento de que dispomos é a fé. E a fé
é uma incerteza científica.
- Tenho alguns argumentos que podem fundamentar essa tese, mas ainda estão sendo
elaborados.
- Estão vendo? Eu disse que suas idéias eram filosofias baratas! - exclamou com entusiasmo o Dr.
Paulo. O Dr. Antony o corrigiu rapidamente:
- As idéias do debatedor são de grande alcance, trata-se da tese das teses da ciência. Nossos
congressos de neurociências têm sido secos, mórbidos, unifocais. Não discutimos os ditames do
espírito humano. Temos medo de entrar num terreno que não conhecemos, mas que é essencial
à vida. Temos receio de penetrar na delicada fronteira entre a psiquiatria e a filosofia, entre a ciência
e a religião. Às vezes, penso que essa fronteira não existe, nós a criamos. Seria muito bom que em
nossos áridos congressos falássemos mais sobre as emoções, educação, espiritualidade, crises
existenciais, conflito social, e menos sobre o metabolismo cerebral.
Vários psiquiatras se levantaram e aplaudiram o Dr. Antony, concordando com o seu
pensamento. A discussão se encerraria ali se o Dr. Paulo não se mostrasse desrespeitoso com o
sereno Dr. Antony.
- Desculpe-me, Dr. Antony, mas estamos no terceiro milênio, e misturar fé com ciência e
psiquiatria com filosofia é uma ingenuidade científica, um atraso cultural. É retroceder mil anos
no tempo. O senhor já deixou de produzir ciência. Hoje é apenas um professor aposentado,
está afastado das grandes pesquisas. As neurociências estão cada vez mais perto de provar que a
alma é um aparelho químico.
Para Marco Polo não havia vencedores nesse embate, mas teses distintas, que deveriam ser
discutidas com respeito para o bem da humanidade, e não para benefícios de grupos. Diante da
arrogância do Dr. Paulo, ele tomou a frente e elevou o nível do debate. Colocou em pauta alguns
questionamentos que desde os tempos da sua amizade com Falcão começaram a ser elaborados.
Poucos entenderam de início seu raciocínio.
- Dr. Paulo, sabemos que um grupo de pacientes tem novas crises depressivas após a
interrupção dos antidepressivos, ainda que usados por um bom tempo, como seis meses ou um
ano. Mas outro grupo, após a interrupção dessas drogas, deixa de ter essas crises. Esta informação
está correta ou não?
O professor fez um sinal com as mãos para ele continuar.
- Pois eu lhe pergunto. Por que, então, o último grupo de pacientes não teve mais crises?
Sem titubear, o professor imediatamente respondeu:
- Os pacientes se superaram. Venceram suas dificuldades, reorganizaram seus conflitos,
aprenderam a enfrentar seus estímulos estressantes.
- O déficit de serotonina ou erro químico permaneceu nesse grupo de pacientes que teve
pleno sucesso no tratamento?
O professor sentiu um nó na garganta, Marco Polo o pegara em seus próprios argumentos.
Alguns professores de psiquiatria perceberam a armadilha em que o Dr. Paulo caíra. Pensaram:
"Que argumento fatal" No entanto outros psiquiatras não entenderam aonde Marco Polo queria
chegar. Um tanto temeroso, o Dr. Paulo respondeu:
- Sim, provavelmente o déficit continuou.
- Parabéns, professor! O senhor acabou de questionar o futuro das neurociências. Após a
suspensão do antidepressivos, o déficit de serotonina continuou, pois o defeito metabólico que
produz o déficit não foi solucionado pela medicação. Se o defeito continuou, e o paciente não
teve mais crises, isso indica que superar dificuldades, reorganizar-se, resolver conflitos são
processos psicológicos, cognitivos, que estão muito além da tese importante, mas simplista da
serotonina.
Alguns psiquiatras coçaram suas cabeças. Nunca tinham pensado nesse assunto. O Dr. Antony
e o Dr. Mário saíram do formalismo e aplaudiram Marco Polo.
O Dr. Paulo ficou sem saída. Ele sempre fora um exímio pesquisador, mas infelizmente
deixara-se seduzir pelo dinheiro. Durante a sua conferência, ele havia divulgado um novo
medicamento antidepressivo, cujo nome comercial era Venthax. Comentou que participara de
pesquisas clínicas para averiguar sua eficiência e estava muitíssimo animado com os resultados.
Ninguém sabia, mas o ilustre professor recebera secretamente um milhão de dólares do
poderoso laboratório que tinha sintetizado a droga para divulgá-la nesse congresso, bem como
em seus respeitados artigos científicos veiculados nas principais revistas especializadas.
Na indústria farmacêutica, quando aceita pela comunidade médica, uma única droga é capaz de
dar lucros altíssimos, mais do que a grande maioria dos produtos do mundo capitalista.
O Venthax realmente tinha eficiência terapêutica, mas seus importantes efeitos colaterais
foram minimizados pelo Dr. Paulo. Poderia afetar o fígado, expandir os riscos de infarto e, em
alguns pacientes, induzir agressividade e aumentar os riscos de suicídio.
Na platéia estava presente o diretor comercial do laboratório desse novo antidepressivo, o Dr.
Wilson. Ele estava odiando as idéias de Marco Polo. O debate desviou a atenção dos ouvintes da
nova droga. O Dr. Wilson esperava, a partir desse congresso, alavancar o lançamento
internacional do Venthax. Ele poderia vender mais de cinco bilhões de dólares anuais. Mas
estava decepcionado com os rumos da conferência.
Vendo o Dr. Wilson completamente insatisfeito na primeira fileira do evento, o Dr. Paulo
disse:
-Vamos encerrar este debate.
Mas Marco Polo precisava dizer mais algumas coisas:
- Somos meninos brincando de ciência no teatro da existência. Eu também sou uma pessoa
orgulhosa, por vezes estúpida, mas estou aprendendo que, nesse teatro, o orgulho é a força dos
fracos e a humildade, a dos fortes.
O Dr. Paulo ficou paralisado e a platéia, emudecida. Perceberam que todos são capazes de
errar nesse delicado campo. Marco Polo não impunha as idéias. Ele as apresentava.
- Eu não sou orgulhoso. Sou realista! - afirmou o Dr. Paulo.
- Diga-me, então, professor, a nova droga sobre a qual o senhor discorreu, o Venthax, teve a
sua eficácia clínica comparada com placebos, que são falsos remédios ou mentiras químicas?
O Dr. Paulo tremulou a voz. Não queria entrar nesse campo.
- Claro! Fizemos estudo duplo-cego. Pegamos dois grupos de pacientes deprimidos. Para um
ministramos a nova droga, e para o outro o placebo. Nenhum dos dois sabia que tipo de
substância estavam tomando. Mas já falei de tudo isso em minha palestra.
- Mas não nos forneceu alguns dados. Qual é a porcentagem de eficácia de um e de outro?
- O Venthax teve 62% de eficácia, e o placebo, 46%.
Os estudantes de psicologia se entreolharam. Não sabiam que uma mentira química, o placebo,
tivera uma eficácia não muito distante da droga psicoativa. Nunca discutiram esse fundamental
assunto na faculdade.
Diante disso, Marco Polo deu o golpe fatal no absolutismo e arrogância do grande mestre:
- Por que os placebos tiveram a incrível eficácia de melhorar 46% dos pacientes deprimidos?
Novamente caindo em si e intuindo aonde Marco Polo queria chegar, Dr. Paulo assinou sua
matrícula como pequeno aluno na escola da existência. Com um nó na garganta, foi obrigado a
responder para não passar vergonha maior:
- Porque eles acreditaram no tratamento, sentiram-se amparados confiaram nos médicos que
os assistiram.
- Muito bem, Dr. Paulo, o efeito fabuloso dos placebos é o efeito espetacular da mente
humana, que tem uma incrível capacidade de sonhar, transcender seu caos, enfrentar suas perdas,
recolher seus pedaços, reconstruir sua história, reeditar o filme do inconsciente. As drogas
medicamentosas podem ajudar muito, mas todos esses processos são conquistados pelo diálogo,
pela intervenção do eu, pelo auto-conhecimento, pela troca, pela interação social. Portanto,
obrigado por concluir que a psicologia jamais morrerá!
Os futuros psicólogos levantaram-se e ovacionaram com euforia seu amigo. Alguns verteram
lágrimas. A esperança de encontrar tesouro nos escombros dos que sofrem reascendeu.
Marco Polo olhou fixamente para a platéia e terminou com essas palavras o debate:
- As indústrias farmacêuticas investem bilhões de dólares em pesquisas de novas drogas que
atuam no cérebro humano para tratar de doenças psíquicas, mas não investem nada em medidas
preventivas, em melhorar a educação, desenvolver a arte de pensar das crianças,
educar a auto-estima, diminuir o estresse social e combater a miséria física e psíquica. A sociedade
precisa saber que na esteira do adoecimento psíquico da humanidade, a indústria farmacêutica
prepara-se silenciosamente para se tornar a mais poderosa do mundo, mais robusta do que a
indústria das armas e do petróleo. Essa indústria precisa de uma sociedade doente para continuar
vendendo seus produtos. Aliás, nunca se venderam tantos tranqüilizantes e antidepressivos.
Precisamos repensar o futuro da ciência e refletir para onde caminha a humanidade.
Marco Polo olhou para o relógio e calculou que ficaram quase uma hora debatendo. À vista
disso, completou:
- De acordo com as estatísticas, durante o curto período em que estamos discutindo nossas
idéias, mais de mil pessoas em todo o mundo tiveram crises depressivas, ataques de pânico,
surtos psicóticos e doenças psicossomáticas. Mais de vinte pessoas cometeram suicídios. Pessoas
maravilhosas desistiram de viver e deixaram um rastro de dor nos membros de suas famílias, que
se perpetuará por décadas. Estamos construindo uma sociedade de miseráveis. Isso não os
atormenta, senhores?
- Sonhador! - foi a última palavra do renomado conferencista.
Marco Polo, com os olhos úmidos, também disse a última frase:
- Se deixar de sonhar, morrerei! - Nisso veio-lhe à mente imagens de crianças com depressão e
com anorexia nervosa de que ele tratava, doenças raras de se ver antigamente. As crianças com
anorexia estavam caquéticas, em pele e ossos. As lágrimas de Marco Polo ganharam visibilidade.
O Dr. Mário e o Dr. Antony saíram de suas cadeiras e foram cumprimentá-lo. Vários
psiquiatras ficaram entusiasmados com o pensamento de Marco Polo. Eles eram profundos e
afetivos. Concordavam plenamente que a psiquiatria não podia ser estritamente curativa, deveria
ser redirecionada para a prevenção. Enquanto o jovem psiquiatra percorria o auditório, muitos o
cumprimentaram.
Anna o aguardava do lado de fora. Tinha um sentimento dúbio de alegria e angústia. Alegria,
porque as idéias de Marco Polo arejaram os becos de sua emoção, levando-a a perceber que não
estava programada para ser depressiva. Angústia, porque suas últimas palavras a levaram a um
mergulho na sua infância, nos segredos que fizeram dela uma jovem cronicamente triste.
Ao encontrá-lo, deu-lhe um delicado beijo no rosto. Surpreso, ele não entendeu sua reação
nem se esforçou para entendê-la. O psiquiatra debatedor recuou e o ser humano emergiu.
Desejava apenas sentir aquele momento. Deixou a emoção sobrepor-se à razão.
Saíram juntos do anfiteatro. Caminharam sem direção. Procuravam um ao outro.
C a p í t u l o 22
Anna e Marco Polo encontraram um lugar aprazível para cruzar seus mundos: uma bela,
espaçosa e florida praça. As folhas bailavam sob a orquestra do vento. Os cabelos de Anna
moviam-se suavemente e vendavam seus olhos.
Marco Polo conhecia bem aquele lugar. Nessa praça, repensara sua vida, fizera discursos,
construíra poesias com Falcão e dera os primeiros passos para ser um pensador. Recordou-se de
uma árvore que gostava de abraçar.
Anna, sem meias palavras, surpreendeu-o dizendo:
- Eu sou depressiva!
Marco Polo não sabia desse fato.
- Anna! Você não é depressiva. Você é um ser humano que está passando por uma depressão.
- Ser humano? Quantas vezes me senti a escória da sociedade!
Marco Polo ficou impressionado. "Que causas levaram uma pessoa tão bela e, além disso, futura
psicóloga, a sentir-se tão ínfima?", pensou. Sua doença devastara sua história.
Sob o clima das palavras que ouvira de Marco Polo no borbulhante debate, Anna completou:
- Acho que vou parar de tomar meu antidepressivo.
Serenamente ele lhe disse:
- Não, Anna. Não deixe de tomar seu remédio até que aprenda a trafegar sem medo no belo e
turbulento oceano das emoções!
- Mas eu preciso assumir uma atitude. Suas idéias e sua coragem no debate me deram
motivação para isso.
- Ótimo. Tome atitudes, mas saiba que no território da emoção não existem heróis, mas
pessoas que treinam dia a dia sua força. Lembre-se do que comentei: equipe seu eu para ser a
atriz principal do seu tratamento, trabalhe as causas que alicerçam seu humor depressivo, confronte
seus pensamentos perturbadores. Assim, você será diretora do roteiro da sua vida.
Anna ficava fascinada com a linguagem de Marco Polo. Ele conseguia falar de fenômenos
complexos contando histórias, usando uma inspiração criativa e uma linguagem poética.
- Eu aprecio suas palavras, mas estou cansada. Minha vida tornou-se um peso insuportável.
Foram muitos anos de sofrimento.
- Posso fazer-lhe três perguntas? - disse Marco Polo, que já refletira sobre alguns dos
comportamentos de Anna.
- Fique à vontade - ela concordou delicadamente.
- Você é hipersensível? Quando alguém a ofende, você se machuca muito, estraga seu humor
naquele dia?
Admirada com a pergunta, ela respondeu:
- Não apenas o dia. Uma crítica ou uma rejeição perturbam-me durante uma semana e, às
vezes, o mês ou o ano inteiro. Sou muito sensível.
- Você é hiperpreocupada com a opinião dos outros, com o que eles pensam e falam a seu
respeito?
- Sim. Tenho medo de não ser aceita. Minha auto-estima é péssima. Qualquer rejeição, ainda
que com um olhar, me fere. Mas como você sabe disso?
- Você é hiperpensante, sua mente é muito agitada, não pára de pensar? Sofre por problemas
que ainda não aconteceram ou rumina freqüentes situações angustiantes do passado?
Impressionada com o senso de observação de Marco Polo, ela respirou e respondeu:
- Não paro de pensar um minuto, minha mente é inquieta. Sofro muito por antecipação. Sofro
pelas provas, pelo imprevisível, pelos erros do passado, pelos erros que ainda não cometi. O
passado me perturba e o amanhã me atormenta. - Seus olhos estavam marejados de lágrimas.
- Anna, você tem a síndrome tri-hiper.
- Tri o quê? Nunca ouvi falar dessa síndrome na faculdade.
- Tive a felicidade de descobrir essa síndrome e a infelicidade de saber que ela atinge milhões
de pessoas e está na base da maioria dos transtornos emocionais. Analisando inúmeros pacientes,
observei que muitos têm três importantíssimas características de personalidade que neles estão
desenvolvidas exageradamente, daí o nome tri-hiper. Quem é hipersensível, hiperpreocupado
com a imagem social e hiperpensante tem mais propensão para desenvolver depressão, síndrome
do pânico doenças psicossomáticas. Mas há duas boas notícias: a primeira é que essa síndrome
pode ser resolvida, a segunda é que ela atinge as melhores pessoas da sociedade, as que são
emocionalmente ricas e excessivamente doadoras.
- Emocionalmente ricas e excessivamente doadoras, como assim? -indagou Anna espantada. -
Eu sempre estudei em meus livros que as pessoas deprimidas eram problemáticas e você me diz
que elas possuem uma personalidade rica!...
- É o que penso. Pelo fato de essas três nobres características estarem superdesenvolvidas
gera-se uma enorme desproteção emocional. Por isso elas se ofendem facilmente, exigem muito
de si e gravitam em torno de fatos que não ocorreram.
Anna ficou extasiada. Desde sua infância freqüentava consultórios de psiquiatria e psicologia,
mas pela primeira vez sentiu orgulho de si mesma. Ela era muito sensível, incapaz de matar um
inseto. Doava-se para todo mundo, vivia a dor dos outros. Os empregados de sua casa eram
apaixonados por ela. Entendeu que não era uma pessoa frágil, inferior, desprezível, mas um ser
humano de valor que não sabia defender-se. Por ser muito inteligente, ela mesma concluiu:
- Por isso, essas pessoas não se adaptam ao mundo social, competitivo, inumano, insensível.
Elas possuem um tesouro aberto, que a agressividade das pessoas e os problemas da vida podem
facilmente assaltar.
Marco Polo admirou sua refinada capacidade analítica.
- Parabéns, Anna! As pessoas que têm a síndrome tri-hiper são ótimas para os outros, mas
carrascos de si mesmas. São éticas, singelas, afetivas, mas não têm pele emocional. Excetuando os
casos em que alguém nos fere fisicamente, qualquer ofensa, crítica, rejeição ou decepção só pode
nos ferir se permitirmos. Como disse em sua classe: doe-se, mas não espere muito o retorno dos
outros. Em seguida, Marco Polo começou a explicar que não é necessário que os três pilares
dessa síndrome estejam presentes para as pessoas desenvolverem transtornos emocionais. Em
alguns casos, basta um pilar. Comentou que a prevenção dessa síndrome, realizada pela educação
da emoção, poderia evitar que milhões de pessoas adoecessem. Fitando os dóceis e úmidos olhos
de Anna, acrescentou:
- Não se sinta discriminada nem inferior a ninguém. Você é melhor do que eu em muitos
aspectos.
Anna ficou comovida. Sempre se sentira pequena diante das pessoas e, principalmente, dos
psiquiatras que a trataram. Em alguns momentos, pensava em desistir da sua profissão, em
outros, da própria vida.
A poesia era uma das poucas coisas que a entusiasmavam. Tentando disfarçar suas lágrimas,
indagou:
- Você leu Goethe?
- Admiro a inteligência e sensibilidade argutas dele. - E completou, brincando: - Mas ele foi o
filho preferido da sua mãe.
- Como assim?- perguntou Anna.
- Segundo Freud, o brilhantismo intelectual de Goethe começou pela mãe dele. Freud disse
que os filhos que foram preferidos e valorizados por suas mães se tornam mais otimistas,
vencedores, enfrentam com mais coragem os acidentes da vida.
Marco Polo não percebeu que essas palavras feriram as entranhas de Anna. A relação com sua
mãe fora pautada pela dor. Percebendo algo estranho no ar, ele tentou consertar.
- Mas não concordo com Freud. Ele também foi o preferido de Amalie, sua mãe, mas,
embora fosse um pensador inteligente, seu humor não foi irrigado com otimismo. Por isso, vivia
atormentado com a idéia de morrer antes de Amalie. Minha opinião é que as mães amam todos
os seus filhos e não preferem um ao outro, apenas distribuem sua atenção de maneira diferente,
por serem diferentes suas preocupações com cada um deles.
Anna não suportou. Verteu lágrimas. Tentou esconder a face sentando no banco.
Marco Polo estava confuso. Percebeu que havia algo grave na relação de Anna com a mãe. Não
queria invadir sua intimidade. Apenas colocou suavemente seu braço direito nos ombros dela e
respeitou sua angústia.
Era um entardecer. Os raios solares penetravam no tecido das flores e revelavam a bela
primavera. O ambiente externo contrastava com o mundo de Anna. Depois de alguns momentos
de silêncio, ele disse:
- Desculpe se a feri.
Ela levantou-se e falou subitamente:
- Preciso ir.
Na realidade, ela hesitava entre o afastamento e o desejo de ficar próxima dele.
- Podemos nos ver amanhã? - perguntou Marco Polo inseguro.
- Acho que não.
- Por que não?
Bloqueando temporariamente as palavras de Marco Polo que a encorajaram a resgatar sua autoestima
e lutar contra a doença, ela voltou-se para o epicentro do seu conflito e disse:
- Você não vai gostar de me conhecer. Eu sou uma pessoa muito difícil. Nem eu me entendo.
- Somos iguais! Eu também não me entendo algumas vezes - falou ele com um sorriso.
Então, numa das raríssimas oportunidades, ela abriu o mapa da sua dramática história e, sob
solavancos de soluços, bradou em voz relativamente alta:
- Roubaram minha alegria! Destruíram minha infância sem me pedir licença. Você não
consegue perceber que sou uma fonte de tristeza? O que você espera de mim?
O resgate súbito do passado gerou um volume de tensão que obstruiu o fluxo das idéias de Anna.
Marco Polo mergulhou no silêncio. Esperou que ela se refizesse e continuasse.
- Eu era filha única e pensava que minha mãe me amava e me valorizava mais do que tudo na
vida. Mas quando eu tinha oito anos, escutei um som que jamais saiu da minha cabeça. Ouvi o
estampido de um revólver no quarto dela. Corri para o local e vi a imagem de minha mãe coberta
de sangue em cima da cama. Tentei socorrê-la, pegá-la, mas eu era muito pequena. Apenas
gritava: "Mamãe! Mamãe! Não me deixe!..." Ela morreu fisicamente e eu, emocionalmente.
Ambas falecemos.
Raramente alguém sofreu tanto como a pequena Anna. Antonieta, sua mãe, tinha graves crises
depressivas, mas, apesar das crises, procurava dar à filha o máximo de atenção e carinho que
conseguia. No período entre as crises, brincava com Anna e dizia que ela era a melhor filha do
mundo. Entretanto, as crises aumentaram e a mãe hipersensível tinha períodos de afastamento.
Antonieta dizia algumas vezes para os empregados e na frente da pequena Anna que não
suportava mais viver. Anna chorava e vivia atormentada.
Seu pai, Lúcio Fernández, era um rico industrial. Ele nunca compreendeu e apoiou sua esposa.
O casal tinha freqüentes atritos, às vezes na presença de Anna. Lúcio entendia muito de
matemática financeira e absolutamente nada da aritmética da emoção.
Diferente de Anna e Antonieta, que eram hipersensíveis, Lúcio era um homem frio, calculista,
colérico, que não sabia colocar-se no lugar dos outros. Não amadurecia à medida que seus
cabelos embranqueciam. Repetia os mesmos erros sempre. Era incapaz de enxergar a angústia de
sua esposa. Para ele, a depressão era frescura, uma atitude de quem não tem o que fazer.
Tinha aversão a psiquiatras. Considerava-os os maiores charlatães da sociedade. Na realidade,
tinha medo de enxergar o próprio ser. Apenas uma vez entrou num consultório de psiquiatria
acompanhado de sua esposa. Saiu chamando o psiquiatra de louco.
Lúcio Fernández era um homem de muitas mulheres. Sua infidelidade, aliada à sua postura
agressiva e autocentrada, contribuiu para irrigar a baixa auto-estima de sua esposa e aguçar sua
depressão. Não se casou após a morte de Antonieta. O milionário tinha medo de dividir seu
dinheiro.
Anna nutria profunda mágoa por seu pai, não apenas pela sua falta de afeto, mas porque, à
medida que foi crescendo, começou a entender que ele fizera muito pouco para prevenir o
suicídio de sua mãe. Um pensamento perturbador sufocava-a: de que seu pai facilitara o suicídio.
Antonieta tinha se matado com uma arma que estava no criado-mudo ao lado da cama do casal.
No fundo, Anna sabia que seu pai mantinha uma arma no criado-mudo e outra no carro porque
era desconfiado e inseguro. Tinha uma personalidade paranóica.
- Certa vez, disse ao meu pai que mamãe falava em morrer. Com um ar prepotente, ele
afirmou categoricamente que eu podia ficar tranqüila, pois quem ameaça não faz. Era incapaz de
ouvir os clamores de minha mãe por trás do seu humor triste.
Marco Polo, através da sua fina capacidade de enxergar o que a imagem não mostra e ouvir
aquilo que os comportamentos visíveis não revelam, fez uma pergunta que levou Anna a penetrar
no centro do seu caos emocional.
- Você tem raiva da sua mãe?
Anna sentia mágoa do pai, mas a mágoa que nutria por sua mãe era muito maior. No entanto,
ela negava este sentimento. A mágoa se alojava clandestinamente nos porões do seu inconsciente
e nunca fora superada nas seções de psicoterapia. Seus terapeutas não detectavam este dramático
sentimento, seja pela resistência de Anna em falar sobre o suicídio da mãe, seja porque tinham
receio de entrar nesse árido terreno e não conseguir controlar sua crise. Afinal de contas, Anna
falava em dormir e não acordar mais, em desistir de tudo.
Além da mágoa oculta pela mãe, ela sentia-se envolvida por uma névoa de culpa. Sua mãe
sinalizara que estava querendo morrer e ela sentia que não conseguira protegê-la. Nada é tão
asfixiante para a emoção de uma frágil criança quanto sentir-se culpada pelos atos dos seus pais.
Esses conflitos pautaram o desenvolvimento da sua personalidade. Anna tornou-se insegura,
frágil, com humor cronicamente triste, com medo de enfrentar a vida e assumir seus próprios
sentimentos. Era autopunitiva, tolerava os erros dos outros, mas era implacável com os próprios
erros.
Ela sempre demonstrara compaixão por sua mãe diante dos outros terapeutas. Pela primeira
vez teve coragem de dizer que sentia raiva dela, e não dó. Na realidade, seus sentimentos se
mesclavam.
- Sim. Às vezes tenho raiva dela. Por que me abandonou? O amor que ela sentia por mim era
menor do que o desejo de desistir da vida. Eu fiquei só. Perdi tudo. Perdi o prazer de viver -
falou inconformada. E acrescentou: - Você não disse em seu debate que os que se suicidam
deixam um rastro de dor que se perpetua por décadas? Eu sou um exemplo vivo dos
seus argumentos. Para mim, quem se mata é um grande egoísta. Termina
seu problema e começa o dos outros. Você já sentiu tal solidão?
As lágrimas continuavam a ser vertidas. Anna perdera o que mais amava, não sobraram
pedaços da sua perda. Não tinha o que recolher. Marco Polo ficou profundamente sensibilizado
com sua história. Na infância, ela deveria ter corrido atrás dos pássaros, brincado com suas
bonecas, transitado sem medo pelas vielas da existência, mas o som do projétil e a imagem da
mãe inerte numa cama eram uma peça vil que se repetia sem cessar no palco da sua mente,
contagiando toda a estrutura do seu inconsciente.
Marco Polo sabia que em alguns casos o desenvolvimento da síndrome tri-hiper tinha uma
influência genética. Acreditava que pais deprimidos não transmitem geneticamente a depressão
para seus filhos. Na realidade, o que transmitem é uma tendência para desenvolver a síndrome
tri-hiper, que em alguns casos, se não for corrigida pela educação e pela atuação do eu como
autor da própria história, pode facilitar o aparecimento da depressão e de outras doenças.
Ele acreditava que as causas sociais e psíquicas, como perdas e frustrações, eram muito mais
importantes no desenvolvimento dessa síndrome do que a genética, e nem sempre precisavam
ser intensas. No caso de Anna as causas foram marcantes. Um vendaval destruíra a fase mais
importante da sua vida.
A partir do suicídio da mãe, ela nunca mais acreditou que as pessoas poderiam amá-la
verdadeiramente, e por isso tinha enorme dificuldade de se entregar. O medo da perda era um
fantasma sempre presente. Sentia-se a pessoa mais solitária do mundo. Marco Polo reagiu à sua
indagação:
- Nunca senti a solidão por que você passou, mas de uma coisa estou convicto: quando o
mundo nos abandona, a solidão é suportável, mas quando nós mesmos nos abandonamos, a
solidão é intolerável. Você se abandonou.
Anna ficou abalada com essa frase. Esperava que Marco Polo tivesse compaixão dela, que
ficasse paralisado diante da sua miséria emocional. Embora estivesse profundamente condoído
por sua dor, ele instigou a inteligência dela, levando-a a concluir que realmente havia se
abandonado. Deixara de se amar. Sua solidão tornara-se insuportável. Todavia, ela levantou uma
barreira, como se não conseguisse superar o seu passado:
- Como apostar na vida e amá-la, se quem me gerou suicidou-se?
Então chegou o momento para Marco Polo ajudar Anna mais profundamente. O seu conceito
de suicídio confrontava com o pensamento corrente na psiquiatria e na psicologia.
Ele levantou suavemente o rosto da moça, penetrou em seus olhos e falou solenemente:
- Anna, não existe suicídio!...
Perplexa, ela imediatamente argumentou:
- O que você me está dizendo? Durante anos, procurei entender por que minha mãe morreu e
por que as pessoas desistem de viver. E agora você me diz que não existe suicídio! Não brinque
com meus sentimentos.
- Estou falando sério. As pessoas deprimidas têm fome e sede de viver - ele afirmou
contundentemente.
Então, ela tocou num assunto que era um tabu:
- Não diga isso. Eu também já tentei tirar minha vida uma vez. Tomei cartelas de
medicamentos. O que eu fiz? Não quis me matar? - falou, abalada.
- Não! Você quis matar a sua dor, e não a sua vida. Do mesmo modo, sua mãe não quis
morrer. Na realidade, seu desejo era destruir o humor triste, a angústia que a sufocava.
- Nenhum psiquiatra jamais me disse isso! - Anna exclamou.
- O conceito de suicídio precisa ser corrigido na psiquiatria e na
sociedade em geral. A consciência do fim da existência é sempre uma
manifestação da própria existência. Toda idéia de morte é uma homenagem à vida, pois só a vida
pensa. A idéia de morte não é a atitude onipotente do ser humano traçando seu destino, mas uma
atitude desesperada de tentar destruir o drama emocional que ele não conseguiu superar. Assim,
não existe a idéia pura de suicídio. Toda vez que uma pessoa pensa em se matar, ela não leva em
consideração a consciência do nada existencial. Seu pensamento é uma reação, não para eliminar
sua vida, mas para decepar sua dor. A tentativa de suicídio, portanto, revela não o desejo de
morrer, mas uma fome desesperada de viver.
Anna não entendeu plenamente a dimensão psicológica das idéias de Marco Polo, mas o
pouco que entendeu foi o suficiente para chocá-la, aliviá-la e fazê-la dar um mergulho interior.
Novamente sua inteligência se manifestou:
- Quando pensei em tirar minha vida, um sentimento estrangulava meu ser. Sentia-me num
cubículo sem ar. Uma idéia tentadora passava em minha mente, mostrando que era tão fácil
acabar com tudo aquilo. Mas, na realidade, eu lutava dentro de mim para romper as algemas
dessa prisão. Queria ser livre, respirar, amar, não queria morrer.
Após essa conclusão, Anna mergulhou mais profundamente nos recônditos do seu ser e abriu
as comportas do seu remoto passado. Como se saísse de um ambiente escuro e entrasse numa
sala completamente iluminada, recordou imagens que há anos estavam escondidas em suas
ruínas.
Lembrou de momentos agradáveis em que sua mãe escondia-se atrás dos sofás e das cortinas,
brincando de esconde-esconde. Recordou quando sua mãe tocava piano e ela ficava aos seus pés,
encantada. Lembrou-se de que, por influência da mãe, aprendera a gostar de poesia, e que a
primeira vez que ouvira falar de Goethe foi da boca da própria mãe. Recordou-se ainda de uma
frase que nunca mais havia resgatado: "Filha, eu te amo, nunca te abandonarei."
Pela primeira vez, percebeu que sua mãe não fora egoísta, e sim uma prisioneira da própria
dor. Ela não quisera se matar, mas eliminar sua miséria emocional. A raiva que sentia pela mãe
dela se dissipou. O sentimento de abandono ruiu naquele momento. Resgatou o amor que a mãe
sentia por ela. Então algo sublime aconteceu.
Anna, aos prantos, exclamou:
- Mãe, eu te compreendo e perdôo... Mãe, eu te amo! Você foi maravilhosa.
Em seguida expressou:
- Obrigada, Marco Polo! Um peso saiu da minha alma.
Ela o abraçou suave e profundamente. Apertava-o em seus braços. Em seguida, num lance de
serenidade, comentou:
- Se as pessoas que pensam em suicídio soubessem o quanto têm fome e sede de viver, não se
matariam. Mas usariam essa fome e essa sede para combater tenazmente suas perdas, decepções e
angústias. A idéia de suicídio revela uma fome desesperada de viver e não um desejo de morrer.
Estas palavras têm de ser gritadas e sublinhadas no mundo inteiro.
- O pior cárcere do mundo é o cárcere da emoção, mas ninguém é escravo quando resolve ser
livre. Por enxergar o suicídio por este ângulo, vários de meus pacientes saíram deste cárcere,
extraíram coragem das suas fragilidades e voltaram a acreditar na vida.
Raramente duas pessoas falaram de um ponto que estrangula a tranqüilidade com tanta
suavidade. Como o clima estava leve e agradável, Marco Polo resolveu mostrar uma outra face da
sua personalidade, a face irreverente. Elevando o tom de voz, expressou:
- Não tenha medo da dor, minha princesa, viva a vida com vibração.
- Eu sou muito complicada - ela disse descontraída.
- As mulheres mais complicadas são mais interessantes - ele falou brincando.
Ela desmanchou-lhe os cabelos e fez-lhe cócegas. Sorrindo, ele emendou:
- Cuidado! Você é que corre risco ao meu lado.
- Como assim? - Anna perguntou, surpresa.
- Tenho sangue de aventureiro, a irreverência de um filósofo e o desprendimento de um
poeta. Lembre-se: sou Marco Polo, um andarilho nos solos da vida. Sou explorador de mundos e,
agora, do seu belo mundo.
- Não estou entendendo!
Em vez de lhe dar resposta, Marco Polo subiu no banco da praça sem se importar com os
passantes apressados, declamou uma poesia de braços abertos com uma voz vibrante.
Rememorou os bons tempos.
Minha doce donzela!
Enfrente a tempestade noturna, como os pássaros.
Ao amanhecer, mesmo com seus ninhos derrubados,
Eles cantam sem palco e platéia!
Para eles, a vida é uma grande festa!
Minha querida princesa! Não tenha medo da vida,
Tenha medo de não viver; Não tenha medo de cair,
Tenha medo de não caminhar. Rasgue seu coração,
entregue-se, deixe este aventureiro descobri-la!
Uma pequena multidão parou para ouvir o poeta. Anna ficou vermelha, pois sempre evitara
qualquer exposição diante dos olhos dos outros. Ao terminar a poesia, Marco Polo desceu e deulhe
um beijo prolongado. Ela, trêmula, se entregou. Após beijá-la, várias pessoas aplaudiram.
Algumas senhoras idosas ficaram eufóricas diante da cena romântica. Uma delas, de mais de
oitenta anos, clamou com ternura:
- Agarre este príncipe, minha filha. Está faltando homem no mercado!
Ela entendeu o recado e desta vez ela mesma tomou a iniciativa. Beijou-o ardentemente.
C a p í t u l o 23
Na semana que se seguiu, Anna encontrou-se mais duas vezes com Marco Polo. Seu amor por
ele crescia. Dias depois, ela participou de um seminário sobre síndrome do pânico na universidade.
Não conhecia a grande maioria dos participantes desse seminário.
Um professor fez uma abordagem de que ela não gostou. Comentou que os portadores da
síndrome do pânico são emocionalmente frágeis, não têm autocontrole, desconfiam da opinião
dos seus médicos, giram na órbita da própria insegurança. Por serem frágeis, sob um ataque de
pânico, o mundo desaba sobre eles.
O contato com Marco Polo fez com que Anna tivesse uma percepção mais profunda dos
transtornos psíquicos. Não concordava com a visão pessimista e determinista do professor. Ele
fora incapaz de exaltar as belas características desses pacientes e de mostrar o drama emocional
que eles vivem durante a crise.
Diante disso, teve a coragem de levantar a mão e questioná-lo. Os poucos amigos que a
conheciam admiraram sua ousadia. Nunca a tinham visto manifestar-se em classe.
- Será que esses pacientes não são hipersensíveis e, por possuírem uma consciência acima da
média das limitações da vida e do fim da existência, não ficam propensos aos ataques de pânico?
Quando esses pacientes desconfiam dos médicos que afirmam que sua saúde está ótima, isto é
um sinal de fragilidade ou um grito desesperado de alguém que tem sede de viver e quer espantar
o fantasma da morte?
Após esse questionamento, Anna ficou aliviada. Queria ao menos ser respeitada em seus
argumentos. Seu pensamento deixou os presentes reflexivos, mas o professor não suportou ser
contrariado. Em vez de debater seus argumentos, preferiu sair pela tangente. Foi irônico.
- Você está aqui para estudar psicologia e não filosofia.
A platéia divertiu-se. Marco Polo sabia defender-se quando criticado e ironizado. A chacota
dos outros aguçava seu raciocínio. Anna ainda não tinha tal defesa, não havia reeditado o filme
do seu inconsciente, ainda era uma pessoa hipersensível e hiperpreocupada com sua imagem
social. Sempre fizera um esforço enorme para não errar diante de uma pessoa, que dirá diante de
um público. Agora, na primeira vez em que se manifestava diante de uma platéia, tinha sido
humilhada.
Todos esperavam que ela reagisse diante do deboche do professor. Mas sua voz ficou
embargada, não conseguiu contra-argumentar. Chocada, paralisou-se. As risadas dos presentes
reverberaram em sua mente. Levantou-se e saiu da classe. O clima ficou ruim. Saiu como uma
derrotada.
No outro dia, como era de esperar, não foi à escola. Não saiu de casa e nem da cama. Punia-se
muito. Não conseguia parar de pensar no vexame público. Relembrava continuamente as cenas,
teve raiva do professor e mais raiva ainda de si mesma por não ter conseguido reagir. Entregouse
a uma nova crise.
Marco Polo foi procurá-la na faculdade, mas não a encontrou. Ela ficou ausente por vários
dias. Tentava telefonar, mas Anna estava incomunicável, não queria falar com ninguém. Os
empregados, por conhecerem suas crises, tinham ordens do seu pai para não importuná-la.
Marco Polo estava intrigado: "O que está acontecendo? Por que se recusa a falar comigo? Será
que devo desaparecer de sua vida?"
Nesse ínterim, escreveu uma carta para Falcão. Contou sobre seu relacionamento com Anna e
as suas dificuldades.
Falcão enviou uma carta com pouquíssimas e significativas palavras:
Querido amigo Marco Polo,
Se você está amando uma mulher, lute por ela. Mas saiba que as mulheres são
maravilhosamente incompreensíveis. O dia em que você compreender uma alma
feminina, desconfie do seu sexo...
Ao ler a missiva, ele meneou a cabeça com alegria.
No dia seguinte, Marco Polo reuniu coragem para visitar Anna. Ao chegar na casa dela, ficou
assombrado com o palacete de três mil metros quadrados de construção colonial. Ela era tão
simples, meiga despojada. Não imaginava que fosse tão rica. Havia dez suítes, salão de festas,
cinema e inúmeras outras dependências. O palacete ocupava um quarteirão inteiro.
Os portões eram altos, de ferro fundido, com grades torneadas e lanças espetadas, as janelas
todas em arco, com vidros verdes jateados. O jardim era imenso. Havia muitas flores para
esconder uma jovem tão triste.
Duas arrumadeiras, duas cozinheiras, dois jardineiros e uma faxineira cuidavam da casa, e dois
motoristas serviam Anna e seu pai. Havia seguranças dentro e fora da casa. A maioria das amigas
de Anna não sabia, mas a segurança da moça era garantida por um profissional disfarçado nas
dependências da faculdade.
Após contatar um segurança, o mordomo, Carlos, foi acionado. Alto, calvo e trajando sempre
um paletó branco, Carlos comandava a equipe. Seu olhar era sisudo, distante e desconfiado. O
mordomo parecia um iceberg, duro, frio, impenetrável.
- Gostaria de falar com a Anna.
Da escadaria do palacete, Carlos gritou:
- O senhor tem hora marcada?
- Não, mas sou amigo dela.
- Anna só recebe pessoas com hora marcada.
- Por favor, fale com ela. Provavelmente ela me receberá.
Relutante, o mordomo saiu. Anunciou a visita ao senhor Lúcio Fernández.
O pai, que não respeitava as mulheres e considerava todo homem um aproveitador de sua
filha, mandou dizer que ela tinha saído. Marco Polo desconfiou que o mordomo estava
mentindo, que sequer a avisara.
- Senhor, diga-lhe que minha conversa será rápida, falarei apenas alguns minutos.
- Retire-se, senhor!
Percebendo a insistência do jovem pela janela, Lúcio abriu a porta central, aproximou-se de
Carlos e de lá exclamou:
- Deixe minha filha em paz!
- Desculpe-me, senhor, mas talvez sua filha precise de mim.
- Que arrogância! Quem é o senhor para fazer tal afirmação?
- Sou um amigo.
- Anna tem colegas e não amigos.
- Mas eu insisto, sou seu amigo.
- Qual é seu nome?
- Marco Polo.
- Qual sua profissão?
Marco Polo hesitou em dizer, mas foi honesto:
- Sou psiquiatra.
- Psiquiatra!? Era só o que me faltava. Um psiquiatra tentando seduzir minha filha. Ninguém
o chamou aqui.
- Estou aqui como amigo e não como psiquiatra - disse Marco Polo irritado.
- O senhor está sendo antiético. Retire-se!
- A sua filha está num casulo. Precisa tornar-se sociável, libertar-se, ser feliz.
O prepotente empresário não gostou.
- Um mísero doutorzinho querendo me dar lição de moral. Saia da minha casa, senão vou
chamar a polícia! - disse taxativamente o empresário, e entrou sem se despedir.
- E não apareça mais aqui! - completou o coronel Carlos. Dois seguranças se aproximaram
ameaçando Marco Polo.
Parecia que todo mundo ali, à exceção de Anna, vivia num exército.
O jovem foi embora chateado. Começou a pensar que Anna até que era saudável, vivendo
num quartel daqueles. Era quase impossível não ser doente naquele ambiente. Começou também
a ponderar se valia a pena investir nesse romance.
Ele já tivera outras namoradas. A última era extremamente controladora, ciumenta. Não
conseguia respirar sem que ela notasse. Anna, ao contrário, vivia alienada, trocava-o por seus
conflitos. Marco Polo viveu o velho dilema da existência: sua razão pedia para ele se afastar, sua
emoção pedia para ele aproximar. Antes de desistir, precisava vê-la pela última vez.
No outro dia voltou à casa de Anna, certificando-se antes por telefone se o pai dela estava
ausente. Além disso, precisava vencer o coronel Carlos. Lembrou-se do passado. Usou um
disfarce, não tão ridículo como nos tempos de Falcão, mas não menos bizarro. Cabelos
espetados, cavanhaque preto, óculos escuros. Parecia um roqueiro amalucado. Carlos apareceu
após a insistência do segurança.
Antes que ele abrisse a boca, Marco Polo falou com uma voz aguda e alta:
- Carlos, como está?
- Como o senhor sabe meu nome?
- Como sei? Lúcio me disse. Creio que você me conhece - gritou.
- Não, senhor! - falou inseguro o mordomo diante da potência da voz do estranho.
- Nunca viu esta bela imagem nos jornais?
- Não.
- Que absurdo! Os mordomos não lêem mais jornais. Chame urgente o Lúcio.
- O Dr. Lúcio não está, senhor.
- O quê? Não está? Já não se fazem pais como antigamente. Vamos, preciso fazer a consulta
urgente.
- Que consulta, senhor?
- Consulta da sua filha! Lúcio suplicou que eu viesse aqui. Sou um especialista em transtornos
intestinais.
- Desculpe-me, mas ele não me avisou.
- E precisa avisar! O grande Lúcio não manda mais nesta casa! Se não abrir essa porta agora,
vou embora. E se sua filha piorar, o senhor será o responsável.
Carlos ficou inseguro e Marco Polo emendou:
- Aliás, o senhor está muito pálido. Olhe só essas manchas no seu rosto. Deixe-me ver de
perto.
Apesar de autoritário, Carlos era um hipocondríaco, vivia com mania de doenças. Ficou
vermelho. Passou a mão no rosto, a cabeça calva começou a suar.
- O caso parece grave. O senhor deve estar fazendo um sério tratamento, não?
- Não, senhor, não estou em tratamento. Mas o que o senhor acha que eu tenho? - perguntou
o mordomo timidamente.
Marco Polo tirou o estetoscópio, colocou-o sobre a barriga de Carlos e, para brincar um
pouco, colocou também sobre sua cabeça, dizendo:
- Hum! Hum! Não se preocupe, porque essa doença não mata. Tome este pequeno remédio
agora. Após consultar Anna, conversaremos.
Deu um laxante para o mordomo. Marco Polo foi para o quarto de Anna e o ditador, para o
"trono" do vaso sanitário.
O quarto era enorme, mas gélido e escuro. Tinha cerca de sessenta metros quadrados. Anna
estava deitada, mas acordada. Marco Polo tirou o disfarce, aproximou-se vagarosamente da
cama, sentou-se ao seu lado. Ao ouvir a voz do rapaz, ela se assustou, mas não se levantou nem
o cumprimentou. Ele tentou animá-la.
- Anna, o que está acontecendo com você?
Ela permaneceu muda.
- Sou seu amigo. Fale comigo! - Ela colocou o travesseiro sobre a cabeça.
- Tudo bem, Anna, você tem o direito de não falar comigo. Se esta é a sua escolha, vou
desaparecer da sua vida.
Levantou-se e começou a se retirar. Quando ele estava no meio do quarto, ela bradou.
- Eu não disse que sou complicada?
Em vez de poupá-la, ele comentou:
- Anna, o problema não é ser complicada, o problema é complicar a vida.
- Esqueça-me! É melhor para você.
Indignado, ele disparou uma frase cortante:
- O problema não é a doença do doente, mas o doente da doença.
Ela tirou o travesseiro do rosto e perguntou:
- O que você quer dizer com isso?
- O problema é seu eu, sua capacidade de decidir, e não sua doença Você teve motivos para
ser deprimida. Mas insiste em ser doente.
- Eu não desejo ser doente!
- Não deseja conscientemente, mas inconscientemente você deseja ficar na platéia, não tem
coragem de subir ao palco e dirigir a peça da sua vida. Anna, você é forte e magnífica, saia do
coitadismo!
- Eu não sou coitada!
Marco Polo mesclava elogios com críticas positivas, pois tinha plena consciência de que não
era fácil vencer os transtornos psíquicos. Sabia que os conselhos vazios não adiantavam, era
necessário ser um artesão da psique.
- Então, por que vive esperando que as pessoas a aprovem ou tenham compaixão de você?
Fiquei sabendo que brilhou no seminário, mas não suportou ser confrontada.
Anna permaneceu muda, e ele continuou:
- Você é inteligente, mas autopunitiva, não admite falhar, ser zombada ou criticada.
Schopenhauer disse que não deveríamos basear nossa felicidade pela cabeça dos outros. Você se
esqueceu de que não deve esperar os aplausos dos outros para ser livre!
Anna ficou chocada com essas palavras. Não podia fugir delas.
- Eu sou uma estúpida!
- Também sou às vezes. Mas lute por sua saúde psíquica! Recorde! Você tem fome de viver!
Não se entregue.
- Há algo que me amordaça, que sufoca minha alma. Eu sei que preciso lutar, mas não
consigo.
Diante disso, Marco Polo citou um famoso escritor:
- "Não basta saber, é também preciso aplicar; não basta querer, é preciso também agir."
- Goethe! - ela reconheceu com alegria.
- Sim, Goethe. Não basta lê-lo, é preciso aplicar suas idéias.
Anna ficou desconcertada. Toda vez que tinha crise, seu pai, em vez de encorajá-la a enfrentar
seus problemas, a incentivava a fugir deles. Pedia para ela não ir à escola quando estava
aborrecida, aconselhava-a a trocar de amizades quando ela se decepcionava, a mudar de ambiente
quando se perturbava. Tentava superprotegê-la. Queria compensar a ausência da mãe, mas sua
proteção era doentia, alimentava a fragilidade da moça, destruía sua auto-estima.
As palavras de Marco Polo a fizeram perceber que sempre tinha feito a pior escolha: esconderse.
Percebendo sua interiorização, ele acrescentou:
- Dê as costas aos seus problemas, e eles se tornarão predadores e você, a caça. Inverta essa
relação. Lembre-se da poesia: "Não tenha medo da vida, tenha medo de não viver. Não tenha
medo de cair, tenha medo de não caminhar..." Você é uma pessoa corajosa, já começou até
a brigar em classe - falou brincando, e fechou seus argumentos com essas palavras: - Ninguém é
digno da segurança se não usar as suas fragilidades para alcançá-la.
Anna levantou-se subitamente. Num sobressalto, disse:
- Espere-me lá fora.
Surpreso, ele saiu.
Ela penteou-se, pintou-se, passou base em suas olheiras, vestiu um belíssimo vestido azul-claro
com decote em V. Depois de demoradíssima meia hora, saiu. Marco Polo não acreditou no que
via. Ficou surpreso. Ela estava linda, charmosa, sensual. Curioso, perguntou:
- Você vai a alguma festa?
- A vida é uma festa! - ela afirmou alegremente.
A partir desse momento, Anna deu um grande salto em direção à sua liberdade. Nunca mais
foi a mesma. Passou ainda por momentos difíceis, chorou não poucas vezes, deprimiu-se em
alguns momentos, mas não se submetia mais ao seu cárcere interior. Aprendeu a fazer das suas
quedas e das suas falhas uma oportunidade para crescer. Resolveu sair de peito aberto para a
vida.
Marco Polo tomou-a pelo braço e saíram. Quando estavam para abrir a porta da sala, Carlos
gritou:
- Doutor! Doutor!
Para espanto de Anna, ele rapidamente colocou o cavanhaque postiço e os óculos escuros e
desajeitou o cabelo.
- Pois não, Sr. Carlos!
- Não paro de ter diarréia, doutor! - disse, pálido.
- Excelente notícia! O senhor está botando para fora todos os seus vermes.
- Que vermes são esses?
- Orgulhus lumbricoides. Sua cabeça, ou melhor, sua barriga está cheio de Orgulhus
lumbricoides.
Anna morria de rir.
- É grave, doutor? - perguntou o mordomo esfregando a barriga, querendo novamente ir ao
banheiro.
- Não! Tome bastante líquido. Sente-se com bastante humildade no vaso, concentre-se e verá
que em breve os seus vermes o deixarão.
E foram embora. Carlos ficou felicíssimo.
Quando se afastavam da casa, Marco Polo disse:
- Um dia terei de me retratar com Carlos e pedir-lhe desculpas.
- Não se preocupe. Os empregados não o agüentam. Quem dera o orgulhus do Carlos fosse
eliminado.
A noite estava começando e prometia ser uma das mais encantadoras. Sempre reprimindo
seus comportamentos, Anna nunca tinha corrido nas ruas e brincado de se esconder em público.
Marco Polo fez questão de quebrar sua rotina. Queria libertar sua espontaneidade, libertar a
criança que se escondia dentro dela e que nunca pudera respirar. Os dois corriam um do outro e
brincavam como adolescentes no meio da multidão. Ela se envolveu no clima e deixou de se
importar com os olhares dos passantes. Era a sua história, só sua, tinha de vivê-la intensamente.
Ele estava sem uma máquina fotográfica, mas, imitando uma com as mãos, pedia que ela
fizesse poses. Clicava sem parar a câmera imaginária. As pessoas trombavam uma nas outras ao
contemplá-los, embriagados de alegria. Ela corria para os braços de Marco Polo e ele girava o
corpo dela. Anna começou a entender que a verdadeira liberdade começa de dentro para fora...
C a p í t u l o 24
A afinidade entre Marco Polo e Lúcio Fernández foi apenas suportável. O milionário evitava
qualquer aproximação. Torcia para que o namoro não evoluísse. Algumas vezes tomou atitudes
para que Anna rompesse a relação. Gritou, pressionou, fez chantagens, mas não adiantou. O
namoro prosseguiu. Todavia, Lúcio Fernández não se deu por vencido.
O relacionamento entre Marco Polo e Anna, construído pouco a pouco, tornou-se sólido
demais para ser abalado por manipulações. Foi tecido com alegria, descontração, diálogos
prolongados e comportamentos que fugiam do trivial.
Passados alguns meses, Anna havia reeditado uma parte significativa dos conflitos arquivados
em seu inconsciente. Paulatinamente deixou de viver a dor dos outros e esperar excessivamente a
contrapartida do retorno. Tornou-se bem-humorada, estável, protegida, decidida, capaz de lutar
por seus sonhos. O convívio social já não era uma fonte de medo e frustrações. Assim, teve
segurança para interromper o uso de antidepressivos.
Anna se formou em psicologia e começou a estagiar num imenso hospital do coração, cujo
diretor era amigo de seu pai. Ela e outras psicólogas realizavam atendimento aos pacientes
submetidos a cirurgias cardíacas, principalmente aos candidatos a transplantes.
Marco Polo freqüentemente a surpreendia com um gesto, um elogio ou uma atitude inesperada.
Às vezes, chegava subitamente com um buquê de flores e o entregava no corredor do hospital.
Beijava-a, dizia umas palavras e saía. Fazia de um minuto uma eterna afetividade. Para eles,
pequenas reações tinham grande impacto.
Certa ocasião, no começo do estágio, algumas colegas de Anna viram Marco Polo fazer uma
pequena declaração de amor, tendo numa das mãos um botão de rosa vermelha.
Ficaram surpresas com a atitude dele. Para elas, esse romantismo havia sido eliminado nos
tempos modernos. Uma das colegas, envolvida por um sentimento de inveja, comentou
rispidamente:
- Seu namorado é um pouco estranho. Não me parece muito normal.
- Não é possível ser normal quando se ama - Anna rebateu.
Uma enfermeira mal-resolvida nas relações afetivas e que sempre se envolvia com namorados
autoritários e dominadores perguntou:
- Dar flores no início do dia não é coisa de neurótico?
- Não sei. Mas sei que ele trata de muitos... - Elas não entenderam.
- Vocês não conhecem o namorado de Anna? - disse uma psicóloga que o conhecia.
- Não!
- Ele é o famoso Marco Polo. Uma das pessoas mais inteligentes que já conheci.
Caladas, adentraram pelo imenso edifício. Elas não entendiam que a inteligência e o sucesso
profissional podiam e deviam ser combinados com a sensibilidade e leveza do ser.
Anna se tornou querida desde as primeiras semanas no hospital do coração. Aprendeu com
Marco Polo a cumprimentar alegremente os funcionários, em especial os mais simples, a brincar
com os pacientes e a entrar sem receio no epicentro da insegurança deles. Aprendeu a ser
vendedora de sonhos e de esperança num ambiente em que a expectativa de morte contagiava as
pessoas.
O casal saía com freqüência, e cada encontro era especial, mas um deles foi inesquecível. Certa
noite, Marco Polo manifestou a intenção de dar-lhe um presente marcante. Saiu do perímetro
urbano e levou-a para o campo. Parou o carro e convidou-a a sair.
Pegou em suas mãos e foram andando pela estrada. Enquanto caminhavam, chamou a atenção
de Anna para a harmonia da natureza.
- Todos os dias as flores exalam perfume, a brisa toca as folhas, as nuvens passeiam obscuras,
mas não prestamos atenção. Ouça a serenata de grilos! É um magnífico show incessante.
Vendo a sua maneira simples de encarar a vida, ela perguntou:
- O que é a felicidade para você?
Surpreendendo-a, ele a assustou, dizendo:
- A felicidade não existe, Anna...
Apreensiva, ela subitamente inquiriu:
- Você me amedronta! Qual é a esperança para os que vivem na miséria emocional? O que
posso esperar da vida, se tive tanta riqueza exteriormente e tão pouco dentro de mim?
Marco Polo completou:
- A felicidade não existe pronta, não é uma herança genética, não é privilégio de uma casta ou
camada social. A felicidade é uma eterna construção.
Respirando aliviada, ela indagou:
- Como construí-la?
Como um contador de histórias que passeia pela psicologia, ele fitou seus olhos e discorreu:
- Reis procuraram aprisionar a felicidade com seu poder, mas ela não se deixou prender.
Milionários tentaram comprá-la, mas ela não se deixou vender. Famosos tentaram seduzi-la, mas
ela resistiu ao estrelato. Sorrindo, ela sussurrou aos ouvidos de cada ser humano: "Ei! Procureme
nas decepções e dificuldades e, principalmente, encontre-me nas coisas anônimas da
existência." Mas a maioria não ouviu a sua voz, e os que a ouviram deram pouco crédito.
- Que lindo! Fale mais sobre o que é ser feliz, meu imprevisível poeta.
- Ser feliz é ser capaz de dizer "eu errei", é ter sensibilidade para falar ”eu preciso de você", é
ter ousadia para dizer "eu te amo".
Lembrando de seu pai, ela expressou condoída:
- Muitos pais morrem sem jamais ter coragem de dizer essas palavras aos filhos. Esquecem das
coisas anônimas.
- É verdade. Tropeçamos nas pequenas pedras e não nas grandes montanhas.
Olhando para ele num clima de terno amor, ela falou de alguns temores reais e não frutos de
sua doença. Como amava a poesia, também usou a inspiração.
- Obrigada por você existir. Mas tenho medo de que o nosso amor se evapore como o orvalho
ao calor do sol.
- Em alguns momentos, eu a decepcionarei, em outros você me frustrará, mas, se tivermos
coragem para reconhecer nossos erros, habilidade para sonharmos juntos e capacidade para
chorarmos e recomeçarmos tudo de novo tantas vezes quantas forem necessárias, então nosso
amor será imortal.
- Eu o amo como nunca amei alguém! - ela disse, tentando aproximar-se para beijá-lo. Marco
Polo subitamente deu um passo para trás e elevou o tom de voz:
- Espere um pouco, mocinha! Você entrou sutilmente na minha vida, foi ocupando espaços e,
sem me pedir licença, invadiu meu coração. Portanto... - fez uma pausa prolongada.
- Fale! Estou ansiosa.
- Aceita casar-se comigo, princesa? - disse sorridente, abaixando a cabeça num gesto de
reverência.
Beijaram-se. Dois mundos, duas histórias se cruzaram. Amoroso, ele cobriu seus olhos, sua testa
e seu queixo de pequenos beijos.
Em seguida, quis dar algo forte, único, inesquecível, que marcasse aquele momento e fosse
capaz de simbolizar tudo o que ele sentia por ela e revelasse o tipo de homem que ela encontraria.
Um homem incomum tinha de dar um presente incomum.
A lua estava minguante e o céu límpido. Abrindo os braços, ele perguntou:
- Anna, olhe para o alto. Observe o teatro incompreensível do universo. O que você vê?
Curiosa, ela respondeu:
- Vejo lindas estrelas.
- Escolha uma estrela.
Ela sorriu. Havia milhares de estrelas invadindo sua pupila. Anna escolheu uma estrela
brilhante do lado esquerdo do firmamento.
- Escolho aquela - disse, apontando.
- De hoje em diante aquela estrela será sua. Mesmo quando seu céu estiver coberto pelas
tempestades, aquela estrela estará brilhando dentro de você, mostrando os caminhos que deve
seguir e revelando o meu amor.
Anna flutuou. Já ganhara presentes caríssimos, colar de esmeraldas, anéis de diamantes, carros
último tipo, ações na bolsa de valores, apartamentos, mas jamais se esqueceu de que ganhara uma
estrela. Percebeu claramente que as coisas mais importantes da vida não podem ser compradas.
Era riquíssima, mas sempre vivera na miséria.
Ela guardou no recôndito do seu ser o significado da estrela que Marco Polo lhe deu. Quem
tem uma estrela em seu interior não precisa da luz do sol para se conduzir.
Marco Polo tinha a profundidade de um pensador e a sensibilidade de uma criança. Não sabia,
mas também precisaria de uma estrela interior. Suas idéias teriam alcance mundial. Lutaria pelos
direitos humanos, tumultuaria ambientes e sociedades, atravessaria vales e planaltos e o céu
desabaria sobre ele. Para sobreviver, precisaria enxergar com os olhos do coração.
C a p í t u l o 25
Anna anunciou ao pai sua intenção de se casar com Marco Polo. Lúcio tentou impedir de todas
as formas. Fez de tudo para que ela se apaixonasse por alguém de sua classe social e poder
financeiro, mas não teve êxito. "Imagine, um psiquiatra em minha família, vigiando meus passos.
Não suportarei", pensava. "Preciso de alguém que multiplique meus bens e não que aponte meus
problemas", refletia.
Tentou mais uma vez seduzi-la:
- Filha, não é por causa do dinheiro, mas há filhos de banqueiros e de industriais fascinados
por você. São pessoas do seu ambiente e do seu meio. Você se sentirá menos deslocada. Dê uma
chance para eles.
- Já namorei alguns deles e aumentei meu vazio.
- Que vazio? O que esse rapaz tem de especial?
- Marco Polo me ama intensamente. Além disso, ele ama o ser humano, é preocupado com a
humanidade.
- Não seja ingênua, minha filha! As pessoas só são preocupadas com o próprio bolso.
- É uma pena que você pense assim, papai. Quem vive para si mesmo só enxerga segundas
intenções nos outros.
Ele resmungou, mas, antes que rebatesse, ela perguntou:
- Você já se apaixonou por alguém?
Lúcio claudicou. Nunca tivera uma explosão afetiva, nem pela mãe de Anna. Nos últimos anos,
só desfilava com mulheres bem mais jovens, algumas famosas, mas não amava ninguém. A única
coisa que movimentava sua emoção era aumentar sua grande fortuna. Titubeando, respondeu:
- Bom, não sei. Acho que sim.
- Quem ama, não tropeça no "achismo". O amor é a única certeza da existência, papai. Se
nunca amou alguém, nem minha mãe, jamais entenderá o que sinto.
Lúcio saiu desconcertado. Anna realmente estava diferente. Ele perdera o domínio sobre ela.
Inconformado, dias depois fez mais uma tentativa. Disse que estava comprando uma casa na
Inglaterra, conseguiria para ela um trabalho num excelente hospital e uma vaga para fazer
doutorado em Cambridge.
- Você não precisa terminar seu namoro com Marco Polo – disse com esperteza. - Será bom
para o próprio futuro de vocês que continue seus estudos e se prepare melhor profissionalmente.
Ela não aceitou.
- Pai, a vida inteira esperei que você se preocupasse realmente comigo, que conversasse sobre
nossas vidas.
- Eu trabalho para você, minha filha. Tenho feito tudo ao meu alcance para fazê-la feliz. Doulhe
as melhores roupas de grife. Você viaja duas vezes por ano, de primeira classe, para fora do
país. O limite do seu cartão de crédito internacional é de 100 mil dólares. E qual é a jovem da sua
idade que tem um Mercedez conversível na garagem e um motorista à sua disposição?
- Você me deu muitas coisas, papai, mas esqueceu a mais importante.
- Qual? - ele perguntou indignado.
- Esqueceu de me dar a si mesmo. Não conheço seus sonhos, seus temores, suas lágrimas.
Somos dois estranhos vivendo na mesma casa - falou, começando a chorar.
Abalado, ele tentou evitar o clima emocional.
- Filha, você é a rainha desta casa.
- De que adianta ser uma rainha presa num palácio, vigiada por seguranças e com um pai que
só vive para o trabalho?
Lúcio emudeceu, não sabia contrapor-se a essas verdades. Anna, então, tocou num assunto
que nunca havia tratado com o pai.
- Pai, nós nunca falamos sobre a mamãe. Quem não dialoga sobre seu passado não o sepulta
com maturidade, perpetua as suas feridas. A morte da mamãe é um túmulo aberto em nossos
corações. Você nunca teve coragem de conversar comigo sobre sua doença e as causas que a
levaram a tirar sua vida.
Lúcio ficou paralisado, sem reação. Não conseguia organizar as idéias. Este assunto era um
tabu. Na casa dos Fernández até os empregados estavam proibidos de comentá-lo. O quarto que
fora do casal vivia trancado, somente a faxineira e a arrumadeira entravam lá uma vez por
semana. Lúcio pensou várias vezes em mudar de casa, mas seu palacete era belíssimo, uma
mansão única, embora triste. Acabou apenas mudando de quarto.
Como o pai não se manifestava, Anna, lembrando-se da pergunta fatal que Marco Polo lhe
fizera sobre sua mãe, também fez uma pergunta fatal para seu impenetrável pai. Ansiava ajudá-lo.
- Você tem sentimento de culpa pela morte da mamãe, papai?
- Culpa? Eu? Que absurdo! Não me acuse!
- Não estou acusando, papai, estou perguntando. Estou pedindo para você olhar para seu
interior sem medo.
As reações súbitas e eloqüentes de Lúcio indicaram que a pergunta tinha mexido com os
porões da sua mente. Procurando desesperadamente evitar o contato com o espelho da sua alma,
ele olhou para o relógio e disse resolutamente:
- Tenho um compromisso importante. Preciso ir.
Percebendo que ele entrara no desconhecido terreno da própria sensibilidade, ela insistiu:
- Espere! Papai, os grandes homens também choram...
Os olhos dele lacrimejaram. Um acontecimento raro para quem não se permitia a doce e
aliviadora experiência do choro. Sofria muito, tinha insônia e períodos de angústia, mas negava a
dor. Suas lágrimas sempre ficaram submersas sob seus rudes comportamentos.
Ao perceber que elas tinham saído da clandestinidade e subido ao palco dos seus olhos,
rapidamente tentou escondê-las. Não admitia que um espectador contemplasse sua fragilidade,
pois somente a glória podia ser admirada. A pedra de gelo da sua emoção estava derretendo, mas,
antes que o sentimento irrigasse sua inteligência com afetividade, ele se esquivou.
- Depois conversaremos sobre os grandes homens... - e saiu apressadamente, sem mostrar a
face e sem dar chance para a filha continuar o diálogo.
Lúcio Fernández evitava todas as conversas e situações que o remetessem à interiorização, não
se permitia crescer. Jamais reconhecera um equívoco, jamais pedira desculpas nem ajuda emocional.
Era um homem doente que contribuía para formar pessoas doentes.
Tinha algumas características respeitáveis desde que o assunto fosse números e dinheiro. Era
empreendedor, arrojado e perspicaz. Sabia investir em novos projetos e farejar por onde
caminhava a economia mundial, mas não tinha qualquer noção de por onde caminhava sua
qualidade de vida.
Lúcio tinha oito empresas, nas quais era sócio majoritário.
Elas empregavam 11 mil funcionários. Entre suas empresas havia um banco, uma indústria de
computadores, uma fábrica de suco de laranja e mais recentemente uma indústria farmacêutica.
Além disso, tinha participação minoritária em dezenas de outras empresas. Gostava de investir
na Bolsa de Valores, comprar ações das empresas de tecnologia de ponta que se tornariam
vedetes no mercado globalizado. Na maioria das vezes, acertava.
Estava listado na revista Fortune como o 83º homem mais rico do planeta. Em seu país era o
42º da lista. Sua fortuna girava em torno de quatro bilhões de dólares. Todo ano, o maior prazer
de Lúcio era melhorar sua classificação nas duas listas. O poder e o prestígio gerados por essas
listas tornaram-se sua droga. Pensava nelas obsessivamente durante todo o ano.
Marco Polo não sabia o quanto seu futuro sogro era rico. Nem Anna tinha essa noção, pois
era desligada, desapegada. Os dois nunca falaram sobre o dinheiro de Lúcio.
Por subir nos bancos das praças e fazer poesias, ter uma explosão emocional com as pequenas
coisas, cuidar dos feridos da alma, romper paradigmas e confrontar preconceitos, Marco Polo
pressentia que o dinheiro de Lúcio poderia ser um grande problema para ele e Anna. Queria ser
riquíssimo em seu âmago. Rejeitava ser massificado pelo sistema social.
Ansiava fazer da sua história uma experiência única, exultante, em que cada dia fosse um novo
dia. Almejava incluir Anna nesse projeto existencial, mas preocupava-se com as dificuldades que
ela atravessaria ao seu lado. E tinha razão. Por isso, questionou-a:
- Anna, o sofrimento humano me perturba. Um dia vou sair do meu consultório e me dedicar
aos grandes temas sociais. Desde meu primeiro ano de faculdade de medicina este desejo me
domina. Viver comigo poderá ser muito inseguro. Temo por você. Com seu pai, você não
correrá riscos.
- Mas não terei aventura!
- Com ele, você terá proteção.
- Mas não terei paz interior!
- Com ele, você terá o melhor padrão de vida.
- Mas não terei conforto!
O rapaz ficou pensativo. E, antes que proferisse outra frase, ela acrescentou:
- Marco Polo, às vezes acho que o conheço muito pouco, mas o pouco que conheço me dá a
certeza de que você é a minha escolha. Pressinto que ao seu lado meu amanhã será imprevisível.
Mas o amanhã não existe - disse sorrindo.
Beijaram-se. Ao afastar os lábios dos dele, ela inclinou um pouco a cabeça e brincou:
- Mas, por favor, quebre menos a rotina e arrume menos problemas.
- Não consigo - ele afirmou com alegria. E não conseguia mesmo.
Passada uma semana, Anna e Marco Polo procuraram o poderoso Lúcio para marcar a data do
casamento. Os transtornos foram inevitáveis.
- Vocês são precipitados! Deveriam esperar mais tempo – retrucou o pai.
Marco Polo insistiu:
- Não há o que esperar, nós nos amamos.
Então, sem delicadeza, Lúcio comentou:
- Amor! Amor é um interesse disfarçado.
- Papai, não fale assim! Eu amo Marco Polo!
Não havendo como impedir o casamento, Lúcio tentou bloquear radicalmente o golpe do
pretendente. Não queria que Marco Polo tivesse acesso às suas posses.
- Só aceito que você se case com Anna se for com separação total de bens!
Anna, indignada, retrucou:
- Sou eu quem decide isso, papai!
Marco Polo, intrépido, interferiu, dizendo:
- Pois eu só me caso com sua filha se levar toda a sua fortuna!
Anna se espantou. Lúcio levantou-se irado com a petulância dele. Esbravejando, bradou:
- Está vendo, minha filha? Eu lhe disse que este rapaz era ambicioso! Mostrou a verdadeira
cara! Caia fora enquanto é tempo!
Em seguida, olhou para Marco Polo e acrescentou:
- Jamais você tocará em minha fortuna. Há um batalhão de advogados de olho em você.
Anna estava chocada com o rumo da conversa. Marco Polo levantou-se e confirmou:
- Sim! Sou ambicioso. Só me caso se levar toda a sua fortuna, pois para mim sua única fortuna
é Anna. O resto não tem valor. Não quero um tostão do senhor.
Anna ficou deslumbrada, nunca fora tão valorizada. Seu intratável pai caiu do pináculo do seu
orgulho.
O casamento foi marcado para três meses depois. Fariam um casamento civil em público e,
posteriormente, o religioso, em particular. O religioso seria ecumênico e contaria apenas com
algumas pessoas, em especial o amigo de Deus - Falcão.
Os pais de Marco Polo, Rodolfo e Elisabete, moravam em outro estado e estavam felizes com
o casamento do filho. Rodolfo vivia com dificuldades financeiras. Era um comerciante que
gostava de ajudar as pessoas, mas não conseguia cobrar dos que lhe deviam. Sociável, afetivo,
bem-humorado, gostava de ter longas conversas com os amigos.
Elisabete era descendente de uma família rica. Seus avós foram latifundiários, grandes
proprietários de terra. Os pais dela viveram de forma nababesca. Tinham os melhores carros, as
maiores casas, as mais belas roupas. Elisabete vivera uma vida regalada na juventude. Mas seus
pais, como seus tios, dissiparam a herança. Foi-se o dinheiro, ficaram as jóias e permaneceu a
pose. Era uma mulher recatada, de gestos comedidos e de poucos amigos. Apesar da sua
ambição, era uma mulher de fibra, batalhadora.
Os pais de Marco Polo não tinham recursos para contribuir com a festa. Lúcio Fernández
tomou a frente. Disse que fazia questão de dar a maior festa para Anna. O jovem casal recusou o
luxo. Lúcio, então, afirmou que faria um evento simples, capaz de combinar com o estilo de vida
dos noivos. Mentiu. Sigilosamente contratou o melhor bufê da cidade. Alugou para a festa o salão
nobre do mais imponente hotel cinco estrelas, do qual era sócio, e mandou preparar uma decoração
requintada.
A festa não tinha a cara da noiva, mas do seu pai. Sob o controle de Carlos, o mordomo, e de
uma dúzia de funcionários das empresas de Lúcio, fizeram secretamente não apenas os
preparativos do casamento, como também uma enorme lista de convidados. A maioria não tinha
relacionamento com Anna.
Lúcio convidou grandes empresários, celebridades, deputados, senadores, o governador do
estado, ministros, o presidente do país. O bilionário era um homem muito influente.
Gastou mais de 500 mil dólares no evento, uma quantia irrisória para alguém tão rico. O que
era para ser uma simples festa tornou-se o maior acontecimento do ano. Colunistas sociais de
jornais e revistas foram convidados para cobrir o evento. Ocupados com o intenso trabalho,
Marco Polo e Anna não perceberam o movimento em torno do seu casamento. Carlos e sua
equipe foram eficientes.
A magnitude da festa não objetivava apenas satisfazer o ego de Lúcio ou expressar sua
megalomania usando o poder financeiro para encantar as pessoas. Desejava realmente premiar
sua filha. A seu modo, ele a amava. Além disso, procurava diminuir a enorme dívida que tinha em
sua consciência. Nos raros momentos de lucidez, atormentava-se com a idéia de ter abandonado
as duas mulheres de sua vida: a esposa e a filha.
Queria compensar Anna pelos erros que cometera e por seu passado deprimente. Como não
aprendera a falar a linguagem da emoção, falou a única linguagem que conhecia - a do dinheiro.
Imaginava que uma festa memorável poderia redimi-lo.
C a p í t u l o 26
Enfim, o grande dia! Marco Polo chegou no salão uma hora antes de Anna e ficou espantado
com a presença de tantos estranhos. Assustou-se, pensando que entrara no ambiente errado.
Havia cinco seguranças trajados a caráter identificando as pessoas e checando a lista.
Carlos tinha dito aos seguranças que havia uma lista oficial, a de Lúcio, e outra, com o nome de
algumas outras pessoas: os convidados de Marco Polo e Anna, dos quais deveria exigir-se apenas
a identificação e o convite. Os seguranças acharam estranho haver duas listas, mas ordens são
ordens. Marco Polo se identificou. Pelo nome o reconheceram.
- Parabéns pela grandiosa festa! - disseram os seguranças.
O rapaz apenas movimentou levemente a cabeça em agradecimento e entrou. Os lustres
cintilantes, os tapetes persas espalhados pelo chão, as dezenas de buquês de flores distribuídos em
múltiplos locais saltavam aos olhos. Havia mais de duzentos e cinqüenta mesas, todas ricamente
decoradas, com taças de cristal francês. Vinhos das melhores safras seriam servidos. As festas de
Lúcio eram famosas, ele não poupava esforços para agradar os convidados. Mas esta era singular.
O psiquiatra pensador, poeta, desprendido, destemido, que tinha coração de andarilho, ficou
embaraçado. Marco Polo não acreditava no que via. O que mais o espantava era a presença dos
estranhos. Havia mais de setecentos convidados e ele conhecia menos de 10% deles. Tentava
cumprimentar com a cabeça os presentes, mas eles não respondiam. Não o conheciam, não sabiam
que era o noivo. Não estavam ali por causa dele.
Havia mais de sessenta garçons servindo freneticamente os comensais. Uma equipe com trinta
seguranças vestidos de terno azul-marinho transitava pelo salão.
Ao encontrar Lúcio, preferiu ser mais amigo do silêncio do que das palavras. Sabia que
qualquer crítica redundaria em discussão, o que estragaria o momento sublime. Apenas pensou:
"Realmente este homem não gosta de mim!" Sabia que Anna desconhecia os preparativos do pai.
Lúcio foi receber pessoalmente alguns convidados especiais. Levou Marco Polo consigo. Ele
se deixou levar.
- Senhor governador, primeira-dama. A festa lhes pertence - disse radiante. - Ah, este é o meu
futuro genro - apresentou sem muita espontaneidade.
Assim, ambos cumprimentaram cerca de vinte personalidades, entre as quais alguns
riquíssimos industriais e banqueiros que também constavam da famosa lista das grandes fortunas.
Havia respeito entre os empresários e um aparente desprezo por essa classificação, mas, no subsolo
dos seus comportamentos, vários eram seduzidos por ela. A inveja e a disputa corroíam a
alma de muitos.
Ocorreu a Marco Polo que a somatória das fortunas dos convidados ao casamento dava uma
quantia de 150 bilhões de dólares, superior à soma do Produto Interno Bruto dos trinta países
mais pobres do mundo, incluindo os da África Subsaariana, cuja população ultrapassava 350
milhões de habitantes. Porém ninguém estava preocupado com os miseráveis. O que importava
era a festa.
Marco Polo, que aprendera a pensar com um mendigo e vivera entre os miseráveis, agora se
encontrava entre os multimilionários. A festa, que deveria ser um motivo de alegria, prenunciava
ser uma fonte de preocupação. No entanto, ele sempre discursara afirmando que não há ricos ou
pobres, famosos ou anônimos, todos são seres humanos com necessidades internas semelhantes.
Ao lembrar disso, recompôs-se. Um pensamento saltou em sua mente e aquietou sua emoção
intranqüila: "Não é o ambiente que faz meu humor, mas meu humor que faz o ambiente. Serei
feliz." Preferiu relaxar. Anna merecia.
O secretário de segurança do estado, o Dr. Cléber, também estava presente. Como era amigo
pessoal de Lúcio, fez-lhe um favor: mandou que um batalhão de policiais estivesse pela
redondeza e colocou cinqüenta membros de elite da polícia anti-seqüestro disfarçados entre os
convidados. O objetivo era proteger os grandes empresários e políticos importantes de possíveis
ataques.
Marco Polo procurou seus amigos, mas teve dificuldade em localizá-los, pois estavam perdidos
na multidão de estranhos. Sua mãe vibrava eufórica com o luxo da festa. Era tudo o que sonhara
para o filho. Recordou os áureos tempos da vida abastada.
Um piano e um conjunto de violinos tocados por profissionais do maior gabarito animavam o
ambiente. O juiz mostrava-se ansioso para começar o cerimonial. Estava deslumbrado com a
magnitude da festa, nunca abrira a boca para pessoas tão ilustres. Anna estava terminando de se
arrumar.
De repente houve um tumulto na porta do salão. Alguns seguranças barraram umas 15 pessoas
malvestidas, com comportamentos bizarros, fazendo trejeitos com a cabeça e movimentos
involuntários com os membros superiores. No grupo barrado, alguns não portavam identidade
nem convite; disseram que os tinham esquecido. Mas mesmo os que os portavam foram
barrados. Os seguranças imaginaram: "Não é possível um milionário se misturar com esse tipo de
gente."
As pessoas barradas começaram a gritar pedindo passagem e produzindo um tumulto na
entrada do salão, atrapalhando os nobres convidados que chegavam. Alguns deles indagaram dos
seguranças:
- O que essa gente está fazendo na festa de Lúcio?
- Não sabemos, doutor, mas já os estamos expulsando.
O grupo pressionava para dentro, mas os seguranças, cada vez mais agressivos, os
empurravam para fora. O chefe da segurança contratado por Lúcio chegou. Informado da
situação, observou os amotinadores e confabulou baixinho com os outros seguranças.
- Essas pessoas certamente são penetras. Perderemos o emprego se as deixarmos entrar. Não
podemos perturbar as autoridades e a elite financeira. Mandem todos embora, mas, por favor,
sem escândalo.
O grupo resistiu, o tumulto aumentou. Lúcio foi informado da confusão e ficou visivelmente
transtornado. Acionou o secretário de segurança, que por sua vez acionou sua equipe interna,
imaginando que criminosos estivessem presentes.
Chegando ao local, o chefe de segurança disse ao Dr. Cléber:
- Essas pessoas parecem ter saído de um hospício. Dizem que são amigos do dono da festa.
Como isso é possível?
Observando-os, o secretário disse baixinho:
- Cuidado! Podem ser terroristas ou seqüestradores disfarçados!
Em seguida, com um olhar, pediu para os policiais anti-seqüestro agirem. Os policiais
corpulentos pegaram nos frágeis braços de Jaime, de Isaac, de Ali Ramadan, de Vidigal, de
Romero, de Cláudia, de Sara, de Maria, do idoso e gentil Sr. Bonny, começaram, a revistá-los e
em seguida a expulsá-los.
Eles tinham ido à festa porque Marco Polo os fizera sentirem-se seres humanos, estrelas
únicas no palco da vida, ainda que fosse um palco sem platéia. Não podiam deixar de agradecer a
um amigo tão sábio e tão caro. Agora eram novamente tratados como lixo social.
Isaac os trouxera. Isaac era um homem mais rico do que vários convidados da festa. Vestia-se
de maneira tão simples que parecia não ter uma empresa com novecentos funcionários. Isaac
alargara os horizontes da visão sobre a existência. Não tinha necessidade de ostentação.
A doença o abatera, mas não eliminara sua ousadia, sua garra e criatividade. Tornara-se um
empresário que só via sentido em pisar no solo do capitalismo e conquistar mais espaços
financeiros se isso fosse contribuir para o bem-estar dos seus funcionários e da sociedade.
Sempre gostara de empregar legalmente imigrantes chineses, árabes, indianos, latinos. Conhecia
pela própria experiência a dor da solidão de viver em terra estranha. Depois ter superado sua
doença mental, começou a empregar também egressos de hospitais psiquiátricos. Realizou uma
solidária inclusão social. Seus empregados o amavam.
Como Cláudia não tinha dinheiro para comprar uma roupa nova, escolhera um vestido longo
vermelho, sobreposto por um blazer preto. As duas peças tinham mais de vinte anos de
existência e eram o melhor que ela possuía. Além de não combinar, contrastavam com o luxo das
roupas das demais mulheres da festa.
Para Cláudia, o importante era sentir-se confortável internamente e demonstrar para Marco
Polo que, através dele, ela aprendera a resgatar seu sentido de vida e a ser útil para a sociedade.
Também não tivera recursos para comprar um presente, mas fez da sua presença um presente
inesquecível.
O grupo chamava a atenção de todos. Normalmente os pacientes com depressão, síndrome do
pânico e outras doenças emocionais passam despercebidos aos olhos sociais, mas os amigos de
Marco Polo eram portadores de transtornos mentais graves e crônicos. Alguns esfregavam
freqüentemente as mãos no rosto e no peito. Outros, como Jaime, traziam seqüelas dos longos
anos de medicação. Faziam movimentos musculares repetidos, parecendo mal de Parkinson. Para
pessoas preconceituosas, não constituíam uma paisagem agradável.
Algumas convidadas os olhavam de cima a baixo, estarrecidas. Eles não pareciam pertencer ao
mundo dos mortais.
Sara disse delicadamente para uma delas:
- Eu não mordo, madame! Também sou gente.
No meio da agitação, a esposa de um importante senador fez um ar de desprezo e espanto
diante de Cláudia. Esta observou-a, com a sensação de que a conhecia.
- Você não teve aula de dança comigo na sua infância? Perturbada, a outra exclamou:
- Professora Cláudia?!
- Sim. Sou eu.
- Que bom vê-la! - e saiu apressada.
Os policiais estavam perdendo a paciência. Como empurrar não adiantava, começaram a
arrastá-los. Alguns diziam:
- Saiam, senão serão presos!
Outros adicionavam:
- Não perturbem, seus penetras! Esta festa é para gente grande.
Frágeis pela doença psiquiátrica e pelo uso prolongado de medicação, alguns começaram a
tropeçar e a chorar.
Subitamente, Jaime gritou:
- Marco Polo! Marco Polo! - Todos os seus amigos o acompanharam em coro.
O barulho ecoou no interior do salão. Marco Polo, que até o momento não sabia da confusão,
ficou assustado. Reconheceu aquelas vozes. Rapidamente dirigiu-se para a porta de entrada. Ele
convidara seus amigos e torcia para que viessem, mas sabia que alguns deles procuravam
isolamento, não gostavam de freqüentar ambientes sociais estranhos, pois percebiam os olhares
discriminatórios. Esquecendo-se dos riscos, foram à festa para mostrar seu gesto de amor.
De repente, ao ser empurrado com violência, Ali Ramadan caiu. Sua expressão facial de dor e
suas lágrimas levaram Isaac a se desfazer do segurança que o agarrava para socorrer o amigo. Não
se tratava de um palestino e um judeu, mas de dois seres humanos se ajudando. Isaac levantou
cuidadosamente seu amigo e interpelou o policial:
- Quem você pensa que é, seu bruto?
Os seguranças e os policiais de elite não gostaram da sua atitude e o empurraram
violentamente, bem como aos outros. O caos se instalou e ninguém se entendia. Nesse ínterim,
Marco Polo chegou e exigiu:
- Parem! Parem!
Diante do noivo, os seguranças e os policiais se aquietaram. Para o espanto de todos aqueles
homens e de todos os curiosos que se aproximaram, o noivo exclamou:
- Cláudia, querida, que bom vê-la! Jaime, você aqui, que prazer! Isaac, Ali, meus queridos
amigos!
Ele os abraçava e beijava na face e na testa.
O Sr. Bonny disse timidamente:
- Marco Polo, não nos quiseram deixar entrar na festa!
- Como não, Sr. Bonny? Vocês são os convidados mais esperados desta festa, pelo menos para
mim e para Anna.
O secretário de segurança ficou perplexo. Havia muitos anos, quando era apenas delegado,
tivera a mesma sensação diante de um jovem vestido de mendigo que aparecera na sua delegacia.
De repente, os olhares de Marco Polo e do secretário se cruzaram. Marco Polo estava
abraçado a Cláudia, mas soltou sua voz:
- Grande cérebro! Você aqui!
Desta vez o secretário ficou estarrecido:
- É aquele mendigo, mas agora vestido de noivo! Não é possível!
- Continua sendo delegado?
- Hoje sou secretário de segurança e amigo do seu sogro - falou todo orgulhoso. E adicionou:
- Fui longe em minha carreira. E você me deu força. Nunca esqueci de que você me disse que
meu cérebro era avantajado.
Marco Polo engoliu em seco. Pensou novamente no poder do elogio, que é capaz de estimular
a autoconfiança das pessoas. Ao mesmo tempo, refletiu sobre o poder da rejeição que, mesmo
em tom de brincadeira, sem intenção de machucar, pode provocar um estrago na personalidade
dos outros. "Ainda bem que o delegado não descobriu que, brincando, diminuí o número de seus
neurônios", pensou.
Marco Polo estava preocupado com a discriminação que seus amigos sofreram na entrada do
salão. Tal rejeição poderia reduzir a pó a auto-estima deles. Precisava reparar essa injustiça. O
secretário coçava a cabeça ao vê-los.
- Parabéns, secretário! Realmente o senhor foi longe em sua carreira.
- Parabéns para nós! A vida é irônica. Hoje você é o centro da festa e eu sou o centro da
segurança dela.
Em seguida, Marco Polo desfez o mal-entendido. Para não deixar dúvidas, proclamou em voz
bem alta para todos ouvirem, tanto os estranhos como os próprios amigos:
- Essas pessoas são meus convidados especiais! Estão entre os meus melhores amigos!
Alguns convidados ficaram chocados. Comentaram entre si que tinham entrado na festa
errada. Do outro lado, os amigos de Marco Polo ajeitavam orgulhosamente suas roupas, olhando
os seguranças com ar de grandeza. Ali Ramadan abordou Marco Polo perguntando:
- Existem extraterrestres?
Temendo que as alucinações de Ali tivessem voltado, ele repetiu a velha frase:
- Não sei. Mas sei que criamos monstros dentro de nós.
- Olhe quantos ETs fora de nós - disse apontando com o queixo para os seguranças.
Marco Polo sorriu.
- São estranhos mesmos, mas, no fundo, são boas pessoas, Ali.
Cláudia bateu no rosto de um segurança e, com a ingenuidade de uma criança, disse-lhe:
- Bonitão! A festa é nossa!
Anna conhecia uma boa parte desses amigos de Marco Polo. Apreciava a singeleza, a inocência
e a criatividade deles. Certamente iria alegrar-se muito ao vê-los ali.
Antes de entrarem no grande salão, duas famosas atrizes de cinema, amigas de Lúcio,
chegaram ao local perseguidas por alguns repórteres. Uma delas tropeçou em Sara e caiu. Sara
também se desequilibrou e foi ajudada por Cláudia. Irritada com as duas, a atriz encarou-as e
espantou-se com os gestos bizarros que faziam com os braços e cabeça. Chamou o segurança e
perguntou com alarde:
- Que povo estranho é este na festa de Lúcio?
Marco Polo, vendo suas amigas novamente humilhadas, disse à atriz:
- De todo o lixo produzido pela sociedade, o culto à celebridade é o mais estúpido.
Abalada com a coragem do desconhecido, a atriz esbravejou:
- Quem é você para dizer isso? Você não sabe que sou uma famosa artista!
- Elas também são atrizes do teatro da existência. Já ganharam até um Oscar pelo drama que
viveram! - falou apontando para Sara e Cláudia.
- Puxa! Mas eu não as conheço! - comentou admirada.
- Deveria conhecer. Elas são fascinantes.
Cláudia e Sara toparam a brincadeira. Disseram para as atrizes:
- Queridas, depois lhes damos um autógrafo.
E, tomando-as pelo braço, Marco Polo levou-as para o salão junto com todos os seus amigos.
Ao entrar pela passarela central, por onde Anna passaria, os convidados ficaram paralisados e
fizeram um silêncio fúnebre. Os músicos pararam de tocar. Os gestos incomuns e os
movimentos involuntários daquelas pessoas agrediram os olhos dos ilustres convidados. Não
estavam acostumados a conviver com pessoas diferentes.
Cláudia, abraçada por Marco Polo, olhava e fazia caretas para os convidados. Romero estava
envergonhado, cabisbaixo, mas Vidigal, muito solto, cumprimentava todos os presentes. Jaime
estava um pouco constrangido, mas logo se libertou ao beijar varias flores que encontrou pelo
caminho.
Ali Ramadan entrou pomposo. Com um lenço na mão direita, rodando-o em torno da cabeça,
dançava música árabe enquanto entrava no salão. Era um palestino feliz. Isaac andava sorridente.
Não devia nada a ninguém e não exigia nada de ninguém para ter bem-estar. Enfrentar aquela
pressão não era nada comparado às pressões que já havia suportado.
Marco Polo observou, um pouco afastado, um senhor que não apenas discriminava seus
amigos, mas estava assombrado ao vê-lo. Parecia querer engoli-lo com os olhos. Balbuciou entre
os lábios:
- Cretino!
Ao perceber o que o homem dissera, Marco Polo ficou perplexo. Não podia acreditar que um
convidado o tivesse ofendido em seu próprio casamento. Pensou que era coisa da sua cabeça,
afinal de contas a noite estava estressante.
À medida que o grupo avançava, os convidados se entreolhavam querendo entender o que
ocorria. Alguns, em tom de chacota, diziam:
- Lúcio preparou um show circense para nós.
Na realidade, Lúcio, ao ver a cena, ficou borbulhando de raiva. Queria estar em qualquer lugar
do mundo, menos nessa festa. "Que vergonha! O que vão pensar de mim!", dizia para si mesmo
com um nó na garganta.
Antes de os amigos de Marco Polo se acomodarem, Lúcio foi chamado, porque a noiva havia
chegado. Como pai, deveria introduzi-la no salão. Saiu em estado de choque, sem olhar para os
convidados.
Alguns psiquiatras também ficaram perplexos. Nunca tinham visto pacientes portadores de
psicose na festa de um psiquiatra.
Antes de se sentar, Jaime passou prolongadamente os olhos pela multidão. Viu homens e
mulheres preocupados, tensos, com posturas eretas, rígidas, dosando comportamentos e sem
manifestar alegria na fenomenal festa. Admirado com a própria observação, pegou no braço do
noivo e expressou:
- Marco Polo. Que povo es... estra... estranho!
Analisando o comentário do amigo, ele concordou:
- Realmente são estranhos, Jaime!
C a p í t u l o 27
Anna chegou na festa. Tal como Marco Polo, ao ver o esquema de segurança, sentiu-se tensa.
Quando entrou no salão oval, ficou pasma. Tentando ser discreta, indagou baixinho:
- Papai, o que representa tudo isso?
- Você merece, minha filha. Nós merecemos.
Focalizou de longe seu amado. Ele fez um gesto com as mãos tentando aliviá-la, como se dissesse:
"Vamos fazer o quê? Relaxe!"
O conjunto de cordas começou a tocar a marcha nupcial. Parecia produzir um som celestial
que percorria as artérias do corpo e penetrava no tecido da alma dos convidados.
O vestido branco de seda, com poucas rendas, caía sobre o corpo de Anna, delineando-o de
maneira sensual. O vestido era simples, mas ela estava deslumbrante. Por ser tão bela
interiormente, era Anna quem dava brilho às suas roupas, e não suas roupas a ela.
Os cabelos cacheados com mechas douradas repousavam sobre seus ombros como ondas
sobre a praia. Não tinha grinalda, apenas carregava um pequeno buquê de lírios brancos na mão
direita. Era a flor de que mais gostava, a que nascia nos pântanos, tal como ela.
Ao vê-la, os amigos do Hospital Atlântico começaram a aplaudir e assobiar, expressando
júbilo. Ninguém os acompanhou, apenas Marco Polo.
O salão media oitenta metros. Enquanto Anna e o pai andavam lentamente, as pessoas,
emocionadas, os cumprimentavam com gestos e olhares. Lúcio sentiu-se um rei. Esqueceu por
alguns momentos o tumulto inicial. Agradecia com a cabeça os cumprimentos. Enquanto
caminhava, resgatava imagens do passado de Anna. A sua pequena filha crescera e tornara-se
uma pessoa encantadora.
Ao se aproximarem de Marco Polo, o protocolo foi quebrado mais uma vez. Jaime e Cláudia,
que conheciam Anna, não contendo a alegria, levantaram-se e foram ao seu encontro.
Lúcio amarrou a cara. Só não os ofendeu porque o momento exigia discrição. Vários
convidados também condenaram a atitude deles. Diziam entre si:
- Que povo brega e sem cultura.
Anna, humilde, os abraçou sem o menor constrangimento e os beijou, borrando levemente a
sua maquiagem. Uma das jovens mais ricas do mundo se enriquecera com bens de que muitos
dos presentes eram carentes: a naturalidade e a simplicidade. Seus gestos foram um brinde para
os olhos de Marco Polo.
Felicíssima, Anna ainda acrescentou:
- Cláudia, você está magnífica! Jaime, você está belíssimo!
Ali Ramadan gritou em voz alta:
- Que flor! Que flor! Que Alá a proteja! Isaac, do mesmo modo,
bradou:
- Que o Deus de Israel seja o seu cajado e a sua força!
Lúcio, envergonhado, apenas movimentava as pupilas para ver as reações dos convidados.
Suando frio, entregou a filha ao noivo. Procurou ficar um pouco afastado deles. Não queria ser
fotografado ao lado daquela gente bizarra, não queria ser alvo de chacota nas colunas sociais.
Enquanto o juiz iniciava a cerimônia, uma pessoa aproximou-se furtivamente de Lúcio e deulhe
uma péssima notícia, que quase o fez desmaiar. Era o homem que balbuciara "cretino" para
Marco Polo.
- Sabe quem foi o psiquiatra que denunciou os efeitos do Venthax? -disse, como um predador
diante da vítima.
- O crápula que me fez perder cem milhões de dólares na bolsa de valores no mês passado? -
inquiriu Lúcio.
- Exatamente.
- Não me diga que o estúpido do meu genro teve a coragem de convidá-lo? Quem é o vilão?
- É o seu próprio genro - disse o psiquiatra. E, com sarcasmo, adicionou: - Quem tem genro
como o seu não precisa de inimigo.
- O que você me está dizendo, Dr. Wilson?! - bradou, profundamente abalado.
Lúcio, seis meses antes do debate de Marco Polo com o Dr. Paulo no congresso de psiquiatria,
havia comprado 60% das ações da indústria farmacêutica que sintetizara o Venthax. Lúcio já era
o dono da empresa quando o Dr. Paulo foi subornado. A empresa prometia ser uma mina de
ouro se houvesse uma aceitação maciça da nova droga pela classe médica.
Marco Polo começara a usá-la logo após o congresso e percebeu importantes efeitos colaterais
em seus pacientes. Como foi desafiado pelo Dr. Paulo Mello, resolveu fazer uma pesquisa mais
séria sobre esses efeitos. O resultado foi colocado num dos primeiros artigos que tinha publicado.
O artigo saíra há um mês numa revista científica e rapidamente ganhou destaque na imprensa
mundial, em especial nos jornais e TVs. Lúcio havia amaldiçoado o artigo, mas jamais passara por
sua cabeça que Marco Polo fosse o autor. Lúcio repetia obsessivamente: "Todo remédio tem
efeito colateral. Estão me perseguindo!" As ações do laboratório caíram 15% e continuavam em
queda. Foi um desastre econômico.
Diante dos fatos relatados pelo Dr. Wilson, Lúcio mudou de cor, começou a ficar taquicárdico,
ofegante, suar frio, parecendo estar diante da pior situação de perigo. O perigo era Marco Polo. A
falta de simpatia por ele se converteu em ódio mortal.
Imediatamente mandou um segurança chamar o secretário de segurança. Ofegante, disse-lhe:
- Precisamos interromper este casamento agora!
- Você está louco, Lúcio?
- Não, mas vou ficar.
- O que está acontecendo?
- Acabei de descobrir que meu futuro genro é o meu pior inimigo.
- Lúcio, você está brincando, ele é uma boa pessoa - disse o secretário, transtornado.
- Boa pessoa! Esse homem me fez perder cem milhões de dólares em um mês!
O secretário desmontou. Não estava acreditando. Jamais presenciara um evento tão
perturbador. A festa, que já estava confusa, ganhou um clima de guerra. Enquanto isso o juiz
dava continuidade ao ritual.
- O que seu genro fez? Ele o roubou?
- Quase isso. Ele acabou com a imagem de uma das minhas grandes empresas, o laboratório
Montex. Vou perder uma posição no ranking! - disse inconformado.
- Ranking?
- Deixa pra lá.
O Dr. Wilson esclareceu para o secretário:
- O jovem psiquiatra denunciou na imprensa os efeitos colaterais de um dos nossos mais
importantes medicamentos.
- Ele sabia que a indústria farmacêutica era de seu sogro? - perguntou o secretário.
Sem convicção, o Dr. Wilson afirmou:
- Claro que sim!
Ao saber disso, a falta de ar de Lúcio aumentou e ele começou a ter vertigem. Os convidados
mais próximos ficaram comovidos ao ver a cena. Pensaram que ele estava emocionado em casar
sua única filha. "Deve estar sentindo solidão pela partida da Anna e a alegria de vê-la mulher",
imaginaram. Pensaram que ele estivesse recordando a pequena filha correndo e brincando e,
agora, assumindo os desafios da vida.
Um deputado federal sensível aproximou-se, tentando consolá-lo:
- Eu o compreendo, Lúcio. Já casei uma filha. Fique tranqüilo, agora você ganhou um filho.
Ao ouvir isso, Lúcio sentiu um tremor súbito. Queria engolir o deputado, gritar com ele. Os
dois amigos o seguraram. O deputado não percebeu o que estava ocorrendo. Movido de
compaixão, voltou ao seu lugar.
Em seguida, Lúcio voltou à carga:
- Um filho! Estou perdido! Termine esse casamento antes de começar! Anna entenderá
quando eu desmascará-lo!
- Calma, Lúcio! - disse o secretário.
- Calma! Você teve calma quando precisou de 50 mil dólares? Este sujeito pode me arruinar!
Lúcio Fernández, como vários de seus amigos, não estava preparado para ser um bilionário. Ele
gravitava na órbita do dinheiro, e não o dinheiro em sua órbita. Antes de enriquecer, era mais solto,
sereno, sociável, despreocupado. Depois que se tornou um arquimilionário, passou a ser
controlador, autoritário, ansioso, desconfiado. Precisava de muito para sentir pouco, e esmagou,
assim, seu prazer de viver. Os empregados de seu palácio eram mais felizes do que ele. O dinheiro o
empobrecera.
Além disso, Lúcio tinha uma personalidade paranóica. Não chegava a ser uma psicose
paranóica, pois não rompia com a realidade, mas ele vivia atormentado com idéias de estar sendo
perseguido ou lesado. Vivia com medo de seqüestros. Tinha três carros blindados e andava com
uma escolta de quatro seguranças. Não bastasse isso, não confiava nem em seus amigos. Achava
que todo mundo se aproximava dele por interesse. Mas, de todos os seus fantasmas psíquicos, o de
que sua filha caísse nas garras de um aproveitador era o maior deles. Agora, aos seus olhos, seu
maior pesadelo se materializava.
O secretário ficou acuado porque Lúcio revelara que ele tinha precisado do seu dinheiro na
frente do Dr. Wilson. Queria atender o dramático apelo que lhe fora feito, mas, como a situação
era delicadíssima, ainda teve fôlego para retrucar:
- Como interromper este casamento? Já pensou no escândalo? Olhe para o governador. Há
mais de vinte deputados federais, dez senadores e três ministros presentes. São raros os
empresários deste país que reúnem pessoas tão poderosas num mesmo lugar.
Então Lúcio caiu em si. Embora muitos políticos dependessem do dinheiro dele para se eleger,
o escândalo poderia gerar conseqüências imprevisíveis.
Então, de relance, olhou para os amigos de Marco Polo e viu uma paisagem que o incomodou.
- Olhem para esses miseráveis. Eles não precisam representar. São o que são. Maldito escândalo!
Precisamos de um álibi!
C a p í t u l o 28
O cerimonial do casamento iniciou-se. O juiz elevou o timbre da sua voz e pronunciou as
famosas palavras:
- Se há alguém no recinto que tem alguma coisa contra este casamento, fale agora ou cale-se
para sempre.
Lúcio gelou. Queria gritar, mas não podia. Após um momento de silêncio, uma pessoa bradou
na entrada do salão.
- O noivo abandonou a sua criança!
Os presentes fizeram um silêncio mortal. Alguns começaram a passar mal. O juiz emudeceu.
O acusador, ainda distante, insistiu:
- Por que você abandonou a sua criança?
Elisabete sentiu falta de ar e pensou: "Jesus Cristo! Nunca aconteceu isso em nossa família." Os
políticos e empresários ficaram espantados. O secretário de estado falou em tom baixo:
- A festa do ano promete ser o escândalo do século. As mulheres exclamavam:
- Que vergonha! Como alguém pode abandonar um filho?
Todos começaram a condenar Marco Polo. Lúcio, num sobressalto, levantou-se, pegou no
braço do secretário e disse:
- Esse é o nosso álibi! Esse cara nunca me enganou! Chame os seguranças. Retire Anna
imediatamente do local!
- Calma, Lúcio! Espere!
- Esperar o quê?
- Isto pode gerar uma agitação incontrolável. A integridade física das autoridades poderá ser
colocada em risco! - disse trêmulo.
O homem estranho começou a se aproximar e a bradar:
- Você deixou a criança chorando, sem respirar! Alguns convidados
comentavam:
- Assassino! Esse sujeito não vale nada!
Anna sentia um nó na garganta. Marco Polo tentava ansiosamente elevar os olhos para ver
quem o denunciava. Seus amigos do Hospital Atlântico aquietaram até mesmo seus movimentos
repetitivos. Quase não respiravam. A platéia, atônita, queria alcançar o acusador com os olhos. O
salão tornou-se pequeno para tanta indignação. O burburinho era intenso.
O secretário resolveu agir. Acionou vinte carros de polícia. Pediu que ficassem de prontidão
ao redor do hotel. Também colocou os cinqüenta policiais disfarçados a postos. Combinou que
ao levantar a mão direita e abaixá-la subitamente estaria dando o sinal para entrarem em ação.
Iria retirar Anna, proteger Lúcio, as autoridades e os empresários mais importantes. Quando
levantou a mão para dar o comando final, outra voz bradou vibrante no salão.
Era a voz de Marco Polo:
- Eu assumo minha culpa. Abandonei minha criança. O ativismo profissional e as
preocupações com a existência roubaram meu tempo. Mas prometo-lhe que não a abandonarei
mais.
As senhoras idosas começaram a dizer umas para as outras:
- Que pai desnaturado! Como pôde trocar o trabalho pela sua criança? Isso é desculpa!
- Alimente-a com a sabedoria, nutra-a com a simplicidade, irrigue-a com a liberdade! Não
deixe sua criança morrer. Eduque-a. - O estranho falou com voz mais alta.
Lúcio expressou:
- Além de meu inimigo, é um péssimo pai. O escândalo já está causado. Vamos, acabe com
isso! - disse ao secretário, empurrando-o para que tomasse uma atitude.
O suor escorria como gotas de chuva pela face do secretário. Sabia que a confusão poderia ser
tal que algumas pessoas correriam o risco de ser pisoteadas. Quando ia dar o comando pela
segunda vez, viu Marco Polo pegando Anna pela mão e indo ao encontro do denunciante.
Respirou fundo e pediu para que os cem olhos fixados nele esperassem.
- Sim! Eu a educarei. - E, olhando para a sua noiva, exclamou: - Pedirei para Anna me ajudar
a cuidar dela.
Alguns, perplexos com a sua ousadia, diziam:
- Irresponsável! Fez o filho e agora quer que outra mulher o assuma.
Lúcio foi mais longe.
- Canalha! Quer introduzir um bastardo na minha família. Tem de ser agora, secretário!
O secretário ergueu pela terceira vez suas mãos. Não podia desagradar quem tanto o
favorecera. Quando ia abaixá-la e dar início à agitação, outra voz ocupou o ambiente. Para a
perplexidade dos presentes, em especial de Lúcio, uma jovem que sempre fora frágil, tímida,
insegura e que não se expressava em público entrou em cena. Anna exclamou:
- Cuidarei da criança de Marco Polo como se fosse meu filho. – E olhando para os presentes,
acrescentou: - E quem não deixar sua criança interior viver perderá sua espontaneidade, destruirá
sua simplicidade, sufocará sua criatividade. Será infeliz diante de Deus e diante dos
homens. Transformar-se-á num miserável, ainda que viva em palácios. Será estéril em sua
inteligência, ainda que seja um intelectual.
Os deputados, os senadores, ministros, banqueiros, industriais e suas esposas quase tiveram
um ataque de pânico coletivo. Ofegantes, passaram as mãos no rosto, coçaram as cabeças,
entreolharam-se e ficaram profundamente abalados.
O denunciante se aproximou. Marco Polo proclamou:
- Falcão, meu amigo! Só faltava você nesta festa!
Ele e Anna o abraçaram afetuosamente. E o beijaram.
A platéia saiu do assombro e aos poucos foi se deslumbrando.
O irreverente Falcão não poderia aparecer de outro modo. Ele nunca se preocupara com a
maquiagem social. Neste sublime momento da vida de seu querido amigo, não se importou com
formalidades nem se preocupou com o que os outros poderiam pensar das suas reações. Queria
dar publicamente o melhor presente que um ser humano pode dar: o seu coração.
Seu jovem amigo estava se tornando famoso e saturado de atividade. Isso alegrava Falcão e, ao
mesmo tempo, o preocupava. Sabia que, se Marco Polo, bem como qualquer pessoa que atinge o
sucesso, não tomasse cuidado, poderia destruir no âmago do seu ser a criança curiosa,
aventureira, ousada que ama, que cria, que sonha e que se encanta com a vida. Sabia que o único
lugar em que não era admissível envelhecer era no território da emoção.
Muitos convidados já haviam destruído sua criança interior e viviam num asilo emocional. A
existência havia perdido o sabor. Viviam porque estavam respirando. Não se questionavam, não
se interiorizavam e não percebiam que a vida e a morte eram fenômenos indecifráveis no teatro
da existência. Tornaram-se platéia neste insondável teatro. Movimentavam-se muito, mas não
saíam do lugar. Eram deuses ricos, famosos, mas falidos.
Anna já havia estado com Falcão algumas vezes. Concordava e aprendia com as idéias dele e de
Marco Polo. Eles a contagiaram com sua borbulhante alegria, sua coragem para explorar o novo
e pensar diferente. Um ajudava o outro. Queria ser como eles, raciocinar como adulto e sentir
como criança.
Falcão estava presente porque também queria agradecer a Marco Polo por ter rompido seus
paradigmas e ajudado a resgatar seu filho. Marco Polo foi discípulo e mestre, filho e pai,
indicando que os pequenos podem aprender com os grandes e os grandes podem permitir-se
aprender com os pequenos. Não há hierarquia no terreno da sabedoria.
Após ver sua filha e Marco Polo beijarem o estranho homem, Lúcio não se agüentou. Sentouse
e só conseguia dizer:
- Isso é uma miragem! O que está acontecendo?
- Não tenho a menor idéia! - disse o secretário limpando o suor do rosto com um lenço.
Alguns convidados, agora mais tranqüilos, abriram o leque do pensamento e exclamaram:
- Que peça teatral fabulosa. Nunca vimos isso. Lúcio é um gênio!
Outros, sob estado de choque, procuravam alívio nas altas doses de uísque e vodca. Outros
ainda, envoltos numa cortina de medo, temiam que saísse tiro no local.
Apesar das reações distintas, a maioria do público, sob intenso impacto, se aglomerou ao redor
dos três personagens, fazendo uma espécie de roda. Alguns subiram nas cadeiras e mesas para
ver o espetáculo.
O juiz do cerimonial piscava os olhos sem parar, num tique nervoso. Confuso, perguntou ao
pianista:
- O casamento de milionários é sempre assim?
Após abraçar Marco Polo e Anna, Falcão recordou os velhos tempos das praças. Como se
estivesse em cima de um banco, num ambiente completamente livre, proclamou para ambos:
- Todo amor é belo em seu nascedouro, mas poucos resistem ao calor do sol. Que o amor de
vocês suporte os testes da existência!
Rodopiando Anna pela mão esquerda, Marco Polo bradou:
- Velejarei pelos mares da ansiedade, escalarei as montanhas dos medos e percorrerei os vales
das decepções para não deixar o amor morrer! Farei tudo ao meu alcance para transformar esta
bela mulher em princesa da minha história!
As senhoras que queriam crucificar Marco Polo mudaram de opinião.
- Que rapaz romântico! Que príncipe! É de um desses que minha filha precisa.
Em seguida, Falcão se afastou um pouco de Marco Polo e começou a cantar com sua voz
estridente a música que se tornara seu estandarte de vida, What a Wonderful World. Com as
mãos, encenava a melodia e apontava para as flores. Marco Polo o acompanhou. O piano e os
violinos entraram em ação. Foi fenomenal.
Enquanto cantavam, colocaram Anna no meio deles. No início da música, pediram licença em
seus pensamentos a Louis Armstrong e mudaram completamente a letra, inventando algumas
frases dirigidas à noiva. Para os dois pensadores, Anna simbolizava todas as pessoas que
passaram pelo caos na infância, por irreparáveis perdas, mas, apesar disso, acreditaram que valeria
a pena viver a vida. Sua superação os encorajava.
- A vida não a poupou, você suportou tormentas, mas sobreviveu - cantou Marco Polo.
- Obrigado por você existir. Com você, a vida fica mais doce - cantou Falcão.
- E eu penso comigo... Como você é maravilhosa - cantaram os dois juntos.
- Você tropeçou, feriu-se, mas não desistiu dos seus sonhos.
- Você brilha para nós, você brilha para o mundo.
- E eu penso comigo... Como você é maravilhosa.
A música penetrou no tecido mais íntimo da psique de Anna, tornou-se uma atividade sublime
do saber, alçou vôo da sua emoção, provocou-lhe um êxtase e a fez chorar. A princesa que vivera
numa masmorra se libertou. Enquanto chorava, um filme passava na sua mente, constituído de
belas imagens, da imagem de sua mãe abraçando-a, tocando piano para ela, o primeiro encontro
com Marco Polo, a conquista, a estrela que ele lhe deu.
Raramente uma criança atravessou os desertos percorridos por Anna e raramente alguém
encontrou um oásis tão agradável. Vários convidados também desataram a chorar.
Após o canto em homenagem a Anna, Cláudia entrou em cena. Gritou para os músicos:
- Valsa! - E tirou Falcão para dançar.
Sorrindo, fez um gesto com as mãos abertas querendo dizer "Vamos nessa!". Os noivos
também começaram a dançar, livres e alegres.
Os demais amigos de Marco Polo também entraram na dança e começaram a revolucionar a
festa. Posteriormente, Cláudia tirou outra pessoa para dançar. Falcão, entendendo o seu recado,
também convidou outra senhora, a esposa de um banqueiro que jamais havia dançado com o
marido. Jaime chamou para dançar uma senhora de meia-idade que era solteira.
Marco Polo pôs-se a dançar com Dora. Anna tirou um amigo idoso de seu pai, de quem
gostava muito. Os músicos ficaram eufóricos, mas o juiz do cerimonial quase teve um ataque
cardíaco. Gritava:
-Ainda não terminei o casamento! - mas ninguém o ouvia.
Isaac não sabia dançar valsa. Ali Ramadan havia aprendido com Cláudia. Vendo o amigo
deslocado, o próprio Ali tentou ensiná-lo. Sem receio de aprender, Isaac deu com o amigo os
primeiros passos de dança. Foi a primeira vez na história que se teve notícia de que um palestino
e um judeu dançaram juntos uma mesma valsa.
De repente, apareceu o Dr. George na pista. Marco Polo alegrou-se intensamente ao ver seu
ex-professor de anatomia. Depois que o "vendaval" Marco Polo passara por sua vida, ele tinha
revisto seus valores e sua rigidez.
Sua esposa o suportara com heroísmo, mas valeu a pena. O Dr. George aprendeu o caminho
da afetividade. Tornou-se um homem dócil, gentil, sociável, que resgatou sua criança interior.
Aprendeu a brincar com seus dois filhos. Na festa de aniversário deles vestia-se de palhaço para
diverti-los.
Fez também uma reviravolta na sala de anatomia. Sua primeira aula deixou de ser sobre
técnicas de dissecação de vasos sangüíneos e músculos e passou a abordar a crise existencial e os
sonhos dos futuros médicos. O mestre aprendeu a amar o debate de idéias e não a submissão.
Mudou tanto que pedia para os alunos investigarem a história dos cadáveres que iriam estudar. Se
não a encontrassem, deveriam imaginar uma história com sonhos, alegrias, perdas, desafios, para
depois escrevê-la e afixá-la em cada mesa de anatomia em sinal de respeito às pessoas que ali
estavam.
O Dr. George montou uma associação chamada Um Ser Humano, Uma Fascinante História.
Esta associação objetivava ensinar alunos de outras faculdades a descobrirem o valor da vida e
saberem que para tornar-se um grande médico é necessário ser um explorador, um Marco Polo
que descobre grandes histórias por trás dos anônimos.
Em seguida, apareceu discretamente na pista o Dr. Flávio, o especialista em emergência. Ele
agora era chefe do setor em seu hospital. Após Marco Polo cruzar a sua vida, entendeu que
diante da dor e da morte não há gigantes nem heróis. Tornou-se preocupadíssimo com os conflitos
que se escondem atrás das cefaléias, das dores musculares, das dores no peito, das
taquicardias, das crises hipertensivas.
O Dr. Flávio, movido pela sensibilidade, montou a associação Ser Humano Integral. Esta
associação, constituída de médicos, psicólogos e psiquiatras, visava conscientizar, através de
folhetos e palestras, os profissionais de saúde das salas de emergência de todos os hospitais do
país para dialogarem com seus pacientes.
Desejava treiná-los a ouvir com o coração e entenderem que tratavam de doentes e não de
doenças, de seres humanos e não de órgãos. O sucesso deste treinamento diminuiu as
internações, solucionou doenças e preveniu inúmeros suicídios.
Sua esposa, grávida de seis meses, fez questão de ir ao casamento de Marco Polo. Queria
agradecê-lo pelas mudanças em seu marido, embora Marco Polo soubesse que quem mudara de
fato as suas rotas tinha sido o próprio Dr. Flávio. O progresso emocional do marido fez com que
ela se sentisse a futura mamãe mais feliz do mundo.
Eis que apareceu o Dr. Alexandre. Quando Marco Polo o viu dançando com sua esposa,
diminuiu o ritmo e o cumprimentou afetivamente. O nobre professor entendera que, se um dos
maiores gênios da humanidade, Einstein, foi vítima e também agente do preconceito, ninguém
estaria livre deste mal.
Fez então algumas pesquisas e detectou que muita gente ainda pensava que quem ia a um
psiquiatra era louco. Com a ajuda de Marco Polo, montou uma associação denominada
Preconceito Nunca Mais para diminuir o estigma social dos pacientes psiquiátricos e para elevar a
auto-estima deles. Começou a mostrar que no fundo todo ser humano possui alguma doença
psíquica, e a doença do preconceito é a pior delas.
Apareceu por trás do casal de noivos, de um jeito suave, quase imperceptível, um homem bemresolvido,
sereno, equilibrado, sábio, um artista da psiquiatria. Era o Dr. Antony. Ele e a esposa,
com quem estava casado há mais de quarenta anos, dançavam como um casal de adolescentes.
Os noivos pensaram: "Queremos envelhecer como eles", pois a maneira com que se olhavam
revelava que eles tinham transformado a fase de menor força muscular na fase de maior força da
emoção e da cumplicidade do amor.
Depois que Marco Polo debatera naquele famoso congresso sobre a ditadura da hipótese da
serotonina, sobre o confronto entre a psiquiatria e a psicologia e expusera sua complexa tese de
que a psique humana coabita, coexiste e cointerfere com o cérebro, o Dr. Antony e vários
professores ilustres de psiquiatria perderam noites de sono.
Chamaram o jovem psiquiatra para montar uma sociedade científica destinada a estudar a
última fronteira da ciência: a natureza da psique ou alma do Homo sapiens. Marco Polo, o Dr.
Antony e seus amigos faziam reuniões do mais alto nível acadêmico. Participar delas era como
uma carícia na inteligência. Além disso, começaram a debater a possibilidade de a psiquiatria se
tornar uma especialidade da psicologia e não apenas da medicina.
De repente, saiu do lado esquerdo da multidão uma pessoa apressada. Pedia licença com
insistência. Caminhava eufórico em direção à pista de dança. Era o Dr. Mário. Ao vê-lo, Marco
Polo parou de dançar. Abraçou prolongadamente ele e sua esposa.
O Dr. Mário, numa atitude inusitada, beijou-lhe o rosto. Em seguida, o diretor do Hospital
Atlântico tomou sua esposa nos braços e no centro da pista começou a mostrar seus dotes.
Quando conheceu Marco Polo ele estava no terceiro casamento e em via de separação, mas,
depois que o "furacão" Marco Polo passou pela sua história, as muralhas ruíram. Saiu do seu
trono, deixou de ser um psiquiatra em casa, humanizou-se, tornou-se um cavalheiro.
Seus três filhos, gerados nos dois primeiros casamentos, estavam fazendo psicoterapia. O Dr.
Mário era especialista em criticá-los, apontar seus erros e ser um manual de regras, mas, após
beber da fonte da espontaneidade e se tornar um dançarino na vida, começou a abraçá-los, beijálos,
cativá-los, ouvi-los.
Aprendeu a pedir desculpas, reconhecer suas falhas e ter coragem de dizer que os amava. Seus
filhos ficaram simplesmente perplexos com ele. Descobriram afinal que tinham um pai-psiquiatra
e não um psiquiatra-pai. Rapidamente evoluíram no tratamento. Deixaram, assim, de ser futuros
hóspedes de um hospital psiquiátrico.
O Dr. Mário deu um salto tão grande na compreensão da existência que começou a ministrar
inúmeras conferências nacionais e internacionais, desestimulando a hospitalização na psiquiatria.
Entendeu que a internação psiquiátrica causava rombos no inconsciente. Nos casos em que ela
seria inevitável, os hospitais deveriam envolver os pacientes com dança, teatro, artes plásticas,
levando-os a sentirem-se úteis. Contou com a ajuda de Dora e de outros psiquiatras. Cláudia era
uma das mais ativas, e Isaac tornou-se o maior patrocinador desse projeto.
Isaac e Ali Ramadan também se tornaram sonhadores. Tinham longas conversas com Marco
Polo para saber como poderiam fazer para ajudar o povo palestino e judeu a superarem seus
conflitos. Gemiam emocionalmente a cada ataque terrorista dos palestinos e a cada retaliação de
Israel. Choravam não mais por suas doenças, mas pelos seus povos. "O hospital em que
estávamos internados era um ambiente menos sofrível e perturbador do que alguns terrenos do
Oriente Médio", pensavam.
Sob a orientação de Marco Polo, entenderam que, infelizmente, a violência na Palestina matava
fisicamente alguns e emocionalmente, milhões. Não havia vencedores nesse conflito, todos eram
vítimas. Acreditavam que - se palestinos e judeus se convencessem de que não eram duas raças
ou duas culturas em conflito, mas seres humanos da mesma espécie, com necessidades psíquicas
semelhantes - grande parte das resistências e desconfianças mútuas seria debelada. Os três amigos
batalhariam pela conscientização e propagação desta idéia.
A exceção de Isaac, a somatória dos recursos financeiros dos reacionários amigos de Marco
Polo que montaram programas para ajudar a sociedade era irrisória. O saldo era quase negativo.
Alguns tinham carros financiados, outros, casas penhoradas, e ainda outros, dívidas nos bancos.
Mas, apesar disso, fariam uma revolução social incomparavelmente maior do que a dos
arquimilionários na festa de Lúcio, cujo "PIB emocional" era um dos mais baixos deste belo
planeta azul.
Dois meses antes do seu casamento, Marco Polo falara para Anna e Falcão sobre algo que
queimava em seu coração. O princípio da co-responsabilidade inevitável continuava controlandoo.
Queria montar uma instituição chamada Ser Humano Sem Fronteiras para tratar dos conflitos
sociais, dos confrontos raciais, da crise da educação, das misérias físicas e psíquicas.
Além disso, queria fazer um movimento mundial para pressionar as indústrias farmacêuticas de
medicamentos psicotrópicos para investir parte de seus lucros na prevenção de doenças
psíquicas. Sofreria graves conseqüências por essa ousadia.
Marco Polo achava que a solução para os graves conflitos humanos passava pela juventude e
não pelos adultos. Todavia, entristecia-se em saber o que o capitalismo selvagem estava fazendo
com o ser humano, em especial com as crianças de todas as sociedades modernas.
Afligia-se ao tomar conhecimento de que na Inglaterra 78% das crianças a partir de dez anos
tinham como passatempo predileto ir às compras. Era o que demonstrava o Conselho Nacional
do Consumo do país. Elas cresciam com uma ansiedade e insatisfação crônicas, porque não
aprendiam a libertar sua criatividade e extrair prazer dos pequenos estímulos do ambiente. Na
grande maioria dos países, a situação dos jovens era semelhante.
Falcão e Marco Polo perturbavam-se com a fome física e emocional do terceiro milênio. A
cada cinco segundos morria uma criança de fome no mundo, e a cada segundo assassinava-se a
infância de uma criança pelo consumismo. Poucos se importavam contra esses dois gravíssimos
crimes contra a humanidade.
Os dois amigos rebeldes lutariam com todas as suas forças, até sua última gota de sangue, para
que milhões de jovens de todas as raças, de todas as religiões, de todas as culturas, deixassem de
ser servos de um sistema social que entorpece a mente, rouba-lhes a identidade e os transforma
em meros clientes. Queriam que eles se engajassem no projeto Ser Humano Sem Fronteiras, se
apaixonassem pela humanidade, criassem projetos mundiais para transformá-la.
Para eles, os jovens deveriam atuar no palco da vida como atores principais e não morrer na
platéia, subjugados por uma vida individualista, ilusória, autodestrutiva, dependente, encarcerada
pela rotina e amordaçada pelos padrões doentios de beleza.
Marco Polo tinha falhas, precipitações, momentos de ansiedade, mas conviver com ele era um
convite para andar em solos nunca antes percorridos. Faria da sua história uma grande odisséia,
tão excitante como a de Marco Polo no século XIII. Iria envolver-se em grandiosas confusões,
abalaria alguns pilares da sociedade, sofreria perseguições implacáveis. Mas não mudaria seu jeito
de ser, nem mesmo deixaria de abraçar árvores e falar com as flores.
O relacionamento com Anna arrebatou ainda mais sua coragem. Jamais se viu um casal tão
louco por aventuras. O tumulto na festa do seu casamento era um reflexo da vida que teriam. A
desordem era tão grande que havia risco de o casamento não se realizar.
Marco Polo alegrou-se em ver seus amigos reunidos sem receio da vida. Aprendera com todos
eles. Para delírio de Lúcio Fernández, não apenas os amigos de Marco Polo quebraram o
protocolo. Alguns casais, incluindo empresários, deputados, senadores e até um ministro, deixaram
de ser espectadores e entraram na pista de dança.
A maioria das autoridades, dos empresários e das celebridades, no entanto, ficou irritadíssima
com Lúcio, pois tinham vindo fazer contatos políticos e sociais, mas encontraram um bando de
lunáticos. Amarraram a cara, curtiram o velho mau humor.
Havia outros psiquiatras presentes. Alguns acharam que estava havendo um delírio coletivo.
Outros se soltaram, não fizeram exigências para se relaxar, deram oportunidade ao prazer.
Lúcio começou a ter crises histéricas. Esfregava as mãos repetidamente no rosto, rangia os
dentes, seus lábios tremiam. Tornou-se um sério candidato ao Hospital Atlântico. Olhou para o
secretário, seu guardião, e repetiu:
- Rapte minha filha, leve-a embora deste local ou vai haver um segundo suicídio na família!
- Você está maluco, Lúcio!
- Quinhentos mil dólares pelo serviço! - disse sem titubear.
- Quanto?
O secretário vacilou. Nisso um casal o atropelou, enquanto dançava. O assunto ficou
momentaneamente truncado.
Nunca mais houve um episódio chocante como aquele. O juiz do cerimonial, de meia-idade, já
fizera o casamento de muitas pessoas, mas por insegurança nunca se casara. Durante o
conturbado casamento ainda não concretizado, pensou, perplexo: "É melhor não se arriscar."
Foi um evento irreverente, de uma jovem que se encantou com um vendedor de sonhos que
contagiou pessoas mutiladas que reconstituíram suas vidas e que, apesar de todas as suas
limitações, aprenderam a dançar a valsa da vida com a mente livre, sem medo de ser o que são e
sem medo do amanhã.
Não foi um final feliz, foi uma vírgula feliz, pois esta história, assim como a vida, não tem um
ponto final, é um eterno recomeço. A felicidade teria de continuar a ser reconstruída, pois ainda
chorariam, atravessariam perdas, desafios, ansiedades e incompreensões.
A certa altura, Marco Polo, Falcão, Anna, o Dr. Mário, o Dr. Antony e outros amigos fizeram
uma roda no meio do salão e começaram a girar com emoção. Giraram, giraram e giraram.
Enquanto giravam, observavam atentamente o rosto dos espectadores e percebiam que, para a
maioria das pessoas, a sociedade moderna se tornava cada vez mais um grande hospital
psiquiátrico ou uma sociedade de mendigos que não abandonaram seus lares, mas abandonaram
a si mesmos. De pessoas que, às vezes, têm mesa farta, mas mendigam o pão do prazer, da
tranqüilidade e da sabedoria.
Para outros, no entanto, o mundo se tornava uma escola, ou um circo, ou um terreno de
aventuras, ou uma pista de dança, ou uma mescla de tudo isso. Marco Polo e seus amigos não
sabiam onde as pessoas, incluindo eles, se localizariam no futuro da humanidade.
Só sabiam que essa localização dependeria da coragem de cada um em caminhar nas trajetórias
do seu próprio ser, abrir as janelas da sua inteligência, repensar sua história e fazer livremente
suas escolhas.
Quando deixaram de girar, gritaram em coro para eles mesmos e para a platéia: "Bem-vindos
ao futuro!..."

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